domingo, 14 de maio de 2017

INTERROGATÓRIO

A presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na 13ª Vara Federal de Curitiba agitou a cidade e o país (10/05/2017); foi assunto da imprensa nacional e estrangeira e de sites na rede de computadores. A ação penal em que o ex-presidente, sua esposa e outras pessoas figuram como réus, foi proposta pelo ministério público federal com base em inquérito instaurado pela polícia federal. Refere-se a um negócio supostamente fraudulento em torno de apartamento tríplex no Guarujá, litoral do Estado de São Paulo. A acusação é de que o apartamento pertence aos dois primeiros réus, embora registrado em nome de uma firma construtora, adquirido com dinheiro não contabilizado (caixa 2), produto de lavagem e de corrupção.
Chama atenção o fato de a esposa do ex-presidente da república ainda figurar no polo passivo da relação processual apesar de já ter falecido. Provado o falecimento da ré (certidão do óbito), o juiz deve decretar a extinção da punibilidade e retirar o nome dela da capa dos autos e das publicações. O juiz não deve protelar essa providência na expectativa de que a morta ressuscite. Ademais, os procuradores não requereram tempestivamente a exumação do cadáver, o que impossibilitou o interrogatório da referida senhora. A memória dos mortos merece respeito.
No processo penal brasileiro há um momento, ao cabo da instrução processual, reservado para o réu se defender, pessoal e oralmente, na presença do juiz. Cuida-se do interrogatório, que se divide em duas partes: uma sobre a pessoa do réu e outra sobre os fatos. Baseado na petição inicial formulada pela acusação (denúncia ou queixa-crime) o juiz deve primeiro perguntar ao réu, na forma da lei, sobre a sua residência, seus meios de vida, onde exerce suas atividades, se foi preso ou processado alguma vez. Depois disto, o juiz perguntará se é verdadeira a acusação que lhe é feita. Se a resposta for negativa, o juiz perguntará: (1) a que ele atribui tal acusação; (2) se ele conhece alguém a quem deva ser imputada a prática delituosa; (3) onde ele estava ao tempo do delito; (4) se ele tem conhecimento das provas já apuradas; (5) se ele conhece as vítimas e testemunhas e se ele tem algo a alegar contra elas; (6) se ele sabe alguma coisa relacionada ao delito, fatos e circunstâncias que possam elucidar o caso; (7) se ele tem algo mais a alegar em sua defesa.   
No sistema judicial brasileiro (diferente do sistema dos EUA), o juiz pergunta e o réu responde. Acusador e defensor não interrogam. Após ouvir o réu, o juiz deve indagar ao acusador e ao defensor se restou algum fato a ser esclarecido. Se a resposta for afirmativa, eles enunciam as perguntas ao juiz que, por sua vez, depois de filtrá-las, as dirige ao réu. O propósito da filtragem é evitar armadilhas semânticas arquitetadas pelo acusador ou pelo defensor. O juiz, em nome da clareza, pode reformular o questionário das partes. Se o fato apontado for pertinente e relevante, o juiz repassará a pergunta ao réu; se não houver pertinência e relevância, o juiz indefere o pedido das partes. Na sala de audiências, o juiz e o acusador, lado a lado, situam-se acima do réu e seu defensor (desigualdade aristocrática). O lugar ao lado direito do juiz destina-se a um único representante do ministério público. Entretanto, no interrogatório de Luiz Inácio, havia uma turma de procuradores ao lado do juiz. Elementos exibicionistas da desavergonhada e escandalosa força-tarefa da indecorosa operação política partidária apelidada lava-jato.
Encerrada a fase dos interrogatórios, no caso em tela, o ministério público requereu a oitiva de mais três testemunhas, o que poderá ser deferido se o juiz reconhecer a necessidade, ou a conveniência, oriunda de circunstâncias ou de fatos apurados na instrução processual. Realizadas, ou não, as suplementares inquirições, abre-se prazo para alegações finais do acusador e do defensor. Depois, o juiz sentenciará.
Durante o interrogatório, o juiz curitibano, numa incrível falha técnica, debateu com o réu; ambos perguntavam e respondiam. Confrontaram-se: de um lado, a autoridade legal do juiz e de outro, a autoridade moral do réu. O interrogatório deve ser respeitoso, sem ser coloquial. O juiz deve seguir as regras da boa educação e urbanidade, sem ser condescendente. O juiz não deve repetir a mesma pergunta várias vezes com ligeiras reformulações para forçar o réu a se contradizer ou a confessar. No direito processual brasileiro, as figuras de juiz e de inquisidor não se confundem na mesma pessoa. As perguntas devem ser feitas com clareza e objetividade na sequência exigida pelo código de processo penal. Questões fora do contexto da ação, ou que digam respeito a outras ações judiciais, não devem ser levantadas pelo juiz, nem pelos advogados e promotores de justiça.  
Dos vídeos publicados na rede de computadores, verifica-se que o juiz não obedeceu à sequência e nem à forma das perguntas estabelecidas na lei processual. O juiz exibiu fragilidade, sinal de que tinha consciência da aberração jurídica da qual é protagonista. Estava cônscio da farsa montada por ele, pelos procuradores e pelo delegado com evidente objetivo político. Essa aberração ficará registrada nos anais do judiciário brasileiro.
Se não fossem os componentes político e pirotécnico do processo acima referido e a deficiência ética e profissional do juiz, o interrogatório seria realizado em 15 minutos, no máximo, sem o desnecessário desgaste físico e mental do réu e demais atores do drama processual. A matéria é relativamente simples (propriedade de imóvel se prova com escritura pública; possuindo imóvel próprio, ninguém coloca por sua conta elevador em imóvel alheio; visita a um imóvel não significa compra ou locação). No entanto, foram gastas horas e horas naquele clima de tensão, sendo até necessário intervalo para descanso.
No célebre debate travado na campanha eleitoral de 1990, Collor colocou sob suspeita a honestidade de Luiz Inácio, porque o adversário possuía um aparelho de som que nordestino pobre não tinha condições de comprar. Agora, os inquisidores curitibanos colocam sob suspeita a honestidade de Luiz Inácio porque ele seria dono de um apartamento de 80 m² no Guarujá, que um nordestino, com renda própria, não tem condições de comprar. No Brasil, todo juiz de direito, com apenas os seus subsídios, tem crédito e capacidade econômica para adquirir apartamento de 160 m², ou até maior. Todo ex-presidente, com apenas a sua remuneração, tem capacidade para adquirir apartamento de 80 m², seja no Guarujá, em Miami ou Paris.

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