domingo, 12 de março de 2017

ÓDIO E AMOR

Entardecia. Na ampla varanda da casa principal da fazenda, Antenor, Marieta e Juvêncio conversavam. Amizade que durava desde a época de estudantes. O frio outonal encontrava modesta resistência no soalho de tábuas, nas mantas, botas e agasalhos de meia-estação. Mesa e bancos de madeira combinavam com a arquitetura colonial da casa. O branco das paredes contrastava com o azul das janelas e portas. Grama e jardim contornados por trilha de pedras traçada sem cuidados geométricos. Descortinava-se paisagem rural. Bois, vacas e bezerros no pasto que a distância fazia pequenos. Verdejante planície tendo ao fundo montanhas com as partes altas cobertas de nuvens como chumaços de algodão. Raios mornos e avermelhados de um sol que esmorecia. Sobre o tampo da mesa, garrafa da malvada pinga, amarelinha, vinda do alambique da fazenda, três cálices, quadradinhos de queijo num prato, fatias de salame noutro, paliteiro, cinzeiro de louça, carteira de cigarros e isqueiro. Dos três amigos, só a mulher fumava. Enquanto bebericavam, curtiam descansada prosa no crepúsculo. 
Antenor – Se, por um lado, existe barreira de ódio a separar os humanos, por outro lado, há o ímã da afetividade que os aproxima. A empatia, no mesmo ambiente, facilita a intimidade entre as pessoas. Ao gostar de Narciso, tendemos a gostar também do seu amigo. Ao perceber a amizade entre o marido e Inocêncio, a esposa tende a gostar de Inocêncio. Ao ver que Alba é amiga de Sofia, o marido de Alba tende a gostar de Sofia. Não te parece que isto é real e verdadeiro?
Marieta – Sim e não. A extensão que as tuas palavras denotam não me parece correta. A esposa de Inocêncio pode não simpatizar com o amigo dele. O marido de Alba pode não simpatizar com a amiga. Além disto, a amizade colateral pode provocar ciúme. A repulsão e a atração ocorrem naturalmente nas relações humanas. O convívio do casal com o melhor amigo, ou amiga, gera intimidade que pode conduzir ao relacionamento sexual com o melhor amigo, ou amiga. Se o casal deseja preservar a sua união e fidelidade, convém manter discreta distância dos melhores amigos e amigas. A cautela preserva a amizade.      
Juvêncio – Certamente, falamos do que ocorre na cultura ocidental. Excluímos da conversa a cultura oriental e os costumes tribais das sociedades primitivas.      
A – Você gosta de traçar limites em todos os assuntos, Juvêncio. Então, vamos nos limitar aos povos civilizados da América. Tudo bem?
J – Tudo bem. Todavia, no que toca ao ódio e à violência entre pessoas, grupos, tribos e nações, podemos tratar do assunto em nível planetário.
M – No continente americano prevalece o costume de muito cedo enviar as crianças à escola, para o jardim da infância e estudos primários No ambiente escolar, em plena infância, as crianças podem conhecer o primeiro amor das suas vidas, diferente do amor que dedicam aos pais e aos brinquedos. Essa primeira experiência amorosa das crianças pode acontecer também fora da escola, ao brincarem no bairro ou no playground do edifício em que moram. Trata-se de experiência sem conotação sexual. Amor platônico na sua mais pura expressão.
J – Esse convívio infantil, Marieta, ocorre não só na zona urbana como também na zona rural, embora com diferentes brincadeiras, expressões corporais, linguagens. Basta olhar as famílias dos peões e serviçais das fazendas vizinhas e do núcleo colonial. O efeito padronizador da televisão não eliminou totalmente as diferenças.  
A – Meus queridos Juvêncio e Marieta, não somos especialistas nesse delicado espaço da alma humana. Sugiro mudar o rumo da nossa conversa.
