Dormia eu o sono dos justos
quando fui acordado por uma serenata. O pernilongo zumbia em meu ouvido. Agi instintivamente:
desferi tapa contra o meu rosto no ponto onde o pernilongo zumbia. A intenção
era a de liquidá-lo. Depois, em pleno estado de vigília, refleti: na hipótese de morte do pernilongo eu seria
acusado de pernilongecídio se o fato chegasse ao conhecimento dos ecologistas.
Era só o que me faltava: ser processado, preso, multado e eletrocutado na
cadeira elétrica, como pernilongecida.
Levantei-me acendi a luz e
procurei pelo infeliz. O que digo? Infeliz nada! Ele devia estar muito feliz
com a pança cheia do meu sangue, pois não encontrei o cadáver. Vasculhei o
quarto, o close e o banheiro. Nada do seresteiro desafinado. Fui à dispensa,
apanhei o tubo de inseticida e voltei disposto a tirar aquele animal da toca.
Borrifei os aposentos e fui deitar no sofá da sala. Não demorou muito para o cantor
chegar. Fiquei atônito. Será que ele escapou do quarto durante a insetifugação?
O mais provável é que fosse outro mosquito, um irmão, um cunhado ou a fêmea
esposa do primeiro. Quem sabe? Concentrei-me a fim de prender o bicho entre as
palmas das minhas mãos. Nova dúvida me assalta: se for fêmea e estiver prenha? Ao matá-la eu provocarei um aborto,
impedirei um inocente de vir ao mundo. Como eu iria conviver com essa terrível
dor na consciência?
Desisti de cometer aquele inseticídio
mesmo sem testemunha alguma para me denunciar. Optei pela tranqüilidade da consciência.
Deixei o sofá e fui ao escritório. Ali esperaria o retorno do sono, lendo e
escrevendo. Lá estavam o Pretinho e a Laika. Notei a ausência da Brigitte. Cogitei
de ela estar no interior do automóvel. Ao menor descuido ela entra no carro e a
gente nem percebe. Rafael possivelmente se descuidou. Meu filho passa fins de
semana aqui em casa para os costumeiros saltos de pára-quedas, seu esporte
predileto. Noto que ele está dormindo. Acho que não tem pernilongo no quarto
dele. Eu fui o premiado!
Olhe quem entra: a Brigitte. Ela
estava ao lado, no ateliê da Jussara. Os três (Pretinho, Brigitte e Laika) fizeram
do meu escritório um dormitório. Eles se acomodam nas poltronas. Vingança deles
porque não os deixo dormir dentro de casa. Eles só desfrutam dessa mordomia
quando a Jussara está presente. Como ela está viajando eles dormem fora. Lugar
de cachorro é no quintal zelando pela segurança da casa. Eles parecem discordar.
Jussara paparica a cachorrada. Permite que eles fiquem dentro de casa e às
vezes chega ao ponto de preparar a cama deles no quarto dela. Eles dormem como
frades depois do jantar; acordam pela manhã com a cara mais lavada deste mundo,
pedem para sair e esvaziam a bexiga na grama. Quando a Jussara está no Rio
visitando os filhos ou em Curitiba visitando a mãe, eu acabo com a mamata dos
três. Comigo é na dureza! Dou a eles as rações da manhã e do final da tarde.
Não deixo faltar água na tigela. Faço cafuné em cada um porque eles estão
saudosos da patroa. Eles disputam os agrados. Passeio com eles pelo bairro.
Deixo-os fora do canil, em liberdade, porque eles sentem falta da patroa. Tudo
bem. Mas dormir em casa, isto não! Ante os olhares súplices do Pretinho e o
“farol baixo” da Laika, condoído, abro exceção e concordo que assistam à
televisão comigo até as 22,00 horas. Eles se acomodam no sofá da sala: eu no
meio, o Pretinho de um lado, a Laika de outro e a Brigitte no tapete em frente,
junto aos meus pés. Dormem a maior parte do tempo. Necessito de engenho e
paciência para levantar dali e ir ao banheiro. Todos me acompanham e depois
voltam comigo ao sofá. Redobro os cuidados com a minha coluna lombar. Cumprido
o horário, lá vamos nós em procissão para a porta da cozinha, por onde eles
saem e se dirigem ao escritório, embora no ateliê as camas estejam adrede
preparadas. Vou para o quarto. O zumbido do mosquito interrompe o meu
repouso.
