sábado, 12 de outubro de 2013

EXTASE



O CAMINHO DAS PEDRAS

Os pensamentos, sentimentos e comportamentos contraditórios do ser humano devem ser debitados à sua natureza dual e bipolar: demoníaca (negativa e positiva) e angelical (negativa e positiva). O mesmo indivíduo é capaz de maldade e de bondade; de mudar de humor no transcorrer do dia e da noite. Quando os polos negativos prevalecem sobre os positivos e o indivíduo se mostra nocivo à sociedade ou prejudicial a si próprio, a necessidade de controle se impõe. No presídio, o assassino revela-se bom companheiro e até se converte em evangélico fervoroso. No hospício, o desequilibrado se mostra solidário e acessível ao tratamento. Tranqüilo no lar, o indivíduo se torna uma fera na rua, no seu ambiente de trabalho ou na reunião social, ao se deparar com situação que de algum modo o ameaça, ofende ou desagrada. A reação feroz pode levar à luta corporal e ao homicídio. Estupefatos, amigos e parentes comentam: não fazia mal a um inseto, como foi capaz de matar?
O aspecto demoníaco do ser humano decorre das exigências orgânicas e do egoísmo. O polo positivo da força demoníaca orienta a procura de satisfação dos apetites e necessidades naturais e dos meios de reproduzir e conservar a vida; desencadeia luta pela sobrevivência, defesa própria e do grupo a que pertence o indivíduo contra agressões externas; desperta paixão pelo bem-estar e pelo desenvolvimento material e intelectual. O polo negativo da força demoníaca conduz ao abuso, às atrocidades, à guerra, ao ódio, à inimizade, à maledicência, à inveja. A crença antiga em um gênio do mal ou anjo caído com o nome de Satã, Diabo ou Lúcifer, deve-se à transferência psicológica desse polo negativo. O humano concentra toda a sua maldade nessa ficção por ele criada. Tenta, assim, negar a natureza demoníaca da sua própria pessoa. O indivíduo justifica-se do mal que praticou afirmando estar possuído por Satã no momento da ação ou da omissão ilícita. O chefe de família abandona a esposa e os filhos por uma nova paixão. A culpa é do Diabo. Louca de desejo, a moça entrega sua virgindade, engravida e se coloca como vítima de Lúcifer.
O aspecto angelical do ser humano decorre das exigências espirituais e do altruísmo. O polo positivo da força angelical responde por todas as formas de amor (bondade, justiça, compaixão, solidariedade, caridade, amizade, simpatia). Essa força eleva a consciência do indivíduo ao mundo espiritual em alta frequência vibratória e desperta o senso moral, a vocação para a paz, o sentimento do sagrado e a aspiração à santidade. O polo negativo da força angelical faz o indivíduo resistir às exigências do corpo e desprezar o mundo material. As pessoas jejuam, flagelam o próprio corpo, isolam-se do convívio social e se dedicam exclusivamente ao culto da divindade. O polo angelical negativo faz a pessoa sentir-se vilificada ante a necessidade de urinar, defecar, liberar gases intestinos e transar sexualmente. A pessoa sente-se mortificada por estar obrigada pela natureza a arrostar a condição animal em toda a sua crueza. A crença de ser superior ao reino animal e de não ser o resultado de uma evolução biológica sofre esse espancamento diário. O seu corpo será decomposto após a morte tal qual o corpo do seu animal de estimação.
Mediante técnica apropriada é possível transitar do polo negativo ao positivo. A alquimia mental bem aplicada controla os ímpetos negativos. A operação alquímica não aniquila a bipolaridade, pois se o fizesse, o indivíduo deixaria de ser humano. Atributos negativos e positivos são da essência humana. Essa bipolaridade está presente no universo. As leis físicas comandam a natureza demoníaca e as leis espirituais comandam a natureza angelical dos seres. Essas duas espécies de lei emanam da mesma fonte que os antigos gregos chamavam de nous. A distinção entre ambas é funcional: atuam em campos vibratórios de frequências desiguais. A existência de leis tanto na dimensão material como na dimensão espiritual do mundo é matéria de fé. A ciência pressupõe tal existência ao observar regularidades no mundo físico. Por analogia, os espiritualistas postulam uma legalidade também para o mundo espiritual. Na opinião de Norbert Wiener, a ciência é um modo de vida que só pode florescer quando os homens são livres para ter fé; quantidade alguma de demonstração poderá provar: (i) que a natureza está sujeita a uma legislação; (ii) que a probabilidade é uma noção válida (Cibernética e Sociedade. São Paulo, Cultrix, 1968, p. 189/190).
No mundo da cultura, o legislador, orientado pela necessidade, pela utilidade e pelo interesse público ou privado, elabora leis visando a uma finalidade. Essas leis vigoram no tempo e no espaço enquanto eficazes; mudam de sentido segundo o entendimento, a conveniência ou a malícia do intérprete e aplicador (chefe de governo, ministro, juiz). As leis são substituídas quando o legislador se curva às exigências de natureza econômica, política ou social e busca um novo enquadramento. Nos casos extremos, a substituição das leis fundamentais implica nova ordem jurídica e novo regime político. A experiência dos povos formata o mundo da cultura. Em sintonia com a realidade, Lewis Mumford, notável sociólogo do século XX, lembra que o homem não se limita à produção econômica, mas aspira ao domínio das artes e das ciências; a função do trabalho é a de prover o homem de subsistência; o sentido social do trabalho deriva das atividades criadoras que ele torna possível (A Condição de Homem. Porto Alegre, Globo, 1956, p. 11/12). A dimensão social do mundo da cultura compreende instituições como a família, a escola, a igreja, o clube, a associação civil e as atividades físicas e intelectuais como esporte, técnica, arte, ciência, filosofia.  
Os seres da natureza são expressões da alma genetriz do mundo. Apesar da multiplicidade física na imensidão do espaço (planetas, galáxias e universos no macrocosmo; átomos, moléculas e células, no microcosmo) o mundo é um só na dupla dimensão material e espiritual. Nessas dimensões há gradação, faixas vibratórias de diferentes frequências. Os humanos nem sempre estão conscientes disto. Assim como os outros animais, o humano ocupa limitado campo vibratório. O que vai além ou está aquém desse campo escapa à sua percepção sensorial mesmo quando utilizados instrumentos para aumentar a audição e a visão tais como: antenas, estetoscópio, óculos, binóculos, microscópio, telescópio. No interior desse campo a experiência física pode ser compartilhada e expressa no plano conceitual. De modo consciente, o humano atua por meio da prece, de rituais, dos estudos e da cognição intuitiva e racional. A mútua troca de conhecimentos contribui para o avanço e aperfeiçoamento dos costumes, da técnica, da arte e da ciência. Percebe-se o valor da ação planejada, ordeira e solidária, da vantagem que o cumprimento dos deveres e o cultivo das virtudes trazem para um convívio feliz e pacífico.
A experiência espiritual de cognição transcende aquele campo vibratório do mundo material. Cuida-se de experiência personalíssima, refratária às explicações racionais. Neste passo, tem cabimento o solipsismo de Górgias (400 a.C.). Difícil traduzir e transmitir o conhecimento advindo desse êxtase. Mais fácil ensinar a técnica para que o outro vivencie a experiência por si mesmo. Com a prática e no devido tempo o indivíduo encontra o seu próprio caminho, experimenta a autêntica humildade e deixa de se colocar como o centro da atenção de Deus.

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