domingo, 19 de junho de 2016

CALAMIDADE

Calamidade significa desgraça, catástrofe. O mal que representa é suportado de modo individual ou coletivo. Trata-se de desgraça grande e irreparável que recai sobre uma pessoa, uma ou várias famílias, uma determinada comunidade ou sobre a humanidade. Sua extensão pode ser local, regional ou planetária. A catástrofe pode ser: (1) natural, como inundações, terremotos, maremotos, efeitos desastrosos do choque de um meteoro na superfície do planeta; (2) social, como fome, epidemia, genocídio motivado por diferença de crença ou de etnia, explosão de uma nave espacial, colisão de trens; (3) econômica, como a crise na economia mundial, a implosão do sistema econômico nacional, os efeitos deletérios do fracasso de um plano; (4) política, como o colapso do sistema representativo, a corrupção nos negócios estatais, a guerra, o terrorismo.
Calamidade pública é a desgraça exponencial que atinge um ente político como o município, a província, o estado, a nação, trazendo extraordinário sofrimento à população, enorme prejuízo patrimonial ou grande dano ambiental. Sob este ângulo, o sofrimento ordinário, causado pela má administração dos governantes não se considera calamidade pública, embora seja uma calamidade moral que assola a classe política, ou uma desgraça eleitoral provocada por um povo ainda não desenvolvido culturalmente.
O Vice-Governador do Rio de Janeiro, no interino exercício do governo estadual, decretou estado de calamidade pública. Na verdade, não há situação extraordinária que autorize tal medida. Cuida-se de uma situação ordinária decorrente da má administração da coisa pública. O precedente criado pela esperteza enganosa do Vice-Governador terá efeito dominó, pois todos os estados da federação queixam-se da situação de insolvência ou de estarem à beira da insolvência sem condições de atender decentemente a população. Sobre o festival de propinas, superfaturamento das obras e serviços, o desvio de verbas, todos silenciam. Assim como o governador do Rio de Janeiro, os governadores dos demais estados também pleitearão ajuda financeira ao Vice-Presidente da República que, generoso com o dinheiro do contribuinte, abrirá a burra aos suplicantes. Cuida-se de um modo indireto de comprar votos no tribunal parlamentar favoráveis à destituição da Presidente. Para se garantir na presidência, o Vice-Presidente distribui dinheiro a rodo para os parlamentares, para os juízes, para o funcionalismo e cria milhares de cargos, enquanto reduz os benefícios sociais. Michel é um Robin Hood às avessas: tira dos pobres e dá para os ricos.       
Parcela da população fluminense não questionará o decreto de estado de calamidade pública, até por não perceber suas implicações. A outra parcela, principalmente carioca, por sua proverbial consciência política, certamente questionará. O Rio de Janeiro já foi governado por políticos de primeira grandeza, como Negrão de Lima, Carlos Lacerda, Chagas Freitas, Leonel Brizola. Depois, entrou em decadência sob a direção de garotinhos, rosinhas, serginhos, pezinhos e chiquinhos. Do ponto de vista moral, financeiro, administrativo e político, essa infeliz seqüência foi catastrófica para o Rio de Janeiro, a real e efetiva calamidade.  
A medida decretada pelo Vice-Governador revela esperteza política. A sua iniciativa é tomada quando o processo de impeachment está em curso e a condenação da Presidente já não é tão certa como pensavam os golpistas. Há chances de o processo penal parlamentar terminar com a absolvição da Presidente. Mas, ad argumentandum, ainda que haja condenação, o tribunal parlamentar pode deixar de aplicar a pena correspondente por entender politicamente inoportuna, incompatível com o interesse nacional no momento. Além disto, se houver condenação, a sentença do tribunal parlamentar poderá ser questionada perante o Supremo Tribunal Federal no que concerne aos seus aspectos constitucionais e legais, principalmente quanto à caracterização do crime de responsabilidade. No tipo de estado democrático de direito adotado pela Constituição do Brasil, os direitos fundamentais condicionam a ação dos poderes da república; logo, em consequência, a exaustão da instância política não impede o exame das questões de direito na instância judiciária. Não é demais lembrar que, diferente dos EUA, a separação de poderes no Brasil não é rígida.
O Vice-Presidente da República, no interino exercício da presidência, diz que fará a sua parte e espera que o Vice-Governador do Rio de Janeiro faça a sua. A parte do Vice-Presidente é injetar dinheiro – e muito dinheiro – no Estado do Rio de Janeiro. Aliás, essa esperteza é bem conhecida dos brasileiros. Sempre que há uma catástrofe natural ou social (artificialmente exagerada), os administradores municipais ou estaduais correm para o administrador federal em busca de ajuda financeira. O dinheiro recebido não é aplicado inteiramente nas obras e serviços necessários para reparar os estragos, para eventual reconstrução e para a prevenção de novos infortúnios. Geralmente, parte do dinheiro (quando não a totalidade) vai para os cofres dos partidos políticos ou dos seus caciques, aplicada para fins particulares. A movimentação desse dinheiro não costuma ser bem fiscalizada. Pouca transparência e muita opacidade.   
No atual episódio do Rio de Janeiro, a parte do Vice-Governador, que entende de finanças, é distribuir o dinheiro da ajuda. A parcela esclarecida da população fluminense tem motivos suficientes para desconfiar sobre o destino desse dinheiro e chegar à certeza de que, pelo menos em parte, esse dinheiro azeitará a votação no tribunal parlamentar que decidirá se a Presidente da República permanecerá no cargo. Graças à orientação do Vice-Governador, os deputados e senadores do seu partido votaram a favor do impeachment. Ao invés de o voto ser resultado do individual exame de consciência dos parlamentares, o voto resultou da vontade do cacique e da coerção exercida pela hierarquia do partido. Constrangimento atenuado pela propina e pela promessa de vantagens e cargos na administração pública direta e indireta.

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