Estou sozinho aqui no escritório
escrevendo sobre gente, cães e insetos. Constato o quanto sou frágil! Um tipo
de mosquito me tira da cama; mosquito de outro tipo pode me tirar do mundo. Caramba!
Dá para entender o temor de guerra bacteriológica. Sonolento, volto para o sofá
da sala, pois o efeito do inseticida no quarto ainda não passou. Lá vem outra
vez o mosquito ou a mosquita. Noite de luar como tantos luares que me ouviram
cantar ao som do violão nas madrugadas de Curitiba e das praias paranaenses. No
silêncio deste céu estrelado e enluarado, sem o meu plangente, consulto a irmã
Lua sobre o tormentoso problema.
Estimada irmã Lua. Há um mosquito, macho, ou fêmea, tentando sugar o
meu sangue. Creio que não devo permitir, pois o sangue é plasma sagrado, o rio
da vida que banha o meu corpo. Estou inclinado a matar o irmão mosquito (ou a
irmã mosquita). Como procederei?
Estimado irmão Antonio. A questão ora proposta é da alçada do irmão
Sol. Solicite audiência pela manhã. Da luz do nosso irmão Sol virá sábia
orientação.
Luninha, mana querida (no jeito carioca de ser, eu entrei logo na
intimidade; tratamento solene e protocolar não é a nossa praia). Até raiar o dia, o irmão mosquito (ou a irmã
mosquita) terá sugado o meu sangue. A espera pela audiência será fatal.
Antoninho, mano querido (pela ternura do tratamento sinto que ela
correspondeu aos meus sentimentos). Lembre-se
do mandamento: “não matarás”. Aplique-o
em todos os dias da tua existência. O irmão mosquito sorverá apenas uma gota do
teu sangue. Também para ele o sangue é sagrado e você terá praticado uma boa
ação aos olhos de deus.
Meu prateado amor (avancei na intimidade). Você não só inspira o coração do poeta e do seresteiro como também dá bons
conselhos a quem te procura. Por isso mesmo, fiquei triste quando aqueles
americanos do norte violaram a tua virgindade. Os conquistadores pousaram sobre
o teu luminoso corpo cor de prata e após alguns toques, enfiaram o mastro.
Estou agradecido pela tua carinhosa atenção.
Pensando bem, este mundo é de padecimentos. O irmão
mosquito e a irmã mosquita passam fome por falta de quem lhes doe sangue. Se a
irmã for pernilonga prenha trará mais uma criatura ao mundo para sofrer. Ela
própria sofrerá as dores do parto. Além disto, a irmã Lua aconselhou a aplicar
o mandamento nos dias e silenciou quanto as noites. Há, pois, um tácito
significado neste silêncio: a noite é o
espaço da liberdade. Certo de que eu estava sendo instrumento da vontade
divina e praticando uma ação que me abriria as portas do paraíso (não sei se o
paraíso tem portas, mas vá lá que tenha) decidi: vou acabar com o sofrimento dele (ou dela). De modo firme apanhei o
tubo de inseticida. O inseto pousou – resolvi substituir o tratamento, pois se
tornasse a falar em irmão mosquito ou
irmã mosquita eu deixaria de fazer a
vontade de deus por mero sentimentalismo; o raio de Zeus poderia me fulminar;
lembrei ainda, que para viver é necessário matar verduras, legumes, frutas,
bois, galinhas, peixes e em legítima defesa, até humanos; inseto me pareceu mais adequado pela sonoridade – então, como eu ia
dizendo, o inseto pousou contra a parede pintada de amarelo claro, descuido que
o levou a visitar os ancestrais. O contraste ajudou a pontaria. Desferi o tiro
letal. O inseto despencou. Fiquei triste, mas com a certeza de ter cumprido o
meu santo dever. Orei pela alma daquela criatura e de todos os seres viventes
do universo. Finalmente, dormi em paz.
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