Corria o ano de 1948. A cidade de Ponta
Grossa se ufanava dos títulos “Princesinha dos Campos” e “Capital Cívica do
Paraná”. Usos provincianos. Eu presenciava uma domingueira tarde dançante no Verde, clube recreativo dos brancos
remediados, animada pelo conjunto musical Jazz
Band Santana organizado e liderado por meu pai, baterista, apelidado de
“Paulistinha” por ser baixinho para o padrão europeu, nascido e criado no
bairro paulistano de Santana, onde passou a juventude. Cursou o Liceu de Artes
e Ofícios de São Paulo antes de mudar para Ponta Grossa com as suas duas irmãs
e o seu pai.
Meus olhos de menino curioso focalizam o moço alto,
terno de fazenda quadriculada tipo “Príncipe de Gales”, paletó jaquetão, calça
vincada por ferro quente de passar roupa, como era usual, camisa branca, abotoaduras,
gravata azul marinho, sapatos pretos bem engraxados. Disto eu entendia, pois, nos
fins de semana, a fim de ganhar uns trocados, que para mim significavam uma
fortuna, eu engraxava os sapatos dos adultos no Ponto Azul, estação central dos ônibus urbanos. Em um dos lados da
estação, na calçada oposta, localizava-se o Cine Império e do outro lado, a Praça
da Igreja do Rosário e o Colégio Regente Feijó.
O moço caminhava em direção a uma das mesas à beira da
pista. Convidou a moça para dançar. Magra, se comparada ao tipo roliço então na
moda, gestos elegantes, ela se levanta com um sorriso simpático. O par começa a
bailar; passos sincronizados e ágeis. Os dois estavam alegres. O vestido da
moça era largo e comprido até a canela, justo na fina cintura, fazenda leve que
denunciava a anágua por baixo. O sapato de salto alto e fino exibia a curva do
peito do pé de onde subia a meia de nylon da cor da pele. Pernas torneadas e
esteticamente bem dimensionadas que permitiam imaginar coxas proporcionais no
diâmetro e na extensão. Naquela quadra da vida social pontagrossense, fora da
zona do meretrício e da intimidade conjugal, era muito difícil ver as coxas das
mulheres. O que o vestido escondia ficava por conta da imaginação dos garotos e
dos adultos.
Os dois conversavam e riam enquanto dançavam. Do ângulo
inferior de visão formado por minha pequena estatura de criança, a moça parecia
alta e esbelta. Os bastos cabelos, compridos e castanhos claros, emolduravam o
belo rosto. A boca contornada por lábios pincelados de carmim, exibia dentes
que pareciam pérolas enfileiradas. Os seios romperiam o tecido do bonito
vestido se não fossem contidos pelo sutiã ali oculto e que um discreto decote
permitia apenas vislumbrar. Descontraída, a moça escapava ao padrão
comportamental da década de 40. Aquele proceder tisnava de leviana qualquer
moça da cidade. A mulher que “se abria para os homens” (expressão de menoscabo
usada naquele tempo) era socialmente mal conceituada. O costume vigente exigia
moça recatada, sem muita conversa em público e apenas esboço de sorriso, como o
da Gioconda. No baile, mão esquerda contra o peito do parceiro para evitar exagerada
aproximação dos corpos. Depois de nova dança, se a moça simpatizasse com o
rapaz, permitia colar o rosto, porém mantendo espaço entre os corpos. Quando
esse espaço era eliminado, no enlevo da música bem compassada, do romântico
bolero, geralmente causava embaraço ao moço no momento de acompanhar a moça de
volta à mesa. Em tal circunstância, o paletó tinha uma serventia adicional:
ajudava o desprevenido moço a caminhar levemente arqueado ao lado da moça.
Eu estava hipnotizado pela silhueta feminina. A moça
alçara o braço esquerdo sobre o ombro do parceiro e este a enlaçara pela cintura.
Não sobrava espaço entre os dois corpos. Eu não conseguia ver indecência
naquela cena. Achei que havia algo errado comigo, pois segundo as aulas de
catecismo e a opinião da comunidade, eu devia classificá-la de pecadora e desavergonhada.