J – Discordo, Antenor. O especialista é limitado. Nós somos universalistas, gregários, oriundos de família residente em cidade. Convivemos com nossos pais e irmãos, com nossas companheiras, criamos filhos e adulamos netos. Relacionamo-nos com parentes, vizinhos, amigos, inimigos, colegas de trabalho e de estudos. Frequentamos festas, teatros, cinemas, estádios, academias, assembleias, velórios, missas, cultos evangélicos, sessões espíritas, reuniões esotéricas. Viajamos para diversos lugares. Essa experiência de vida, sobre a qual refletimos na idade madura, proporciona um “conhecimento todo de experiência feito” como diria o poeta Camões, adquirido até por osmose. Isto inclui a “psicologia comum” mencionada pelo jurista Nelson Hungria em seus comentários ao código penal. 
M – Navego nas tuas águas, Juvêncio. A indiferença à sexualidade permite à criança ver sua alma gêmea em outra do mesmo sexo ou do sexo oposto. Noto, nas crianças, a ausência do desejo carnal e a presença da simples e mútua afeição. A criança sente prazer e fica feliz na companhia da sua alma gêmea. Esta marcante experiência da alma infantil estará subjacente às futuras experiências amorosas na adolescência e na maturidade, inclusive a do casamento de pessoas que se amaram quando crianças.  
A – “... e viveram felizes para sempre”. Acorda Marieta! Isso é conto de fadas! Alma gêmea? Isto não existe. Outrora, no seio da nobreza europeia, havia o casamento arranjado desde a infância, porém o menino e a menina muitas vezes nem se conheciam e aguardavam até a mocidade para consumar o matrimônio mediante relação sexual. Na sociedade aristocrática burguesa algo semelhante acontece entre famílias ricas cujas crianças convivem nas escolas, nos aniversários, nas excursões, embora sem que uma veja na outra a sua alma gêmea. Há casamentos de conveniência para manter patrimônio e/ou costumes dentro do mesmo grupo étnico e/ou religioso, sem que os noivos vejam um no outro a sua alma gêmea. Não há vida em comum feliz nesse tipo de matrimônio. Os cônjuges buscam o verdadeiro amor fora do casamento. Cabe lembrar, ainda, a influir na adolescência e na maturidade, as marcantes situações de ódio e violência experimentadas pelas crianças.
M – Força de expressão, Antenor. Gêmeos são os corpos. Entretanto, entre personalidades anímicas, de cuja existência não duvidamos, pode haver atração que as faz sentir como se estivessem irmanadas com fortes laços amorosos. Agora, vou pegar carona no teu argumento. Conforme testemunho da História e da crônica atual, entre pais e filhos, entre irmãos, entre membros da mesma família, há ódio mortal, assassinato, furto, briga, ofensa, traição, ciúme, inveja. O mandamento religioso de amar o próximo, inclusive pais e irmãos, não ressoa na comunidade humana. O amor não obedece a ordens externas e sim aos ditames do coração.  
A – Daí, Marieta, a minha dificuldade em aceitar o que vocês estão dizendo sobre a vida amorosa na infância e sua extensão no futuro. A menina Adriana vê na menina Valquíria a sua alma gêmea. Na adolescência, Adriana e Valquíria prosseguirão a ver, uma na outra, a sua alma gêmea?
M – Essa permanência afetuosa entre as duas será possível “se” a convivência prosseguir sem solução de continuidade até a idade madura de ambas.
A – Disto não resultará lesbianismo?
M – Sim e não. Depende da educação que ambas receberem no lar e na escola, do tipo de comportamento do grupo a que pertencerem, das escolhas que fizerem, além do componente genético. Ademais, se forem lésbicas – nome que provém da Ilha de Lesbos, onde era comum o amor entre mulheres – que mal haverá nisso? O lesbianismo acontece nos conventos desde a Renascença até hoje, nos internatos colegiais para moças, nas repúblicas de universitárias, nos presídios femininos, no ambiente artístico. As mulheres brasileiras e as anglo-americanas estão cada vez mais desinibidas, “saem do armário” com mais frequência e se exibem publicamente sem receio de escandalizar. Reivindicam a mesma liberdade sexual de que desfrutam os homens. Se homem transa com homem, mulher também goza da mesma liberdade para transar com mulher. Se homens casados transam fora do casamento, mulheres casadas também transam com outros parceiros.      
