Nas sessões dos dias 11 e 12 de setembro de 2013, os
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) discutiram sobre o cabimento do
recurso de embargos infringentes em ação penal originária (ação que começa e
termina no tribunal por disposição expressa da Constituição). O público assistiu
ao espetáculo nada edificante da costumeira balbúrdia, da falta de cortesia e
de serenidade, da mistura da fase dos debates com a fase da votação, dos pronunciamentos
paralelos e simultâneos, da interrupção abrupta de quem está proferindo voto, da
transgressão à ética judiciária. Ao invés de manifestar a discordância de
maneira educada e amistosa na sua vez de votar, o ministro atropela e menoscaba
o colega; esquece-se de que no julgamento da ação ou do recurso o voto é sentença
individual que flui da consciência, da convicção, da formação moral e jurídica
do juiz. Se o voto vai se somar à maioria ou à minoria é o que menos importa. O
respeitoso silêncio do público quando um juiz está proferindo o seu voto devia
ser imitado pelos outros juízes; respeitar-se-ia a pessoa do juiz, a
instituição que ele encarna e a nação que ele representa. Preito à justiça
indica maturidade política de um povo.
No processo judicial, embargo é recurso utilizado pela parte com o propósito de impedir
que uma decisão produza efeito imediato. O vocábulo é empregado no plural: embargos. A legislação processual admite
três modalidades de embargos: (I) divergentes; (II) declaratórios; (III)
infringentes. Os embargos de divergência
são opostos quando matéria igual é decidida de modo diferente por órgãos
distintos (a decisão de uma câmara ou de uma turma difere da decisão de outra
ou do plenário sobre o mesmo assunto). Ao prover os embargos de divergência o
tribunal pacifica a matéria e fixa jurisprudência para os casos semelhantes. Os
embargos de declaração visam a
escoimar a decisão recorrida sem quebrantá-la. A lei processual menciona a
obscuridade, a ambigüidade, a omissão e a contradição como vícios da decisão
que justificam a interposição desse recurso. Os embargos infringentes visam a quebrantar a decisão embargada. A
parte vencida pleiteia a inversão do resultado de modo a sair vencedora. Este recurso
alicerça-se na divergência interna (no mesmo órgão julgador), sem confundir-se
com o recurso alicerçado na divergência externa (entre órgãos julgadores
distintos). Tanto os embargos de declaração como os infringentes são julgados
pelo prolator da decisão embargada.
Precipitaram-se os embargantes e o magistrado. Os
embargantes porque ainda não começara a fluir o prazo para a interposição dos
embargos infringentes. O magistrado porque os embargos de declaração ainda
estavam pendentes. Se tivesse exercido a função judicante como juiz de carreira,
o relator teria exarado na petição recursal o seguinte despacho: Aguarde-se o julgamento dos embargos de
declaração. Após, voltem conclusos.
No entanto, o relator indeferiu liminarmente a petição recursal apresentada por
dois condenados. Sustentou que o recurso não foi contemplado na lei que
instituiu normas procedimentais perante o STF; que a omissão implica revogação
da norma do regimento interno do tribunal que disciplinava tal recurso. Os
condenados recorreram da decisão do relator mediante agravo. Na sessão de
julgamento do agravo o relator manteve a sua decisão. Os ministros Luiz Fux,
Cármen Lucia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio acompanharam o voto do relator,
negaram provimento ao agravo e não admitiram os embargos infringentes. O
ministro Roberto Barroso inaugurou a divergência ao decidir pela reforma da decisão
do relator e pelo cabimento dos embargos infringentes. Fez um histórico desde
as ordenações portuguesas até as leis brasileiras que trataram desse recurso;
estribou-se nos códigos de processo penal e civil e no regimento interno do
STF; disse que o regimento recebeu força de lei por ter sido elaborado sob a
égide da Carta de 1969; que o regimento foi recepcionado pela Constituição de
1988; que a norma regimental é compatível com a lei 8.038/1990. Acompanharam a
divergência os ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Ricardo
Lewandowski, que deram provimento ao agravo e admitiram os embargos
infringentes. Houve empate na votação (5 x 5). O desempate caberá ao ministro
Celso de Mello, último a votar.
