sábado, 7 de setembro de 2013

DEGENERESCÊNCIA



O CORPO A MENTE E O TEMPO

Mens sana in corpore sano – ideal romano que aprendi quando cursava o ginásio no Colégio Estadual do Paraná (1950 a 1954). Esse ideal inspirava nossas aulas práticas de educação física. O frio curitibano era um desafio. Exigia coragem para entrar naquela piscina de ladrilhos, água límpida e bem cuidada. Em uma das pontas situavam-se dois baixos trampolins de mola, um de cada lado; entre eles e a separá-los, erguiam-se duas altas plataformas para mergulhos ousados, simples ou acrobáticos. No fundo da piscina havia estreitas e paralelas faixas de ladrilho preto, sentido longitudinal, que serviam de guia ao nadador. Na quadra coberta e fechada jogava-se vôlei e basquete. Ao ar livre (quando não chovia) no campo e na pista de atletismo a turma jogava futebol, arremessava dardo e peso, corria, saltava obstáculos e fazia ginástica. Tudo sob a orientação e vigilância do professor. Os alunos de melhor desempenho em cada modalidade esportiva e atlética eram selecionados para representar o colégio nas olimpíadas estudantis. Os maristas (Colégio Santa Maria) eram nossos mais temíveis adversários. Nas arquibancadas, alegre e jovial agitação das torcidas.  
Ao pleno desenvolvimento do corpo segue-se a degenerescência. Com a passagem do tempo o desgaste se faz notar. Para os ativos, os dias se sucedem com rapidez; para os inativos, os dias são pachorrentos e nostálgicos. Visão e audição perdem acuidade, braços e pernas perdem agilidade, lembranças embaralhadas, assuntos repetidos. A dificuldade em extrair o material depositado na memória atrapalha a associação típica do pensar. Nessa fase, a lucidez procede mais da intuição do que do raciocínio. O processo intuitivo dispensa as intermediárias operações da inteligência; a percepção é direta e imediata.
A lei brasileira considera idosa a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos. Todavia, sob a lei da natureza e conforme o estado físico e mental, a pessoa pode se considerar idosa a partir dos 90 anos de idade. Independente da escolaridade, a pessoa idosa contemplará o passado e o presente com o filosófico olhar que o tempo e a experiência lhe proporcionaram.
Sofre mais aquele que pretende ser jovem na velhice. Manter-se jovem de corpo é uma impossibilidade biológica. As leis da natureza atuam indiferentes aos artifícios humanos. Essa realidade não desmerece os cuidados da pessoa idosa com o corpo. Ao contrário, mostra-se recomendável o cultivo de hábitos morígeros como a dieta balanceada no comer e beber; prover-se de proteínas, sais minerais, cálcio; caminhar e fazer ginástica regularmente.
Manter-se jovem de espírito é outra impossibilidade e um engano axiológico. Idade tem o corpo e não o espírito. Juventude não é um valor e sim um período da vida com suas descobertas e seus malogros. Há jovens saudáveis e doentes, eficientes e deficientes, honestos e delinqüentes, ingênuos e ardilosos.
Para cada faixa etária há procedimentos adequados que trazem saúde e alegria à existência humana, tais como: nutrir pensamentos construtivos e bons sentimentos, manter a mente ativa, meditar, orar, ouvir música, cantar, dançar, dedicar-se a alguma arte ou profissão, praticar esporte, fazer o que gosta se estiver ao seu alcance e a ninguém prejudicar, transar sexualmente, ver no horizonte o sol surgir do mar e se esconder atrás da montanha, olhar as ondas se espreguiçando na areia, contemplar as estrelas, curtir a tempestade, observar os pingos da chuva (como na canção: é de manhã vem o sol / e os pingos da chuva que ontem caiu / ainda estão a brilhar).
Para o conúbio do ano, recomenda-se ao idoso heterossexual: (1) preparar-se com seis meses de antecedência {suaves estimulantes endócrinos, evitar droga forte cujos efeitos colaterais são desagradáveis como os do viagra}; (2) transar com quem tenha empatia {apesar de a relação sexual ser animalesca, com carinho fica mais suave}; (3) no dia da conjunção carnal não se afobar, pois a ansiedade prejudica a ereção; (4) não ejacular mais de uma vez, pois o excesso pode causar enfarte. Mutatis mutandis, a receita serve também para os idosos heróicos e felizardos que conseguem transar duas vezes ao ano.
