sábado, 24 de outubro de 2015

POLÍTICA E SABEDORIA



Segundo a doutrina de Platão contida nos seus diálogos República e Leis, o governo do Estado devia caber aos filósofos. Da sua época até a Idade Média inclusive, o estudo sobre a natureza, o homem, a sociedade e a divindade, era tratado como Filosofia. Na Idade Moderna, diversos ramos do saber foram se despregando da Filosofia. Receberam o título de Ciência. Em termos atuais, a doutrina de Platão significaria que o governo do Estado deve caber a pessoas iniciadas no conhecimento científico e filosófico. Assinale-se que o saber racional também é possível em outras áreas do conhecimento (arte, religião, misticismo) em paralelo com o saber intuitivo e em concorrência com a credulidade.   

Do ponto de vista racional, o bom governo tem essa característica aristocrática, mesmo no regime democrático. Os mais bem dotados do ponto de vista moral e intelectual devem governar. Atualmente, no Brasil, essa qualificação ainda é apanágio da magistratura. A maioria dos legisladores e administradores brasileiros carece de tal qualificação. Isto não significa ausência de juízes desonestos desde a base até a cúpula do sistema judiciário; significa isto sim, que a imoralidade no Judiciário é a exceção enquanto que no Legislativo e no Executivo a imoralidade é a regra. Aos partidos políticos cabe oferecer aos eleitores candidatos moral e intelectualmente bem preparados para legislar e administrar. Aos eleitores cabe escolher, entre os candidatos, aqueles que melhor atendam aos anseios da nação.

Entre homens de natureza desigual a igualdade faz-se desigualdade se não se mantém entre eles a relação correta. Deste pensamento de Platão, seu discípulo Aristóteles tirou a célebre definição de justiça: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na proporção em que se desigualam.

Não só Platão como também outros pensadores antigos e modernos olhavam com desconfiança o governo do Estado pelo povo. Eles entendiam que o governo do Estado por pessoas da camada pobre e ignorante da população era contrário à natureza das coisas. O lógico, o natural e o desejável, era que esse governo coubesse às pessoas mais bem preparadas da nação.

A história política do Brasil no Império, referente ao período da regência, fornece candente exemplo. A Cabanagem, movimento social deflagrado na então Província do Grão-Pará, região amazônica, proveio das agruras daquela gente pobre e trabalhadora (sertanejos, ribeirinhos, negros, caboclos), cujas habitações pareciam cabanas, de onde derivou o seu nome (1835 a 1840). Os cabanos pleiteavam melhores condições de vida. Desatendidos e reprimidos pelo governo, reagiram e partiram para a luta armada. Sem planejamento, guiavam-se pela emoção e pela intuição. Expulsaram o Presidente da Província, assumiram o governo, mas não sabiam governar. Embora insatisfeitos com o governo anterior, faltava-lhes ideário e projeto de mudança. Só vontade e insatisfação eram insuficientes para governar. O movimento fracassou e o governo da província retornou ao poder central.

No período republicano, o Brasil foi governado por algumas pessoas bem preparadas do ponto de vista moral e intelectual. O ex-presidente Itamar Franco é o exemplo mais recente desse fato. Houve, também, governantes intelectualmente preparados e moralmente deficientes. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, professor universitário, é o exemplo mais recente e bem acabado desse fato vergonhoso. No que tange ao ex-presidente Luiz Inácio da Silva, em que pese a sua origem humilde, ele não era mais operário, nem pobre e nem ignorante, quando ocupou a presidência da república. Tanto assim, que foi reconhecido como estadista pela comunidade internacional. O povo o reelegeu. Entre os predicados da atual Presidente da República, Dilma Rousseff, notam-se: a boa formação moral, a forte personalidade, o caráter sem jaça e razoável preparo intelectual. Este perfil dá a medida do seu provável desconforto ante a contingência de lidar com os “300 picaretas” do Congresso Nacional, a começar pelos dois pilantras que presidem a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.  

No que concerne à justiça como princípio da divisão do trabalho, Platão diz que a busca da resposta para a questão sobre a essência da justiça não é uma brincadeira infantil, pois exige um olho aguçado. Tal afirmativa merece ponderação. A criança pode não definir o que seja justiça, porém sente o que é justo e o que é injusto; sente que não é justo o pai bater na sua mãe; que não é justo o amiguinho lhe arrebatar o brinquedo; que não é justo ficar de castigo por ordem da professora porque o colega lhe chamou a atenção durante a aula; que não é justo ser caçoada pelos colegas por ser gorda, vesga ou desajeitada.  

Cada um só pode cuidar de apenas um dos negócios relativos ao Estado, ou seja, daquele para o qual, por natureza, se encontre mais habilitado. Justiça é cada um fazer a sua parte, sem imiscuir-se em todas as coisas possíveis. Justiça consiste em que cada um tenha e faça o que lhe cabe. Nestes conceitos de Platão está o embrião filosófico do princípio da separação dos poderes no Estado e da divisão do trabalho na Sociedade.   

Que Estado é esse que transborda de liberdade e descompostura no uso da palavra, onde todos podem fazer sempre e livremente o que bem entendem? A fome insaciável de liberdade, supostamente o bem mais belo da democracia, só pode conduzir necessariamente à sua própria dissolução e à tirania. O ímpeto da liberdade há de introduzir-se nas casas dos indivíduos, instaurando-se essa aversão pela ordem; os pais temem os seus filhos; os mestres, os seus discípulos. Parece que Platão falava ao Brasil de hoje.

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