quinta-feira, 16 de março de 2017

OLHAR HUMANIZADOR

A Itália entrara na guerra mundial de 1939/1945 ao lado da Alemanha. O governo brasileiro organizara força expedicionária, em 1942, para lutar na Europa ao lado das tropas aliadas inglesas e estadunidenses. Na estação ferroviária da pequena cidade sulista, a família Kosowski, católica fervorosa, estava reunida para se despedir do filho mais novo que embarcava, juntamente com outros convocados, para a Capital da República, a fim de se integrar à força expedicionária. Os pais eram imigrantes poloneses vindos para o Brasil com dois filhos: uma menina e um menino. Em seu novo país, o casal teve mais três filhos. Miroslaw era o caçula. Viviam da agricultura na zona rural do Paraná. Todos trabalhavam na lavoura (verduras, legumes, milho, feijão, parreiral, árvores frutíferas) e na criação de vacas leiteiras, porcos, galinhas, patos, marrecos, cavalo, égua, petiço e dois cachorros. Os filhos estudavam na escola da paróquia. Agora, o filho caçula ia lutar na Europa em defesa da democracia. O pai estava orgulhoso e temeroso ao mesmo tempo. Ainda na Polônia, ele testemunhara os horrores da guerra mundial de 1914/1918.
Em várias estações ferroviárias do Sul e no porto marítimo do Rio de Janeiro, parentes e amigos despediam-se dos expedicionários. O medo de não mais os ver com vida misturava-se com a esperança de que vivos retornassem às suas casas.
- Até a volta, meu filho. Cuide-se bem. Cumpra o teu dever para com a pátria.
- Até a volta, meu pai. Não chore, mãe. A guerra não vai durar para sempre e logo regressaremos, eu e meus companheiros de farda.
Inexperiente, com a boa fé, o ardor e o otimismo da juventude, Miroslaw não tinha noção clara dos horrores da guerra e dos sérios riscos que ele e seus companheiros correriam. Como não chorar, vendo o seu caçula ir para o inferno e a probabilidade de lá regressar mutilado ou morto? Talvez, nunca mais o visse. Enquanto as lágrimas percorriam os sulcos da enrugada pele do seu rosto, Dona Gertrudes pensava: “Gostaria de ser mais instruída e não uma simples lavradora, a fim de entender essa política. A ditadura brasileira envia o meu filho para combater a ditadura italiana. O motivo é a defesa da democracia. Será que a ditadura brasileira é democrática”?
O trem apitou. Ouviu-se o ruído do movimento das rodas e do vapor que assobiava ao escapar da caldeira. Em tufos, à medida que o trem arrancava, a fumaça saía pela chaminé, atirando-se voluptuosa em direção às nuvens. Os vagões desfilavam preguiçosamente diante dos olhos de quem ficava. Olhavam até o último vagão sumir no horizonte, deixando expostos os trilhos, os dormentes e a paisagem do lado aberto da estação. Miroslaw regressaria, porém, não mais o mesmo da partida. Os gestos joviais, espontâneos, alegres e descontraídos, desapareceram. Nervoso, raramente sorria. Passou a gostar da cachaça e da cerveja. Ombros arcados. Olhos fugidios que, ao se fixarem, pareciam duas pequenas bolas de metal. Já não corria com leveza para buscar a enxada. Passos largos e pesados como se fossem enterrar os pés no chão. O rapaz amadurecera no inferno.
No decorrer do conflito mundial, a preocupação com o filho caçula deixou marcas no rosto de Dona Gertrudes. Na sua cabeça, o lenço deixava escapar fios de cabelos brancos e amarelados. Ela rezava na capela da sua casa pedindo proteção ao filho. A mesma súplica fazia na igreja da colônia, aos domingos, durante a missa. Como de costume, a família limpava, arrumava e enfeitava a carroça para ir à missa e às festas paroquiais aos domingos. Colocava os arreios e as viseiras no cavalo e na égua e, lado a lado, prendia os dois na carroça, separados por um varão que funcionava como puxador. Os bancos eram tábuas de madeira atravessadas de um lado ao outro da carroça, enganchadas nas grades. No banco da frente, sentavam-se o Seu Stanislaw e a Dona Gertrudes, ele com as rédeas nas mãos tocando a parelha, ela com a cesta do lanche e as oferendas à igreja. Nos dois bancos de trás, sentavam-se os filhos, todos com as suas melhores roupas, banho tomado, cabelos penteados, unhas limpas, meias e sapatos.
A tropa brasileira travara batalha com soldados alemães que ocupavam aldeia italiana. Os bombardeios haviam-na destruído. A tropa alemã se retirara. O jovem expedicionário Miroslaw Kosowski, agora marcado pelas atrocidades que vivenciou no campo de batalha e pelo sofrimento dos militares feridos que viu nas macas dos hospitais improvisados, patrulhava no local destroçado quando descobre um soldado inimigo escondido nos escombros. Aponta o fuzil, baioneta calada, mas não dispara. O inimigo estava sem munição e com a arma largada. Miroslaw pensou tratar-se de um desertor ou de um soldado que não tivera tempo de fugir. Os dois se estudaram até que os olhos de um se fixaram nos olhos do outro.
Fora do clima bélico por uns instantes, a atitude agressiva se desvaneceu. Numa fração de minuto, Miroslaw vê naquele soldado um jovem como ele próprio, mas com farda diferente. Assim como ele, aquele soldado também devia ter pais e irmãos esperando por seu retorno da guerra. Possivelmente, seria festejado com canções do folclore da sua terra natal, polca, cerveja, salsicha, chucrute. Miroslaw lembrou dos amigos da sua faixa etária lá do Sul do Brasil, seus colegas da escola primária e da juventude, de cabelos louros e olhos azuis como os dele e os comparou com o paralisado e indefeso alemão à sua frente. Então, ele posiciona o fuzil transversalmente ao peito e grita para seus companheiros: “Não tem mais ninguém aqui”. Juntou-se à patrulha e seguiu o seu destino. Enquanto se afastava, pensou: “O comandante do batalhão, provavelmente, me punirá se souber que eu poupei a vida de um inimigo, mas, certamente, Jesus Cristo me perdoará”.

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