A personalidade anímica (vulgarmente tratada como espírito ou alma) é infensa à ação do tempo; não é jovem, nem velha; está fora da jurisdição de Cronos. Entretanto, o budismo e doutrinas semelhantes admitem a influência do tempo no mundo espiritual; ensinam que a personalidade anímica amadurece vivendo encarnações no decorrer dos séculos; que seres iluminados (Bodhisattva) permanecem na roda das encarnações para ajudar a humanidade.
“Alma velha, sabedoria acumulada no curso de várias encarnações” constitui pensamento espiritualista (hinduísta, budista, espírita) que satisfaz a vaidade de quem pretende ser mais iluminado e evoluído do que o seu semelhante. Tal pensamento enseja hierarquia. Tal vaidade impulsiona competição: (i) no seio do grupo, causando cisões; (ii) entre pessoas de crenças distintas, gerando conflitos; (iii) entre escolas esotéricas, igrejas, terreiros de umbanda, centros espíritas, alimentando disputas pela posse da verdade e pelo mercado da fé.
Segundo a escritura cristã, ao perceber competição entre os apóstolos, Jesus teria dito: o que entre vós é o maior torne-se como o último e o que governa seja como o servo; todo o que quiser tornar-se grande entre vós, seja o vosso servo e todo o que entre vós quiser ser o primeiro seja escravo de todos (Bíblia, Novo Testamento, Lc 22: 26 + Mc 10: 43/44 + Mt 20: 26/27). Na última ceia antes da crucificação (de acordo com o evangelho, houve comilança depois da crucificação até o ressurgente subir aos céus) dirigindo-se aos apóstolos, Jesus teria dado um mandamento específico sobre o amor fraterno visando a afastar rivalidade entre eles: “Dou-vos um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim, também, vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisto, todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Bíblia, NT, Jo 13: 34/35 + 15: 9). Anteriormente, quando ensinava no templo, Jesus havia reduzido os dez mandamentos de Moisés a dois apenas: (1) amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo teu espírito; (2) amarás teu próximo como a ti mesmo. Nesses dois mandamentos se resumem toda a Lei e os Profetas (Bíblia, NT, Mt 22: 37/40 + Mc 12: 28/34 + Lc 10: 25/27).   
Admitindo-se – para fins de argumentação – que a personalidade anímica passa por um processo evolutivo, verificar-se-á a falta de instrumento racional para medir-lhe o estágio. A medida importará em julgamento moral e, neste caso, cabe a advertência do evangelho atribuída a Jesus: “não julgueis e não sereis julgados, porque do mesmo modo que julgardes sereis também vós julgados e com a medida com que tiverdes medido também vós sereis medidos; primeiro tira a trave de teu olho e depois enxergarás para tirar o argueiro do olho do teu irmão” (Bíblia, NT, Mt 7:1/5 + Lc 6: 37/42).
Diante da realidade histórica do mundo ocidental, verifica-se que os preceitos supostamente ditados por Jesus não ecoaram no espírito daqueles que se intitulam cristãos (católicos + protestantes). O mandamento do amor fraterno só vigorou entre os apóstolos enquanto Jesus estava com eles. Depois veio a disputa pela liderança, o choque dos egos e o desfile das vaidades que permanecem até hoje. No curso da história houve cismas dos quais resultaram igrejas cristãs rivais. A sede mercadológica no século XX multiplicou as seitas protestantes e provocou nova corrida do ouro. A hipocrisia campeia entre os infiéis que se apresentam como fiéis. Da consciência, porém, o indivíduo não escapa. Possível enganar o outro, mas não a si próprio. O indivíduo tenta seduzi-la com um manto cravejado de pedras preciosas, porém a consciência o desnuda na sua essencial transparência.

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