O Estado como instituição composta de governo, povo e
território, tem como agentes da sua soberania os parlamentares, o chefe de
governo e os juízes. Investidos de poder político e em sintonia com os
princípios e as normas de direito, os juízes resolvem controvérsias no âmbito
do processo judicial. No julgamento em tela, transparece o aspecto político da
função jurisdicional. De um lado, o grupo de juízes que representa o governo stricto sensu e procura amenizar a
situação dos criminosos de colarinho branco; de outro, o grupo de juízes que
representa o povo lato sensu e
procura manter a condenação dos criminosos. Marcou presença a chicana, a
manobra astuciosa. Os direitos do homem e do cidadão, formidável conquista da civilização
ocidental, perdem legitimidade quando exercidos em favor de abusos e chicanas.
Em nome do direito de ampla defesa procrastina-se a execução do julgado; tenta-se
mudar o veredicto mediante novo julgamento propiciado pelos embargos
infringentes.
Na instrução e no julgamento da ação penal 470 o
direito à ampla defesa foi respeitado. Mais de 50 sessões foram dedicadas à
postulação das partes, à produção de provas e aos extensos debates (inclusive
entre os juízes). A sentença é o limite da acusação e da defesa, o termo final
do processo judicial. No entanto, em nome da liberdade, os condenados pretendem
a titularidade de um direito sem freios e sem limite no tempo. Há um momento em
que deve prevalecer a autoridade da sentença. Os condenados serviram-se do
recurso cabível: embargos de declaração. O tribunal apreciou esse recurso em várias
sessões onde houve intensos e dramáticos debates entre os juízes. As questões
levantadas pelos condenados foram amplamente examinadas e alguns embargos foram
providos para atenuar as penas aplicadas.
Na esfera penal, os embargos infringentes são admitidos
quando reunidas as seguintes condições: (i) o processo estar em segundo grau de
jurisdição (segunda instância) o que supõe origem no primeiro grau; (ii) a
decisão ser desfavorável ao réu; (iii) ter havido divergência (decisão não
unânime). Na ação penal originária não há grau de jurisdição, não há escala
jurisdicional, a instância é única; logo, falta o pressuposto de admissão dos
embargos. Na esfera civil, os embargos infringentes são admitidos quando
reunidas as seguintes condições: (i) estar o processo em grau de apelação; (ii)
a decisão reformar sentença de mérito; (iii) haver divergência (decisão não
unânime). A lei abre exceção para admitir os embargos na ação rescisória.
Entretanto, na esfera penal, a lei não abre exceção para a ação originária.
A questão da vigência da norma regimental surgiu com a
interposição do recurso de embargos infringentes e tinha de ser enfrentada pelo
tribunal. Não se trata de casuísmo e sim do juízo de admissibilidade próprio da
função jurisdicional. Assim como a petição inicial, também a petição recursal
passa pelo crivo desse juízo. A petição pode ser deferida ou indeferida pelo
magistrado, conforme esteja ou não amparada no direito. A norma regimental,
ainda que tivesse força de lei, não podia prevalecer sobre lei posterior.
Embora prestigie os regimentos internos dos tribunais, a nova lei não contempla
aquele recurso no capítulo específico da ação penal originária, nem tampouco o
inclui no capítulo que trata dos recursos.
Os atuais governistas sentem-se injustiçados pelo fato
de a quadrilha de Fernando Henrique estar impune enquanto a quadrilha de Luiz
Inácio foi punida. A impunidade de uma quadrilha não justifica a impunidade da
outra. O sentimento de injustiça é compreensível. Porém, a culpa pela
impunidade não pode ser atribuída aos juízes e tribunais e sim ao braço
político do Ministério Público e da polícia. A malta de Fernando Henrique tem
sido habilidosa na tarefa de impedir a apuração da responsabilidade criminal
dos seus integrantes. Além disto, faltou um Roberto Jefferson para abrir as
entranhas da referida malta.
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