sexta-feira, 24 de junho de 2016

CRISES PERIÓDICAS IV

Acordos e desacordos, harmonia e conflito, paz e guerra, obediência e desobediência às leis, tal como nas épocas anteriores, coexistem no mundo moderno. As armas foram aperfeiçoadas e multiplicadas. A capacidade de destruição aumentou em progressão geométrica. A hipocrisia diplomática sofisticou-se. Competição selvagem e pretensões hegemônicas prosseguem. A segurança do planeta está ameaçada pelo potencial nuclear de algumas nações e pela ação predadora e poluente da humanidade. Contra esse estado de coisas reagem pessoas, grupos e entidades, tanto na esfera internacional como no âmbito interno dos Estados (tratados, convenções, conferências, tribunais, organizações civis, passeatas, greves, interdições).
No curso da história, algumas vozes denunciaram as crises de caráter material, intelectual, moral e espiritual. Oh tempora! Oh mores! Bradava Cícero, em Roma, contra a corrupção dos costumes e as tentativas de golpe contra a república. A crise da nossa época é moral! Repetia o saudoso professor Miguel Reale do alto da sua cátedra na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no curso de especialização em filosofia e sociologia jurídicas, nos idos paulistanos de 1968. A morte poupou o professor do desgosto de ver o serviço sujo prestado por seu filho associado a um senil e recalcado ex-petista e a uma destrambelhada professora. Será isto um sinal da decadência do corpo docente da tradicional escola de direito?  
A humanidade já conheceu reformadores (profetas, políticos, filósofos) que galvanizavam os espíritos. A moralidade era a tônica invariável no discurso dos republicanos, fossem eles democratas ou aristocratas. As previsões eram apocalípticas ou paradisíacas, conforme a posição de quem estivesse a favor ou contra o governo. Assim continuará, porque o humano almeja progresso, bem-estar e felicidade, ao mesmo tempo em que se deixa fascinar pelo insólito, navega na ilusão e faz da mentira munição para convencer e enganar.  
A lei do movimento governa o mundo: gênese e evolução dos seres do simples ao composto, do caos para ordem e da ordem para o caos; astros no céu e partículas no átomo. Universo dinâmico. A matéria é energia concentrada e vibrante. A visão humana não capta plenamente a realidade material e espiritual do universo. O meritório esforço de progredir e de se aproximar da fonte divina do conhecimento possibilita a harmonização do plano individual com o plano coletivo e da esfera corporal com a esfera anímica, através da senda holística. Nexos entre matéria e espírito no interior de um vasto sistema cósmico são revelados enquanto outros permanecem ocultos. A cartesiana separação entre corpo e alma foi posta em xeque; o seu questionamento detona a crise no pensamento racionalista ocidental. 
A saturação cultural provoca mudança nos modelos políticos e econômicos, nos usos e costumes, como aconteceu, por exemplo, nas passagens: (1) do Império Romano para a sociedade européia medieval; (2) do sistema mercantilista para o industrial; (3) do domínio da nobreza e da honra para o domínio da burguesia e do dinheiro; (4) do religioso para o secular; (5) da família gentílica para a família nuclear; (6) do machismo para o feminismo; (7) do corpo coberto para a pública e sensual exibição; (8) do tabu à liberação sexual; (9) do proibido ao permitido.
De acordo com o “I Ching – O Livro das Mutações”, registro da antiga sabedoria chinesa, há pontos de mutação que caracterizam crises, como se depreende dos seguintes excertos: Ao término de um período de decadência sobrevém o ponto de mutação. Tendo yang atingido seu clímax, retira-se em favor do yin; tendo o yin atingido o seu clímax, retira-se em favor do yang.  Mudança e transformação são imagens do progresso e retrocesso. O movimento e o repouso têm suas leis definidas de acordo com as quais se distinguem as linhas firmes e maleáveis. Os acontecimentos seguem seus rumos próprios, cada qual segundo a sua natureza.
Ao prefaciar esse livro traduzido do chinês para o alemão por Richard Wilhelm e do alemão para o português por Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto Correa Pinto (SP, Pensamento, 1982), Carl G. Jung assinala que o acaso tem lugar na mente chinesa; nela, o casual parece mais importante do que o causal; o concreto (realidade empírica múltipla) mais importante do que o abstrato (teoria da unidade no múltiplo). Na opinião de Jung, a causalidade vista como verdade relativa, meramente estatística, é uma espécie de hipótese de trabalho sobre como os acontecimentos surgem uns a partir dos outros, enquanto que a sincronicidade (coincidência dos acontecimentos no espaço e no tempo) significa algo mais do que mero acaso, precisamente uma peculiar interdependência de eventos entre si objetivos. Jung considera anátema o opressivo enfoque pedagógico que pretende enquadrar os fenômenos irracionais dentro de um padrão racional preconcebido. Diz ele: “segurança, certeza e paz não conduzem a descobertas”.
A regeneração é uma ideia presente no misticismo oriental admitida como forma de superar crises e evoluir espiritualmente. A doutrina hebreia da criação e queda de Adão e Eva participa dessa ideia, embora repouse na fé religiosa e na mistificação da realidade. A tese prevalecente fundada na fé científica é a da linear evolução no reino animal, desde a estrutura mais simples (ameba) até a mais complexa (homem). Na sua marcha, a humanidade atravessa crises periódicas.
O manifesto da AMORC (Antiga e Mística Ordem Rosa Cruz) intitulado “Positio Fraternitatis Rosae Crucis” adverte: A excessiva racionalização da ciência é um perigo real que ameaça a humanidade, pois, toda sociedade em que a matéria domina a consciência, desenvolve o que há de menos nobre na natureza humana. Em virtude disso, ela se condena a desaparecer prematuramente em circunstâncias o mais das vezes trágicas.
A ciência opera com a razão e prima pela objetividade. O excesso nessa operação interfere na vida espiritual. O desequilíbrio entre o materialismo e o espiritualismo gera males às relações humanas e à vida no planeta. Ao chegar a extremos no mundo ocidental, a fé religiosa provocou a reação racionalista: a soberania do conhecimento científico. Ao chegar a extremos, a fé científica provocou a reação espiritualista: a soberania do conhecimento intuitivo (cultivo dos valores morais e espirituais para alcançar a luz divina, o amor fraternal e a paz interior).
O pensamento místico funciona como background filosófico para as teorias da ciência. Descobertas científicas podem se harmonizar com crenças religiosas e doutrinas místicas. Os princípios da incerteza e da complementaridade expostos respectivamente pelos físicos Heisenberg e Bohr, por exemplo, foram recebidos com reserva por Einstein, que se apegava ao determinismo. Se, na ocasião do debate, presente estivesse a sua primeira esposa, genial matemática e co-autora da teoria da relatividade, ela certamente lhe teria dito:
- Querido Albert, não seja teimoso. Deus joga dados, sim!

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