J – Pois é. O dever de fidelidade está em declínio. Fala-se em casamento aberto. Quanto ao exemplo citado por você, Antenor, serve também aos meninos, seja dentro ou fora de internatos, na rua ou na escola. Se a convivência amorosa persistir na adolescência, provavelmente eles serão parceiros na pederastia. Eu também indago: que mal haverá nisso? A pederastia está presente na civilização ocidental desde os primórdios. Ademais, uma coisa é a infância, outra, a adolescência. Do pensamento exposto por Marieta, eu entendi que aquela experiência do primeiro amor, ingênuo e puro, fica gravada na alma da criança. Na fase adulta, esse nobre sentimento pode retornar como saudade esperançosa de novamente ser experimentado.
M – Realmente, Juvêncio, com a adolescência vem o desejo sexual. Essa força da natureza desperta o primeiro amor adolescente entre os dois sexos, inesquecível, apaixonado, sonhador, sem a mesma ingenuidade e pureza do amor da infância.  
A – O que vocês falaram, estimados Juvêncio e Marieta, pode ser bonito e romântico, porem não condiz plenamente com a realidade. O mal do lesbianismo e da pederastia é que são rejeitados pela sociedade cristã como antinaturais e imorais e seus praticantes são considerados anormais. A censura social e religiosa acarreta transtornos à vida dos censurados.
J – A rejeição, Antenor, também ocorre nas sociedades judaica e muçulmana, o que revela a existência de pontos de contacto entre as diferentes culturas. Judeus e islâmicos não aceitam e nem toleram a homossexualidade. Matar em nome de deus ou da religião é comum aos judeus, cristãos e muçulmanos. Esses povos inculcam na mente das crianças a validade ética do ódio ao inimigo, ao adversário, a aqueles que pensam diferente; estimulam a competição selvagem; justificam a violência, o terror, a guerra. A coragem de combater e morrer pela pátria e/ou pela religião é vista como supremo valor moral. Suicidar-se em defesa da religião é abrir as portas do Paraíso. Clérigos e crentes cristãos vergastam o próprio corpo para se purificar dos pecados e resistir às tentações da carne. Monges budistas imolam a si próprios como forma de protestar contra atos ofensivos às suas crenças e instituições.
M – Permita-me um aparte, Juvêncio. As escrituras “sagradas” dos judeus, cristãos e muçulmanos, colocam a mulher em posição subalterna, a começar pelo Gênesis: do barro, Deus criou o homem; da costela do homem, a mulher. Há convergência quanto a existência de Deus e ao dever de amá-lo. Contudo, há divergência quanto ao nome de Deus, à sua imagem, ao seu conceito, aos seus atributos e ao modo de lhe prestar culto. Nem todo preceito da ética muçulmana, em vigor no Irã e outros países, combina com preceitos da ética protestante em vigor nos EUA e outros países, ou com preceitos da moral católica em vigor no Brasil.
J – Você é ateia, Marieta?
M – Já disse mil vezes que não sou. Uso a inteligência que Deus me deu e que não me permite acreditar nas baboseiras, mentiras e falsidades contidas na Bíblia – embora milhões de pessoas nelas acreditem – principalmente sobre a criação, sobre aquele deus diabólico, a legislação capciosa, a prevalência do homem e a humilhação da mulher, escritas por meia dúzia de judeus espertalhões no século IV a.C.