O fiscal do salão circulava na pista. Advertiu o casal. Desmancha-prazeres! Quebrou
o encanto. Estava tão bonito de ver as evoluções dos bailarinos! Voltei sozinho
e entristecido para casa. Papai só retornava depois de encerrado o baile. O
clube não ficava longe da nossa casa e nem da Escola de Aplicação onde eu estudava. Morávamos numa pequena casa
de quatro cômodos ao lado da Padaria Modelar, dos Irmãos Wieschtek, na Rua
Teodoro Rosas quase esquina com a Rua 7 de Setembro, no centro da cidade. Dos
quatro irmãos Wieschtek, um deles, Mieschka, embora alemão “jus sanguinis”, lutou
na Itália como soldado da força expedicionária brasileira na segunda guerra
mundial, para tristeza do pai dele, nazista confesso. Outro deles, Gliesson,
caçula temporão, um ano mais velho do que eu, era meu amiguinho; brincávamos
juntos. Certa vez, encontrei com ele na Rua Marechal Deodoro, em Curitiba. Eu retornava,
após o almoço em casa, à firma na qual trabalhava. Fiquei alegre, pois não nos
víamos há quase nove anos. Ele não se contagiou com a minha ingênua alegria. Permaneceu
sério na farda verde-oliva e muito econômico nas palavras. Gliesson já não era aquele
amiguinho da nossa infância.
Nunca mais esqueci aquela moça. Fiquei impressionado, não
apenas por sua elegante postura e bela aparência, como também, por seu modo de
ser, por sua conduta desinibida, corajosa e vanguardeira que, a partir da
década de 60, tornar-se-ia mais comum e socialmente aceitável. Os usos e costumes
mudam com o tempo. Nos anos 30, o maxixe era dança escandalosa praticada nas
cidades mais licenciosas, como Rio de Janeiro, Salvador e Recife. No Sul
aristocrata e conservador, essa dança era censurada. Nos anos 60, chegaram o
rock´n roll, o yé-yé-yé e outros ritmos importados. A partir dos anos 80, surgiram
novos ritmos brasileiros e novas coreografias, tais como, a lambada, a dança da
garrafa e os esfregões em que a moça de short ou minissaia, requebrando,
flexiona as pernas, descendo e subindo, roça as nádegas no pênis encoberto do
parceiro. A liberação feminina ocorreu nas profissões, nas artes e nos
costumes. Ponto positivo da evolução cultural. A sensualidade libertina e a
pornografia que degradam a mulher foi o ponto negativo dessa evolução.
Ao reler este depoimento, antes de publicá-lo, notei uma
questão sobre a qual ainda não havia pensado. Por que a cena daquela dança me
impressionou tanto a ponto de nunca mais esquecê-la? A resposta me foi dada
pelo próprio texto na passagem onde confesso que além da beleza e elegância, o
que mais me impressionou naquela moça foi o seu modo de ser.
Sim, foi isto mesmo. Ainda menino, eu não tinha
consciência da densa e repressora educação que recebia na família, na escola e
na igreja. Escravizado pelas regras impostas por meus pais e por meus avós, pelas
obrigações, proibições e doutrinações transmitidas no ensino primário, nas aulas
de catecismo, no confessionário, nas missas e nas convenções sociais, eu não
percebia estar sendo vítima da castração própria da atmosfera social da cidade
em que vivia. Tratava-se de uma ética social asfixiante. Essas normas, lições e
admoestações tinham sua origem numa parcial e estreita visão de mundo, no
legado colonial e imperial, na crença religiosa predominante, no superior interesse
da classe abastada, no preconceito social, no autoritarismo reinante na
família, na sociedade e no Estado. Então, admirei naquela moça a libertação dos
laços cerceadores de uma vida plena. Nela, vi a liberdade que me faltava.
Talvez, em outro cenário, aquela moça também sofresse limitações semelhantes às
minhas e às de outras crianças e adolescentes daquela e de outras gerações. Disto
não cogitei na ocasião. Eu a vi uma única vez, naquele domingo à tarde. Atualmente,
ela deve estar com 80 anos de idade, ou pouco mais. A cena por ela espontaneamente
protagonizada cristalizou-se na minha memória como símbolo da liberdade, da
beleza e da alegria de viver.
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