A – Caros Juvêncio e Marieta, estamos nos desgarrando do tema central: o amor infantil. Vamos a ele voltar. Há pessoas que não o vivenciaram. No mesmo grupo de crianças, há bons e maus relacionamentos. Entre as crianças também há ódio, raiva, violência e rancor. Eufrásio se dá bem com Raimundo e ambos hostilizam Ubirajara. Meninos e meninas não gostam de se misturar, caçoam dos seus companheiros por serem gordos, desajeitados, sem malícia ou burros. Os adolescentes se masturbam. As garotas gostam de “ficar” com os garotos e eles desejam bolinar e transar com elas, gostam de falar sobre isto e se gabar.
M – Há o “Belo Antonio”.
A – A que você está se referindo, Marieta?
M – Ao filme italiano estrelado por Marcelo Mastroiani. O bonito jovem encantado pela beleza da sua jovem esposa não consegue com ela transar. Há inibição psicológica. Para ele, a transa sexual representa um sacrilégio à formosura daquela deusa deitada em sua cama. Para salvar a honra da família, o pai do jovem vai a um prostíbulo e transa até morrer de infarto.
A – Trata-se de um filme, Marieta! Ficção e não realidade. Qual a razão de o pai do jovem transar com uma prostituta e não com a esposa? Queria, porventura, entrar no prostíbulo para mostrar aos concidadãos que ele era macho viril e que o filho era uma aberração? Que tragédia é esta? Desencadeada só porque o filho ficou embevecido pela jovem e bela mulher? Bastava paciência. O moço perderia a inibição depois de ver a sua deusa sentada no vaso sanitário, ou de ouvir o barulho da descarga.        
J – Caro Antenor. Eu vi esse filme no cinema. A história se passa na Itália, país onde o vigor sexual do macho é questão de honra. O marido deve deflorar a esposa e esta deve exibir a mancha no lençol do leito nupcial. Creio que esse costume ainda vigora em pequenas cidades do interior da Itália. Com a abstinência, o belo Antonio cobriu de vergonha a sua família. O pai do rapaz pretendeu lavar a honra dos homens da família. No que concerne ao tema central do debate, o teu ceticismo, Antenor, impediu a necessária clareza. Estamos a falar do caso de uma criança sentir forte afeição por outra. Estamos a nos situar no “se”. Não me refiro ao belo poema de Rudyard Kipling e sim ao caráter condicional dessa conjunção no diálogo, nos textos. Refiro-me ao “se” das probabilidades próximas da incerteza. Exemplo: espero terminar a obra até o final do ano se até lá eu ainda estiver vivo. Refiro-me também ao “se” das probabilidades próximas da certeza. Exemplo: se João não aplicasse bem a sua herança, hoje estaria em pior situação.
M – Permita-me, caro Juvêncio, um acréscimo à tua sensata exposição. O defloramento da mulher não é conditio sine qua non para a consumação do casamento. A virgindade é dispensável. Basta a comunhão sexual. Há novo componente na cultura ocidental a ser considerado: o casamento de pessoas do mesmo sexo. Quanto às probabilidades mencionadas por você, apelo ao senso comum: a dimensão pessoal e social da vida de cada indivíduo seria diferente no presente “se” ele não tivesse vivenciado as experiências e os conhecimentos que vivenciou no passado. O que ao vulgo se apresenta como óbvio, mereceu a atenção de alguns cientistas modernos que expressam o seguinte pensamento: “Se” no passado houvesse pequeno desvio no curso da energia cósmica, o universo não seria o que é atualmente.
A – O fato real é que não houve desvio algum. O universo é como tinha de ser e segue as leis da sua estrutura e do seu funcionamento desde a sua origem. Especular sobre o que seriam o homem, a sociedade e o universo no presente “se” tudo fosse diferente no passado, significa exercitar a razão sem repercussão prática. Tirar proveito do estudo do passado e colher bons frutos no presente, isto sim, se afigura pragmático e construtivo exercício da inteligência.
M – Debate suspenso, prezados amigos. Hora do pão e do vinho.

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