sábado, 14 de setembro de 2013

CHICANA III



Nas sessões dos dias 11 e 12 de setembro de 2013, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) discutiram sobre o cabimento do recurso de embargos infringentes em ação penal originária (ação que começa e termina no tribunal por disposição expressa da Constituição). O público assistiu ao espetáculo nada edificante da costumeira balbúrdia, da falta de cortesia e de serenidade, da mistura da fase dos debates com a fase da votação, dos pronunciamentos paralelos e simultâneos, da interrupção abrupta de quem está proferindo voto, da transgressão à ética judiciária. Ao invés de manifestar a discordância de maneira educada e amistosa na sua vez de votar, o ministro atropela e menoscaba o colega; esquece-se de que no julgamento da ação ou do recurso o voto é sentença individual que flui da consciência, da convicção, da formação moral e jurídica do juiz. Se o voto vai se somar à maioria ou à minoria é o que menos importa. O respeitoso silêncio do público quando um juiz está proferindo o seu voto devia ser imitado pelos outros juízes; respeitar-se-ia a pessoa do juiz, a instituição que ele encarna e a nação que ele representa. Preito à justiça indica maturidade política de um povo.    
No processo judicial, embargo é recurso utilizado pela parte com o propósito de impedir que uma decisão produza efeito imediato. O vocábulo é empregado no plural: embargos. A legislação processual admite três modalidades de embargos: (I) divergentes; (II) declaratórios; (III) infringentes. Os embargos de divergência são opostos quando matéria igual é decidida de modo diferente por órgãos distintos (a decisão de uma câmara ou de uma turma difere da decisão de outra ou do plenário sobre o mesmo assunto). Ao prover os embargos de divergência o tribunal pacifica a matéria e fixa jurisprudência para os casos semelhantes. Os embargos de declaração visam a escoimar a decisão recorrida sem quebrantá-la. A lei processual menciona a obscuridade, a ambigüidade, a omissão e a contradição como vícios da decisão que justificam a interposição desse recurso. Os embargos infringentes visam a quebrantar a decisão embargada. A parte vencida pleiteia a inversão do resultado de modo a sair vencedora. Este recurso alicerça-se na divergência interna (no mesmo órgão julgador), sem confundir-se com o recurso alicerçado na divergência externa (entre órgãos julgadores distintos). Tanto os embargos de declaração como os infringentes são julgados pelo prolator da decisão embargada.
Precipitaram-se os embargantes e o magistrado. Os embargantes porque ainda não começara a fluir o prazo para a interposição dos embargos infringentes. O magistrado porque os embargos de declaração ainda estavam pendentes. Se tivesse exercido a função judicante como juiz de carreira, o relator teria exarado na petição recursal o seguinte despacho: Aguarde-se o julgamento dos embargos de declaração. Após, voltem conclusos. No entanto, o relator indeferiu liminarmente a petição recursal apresentada por dois condenados. Sustentou que o recurso não foi contemplado na lei que instituiu normas procedimentais perante o STF; que a omissão implica revogação da norma do regimento interno do tribunal que disciplinava tal recurso. Os condenados recorreram da decisão do relator mediante agravo. Na sessão de julgamento do agravo o relator manteve a sua decisão. Os ministros Luiz Fux, Cármen Lucia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio acompanharam o voto do relator, negaram provimento ao agravo e não admitiram os embargos infringentes. O ministro Roberto Barroso inaugurou a divergência ao decidir pela reforma da decisão do relator e pelo cabimento dos embargos infringentes. Fez um histórico desde as ordenações portuguesas até as leis brasileiras que trataram desse recurso; estribou-se nos códigos de processo penal e civil e no regimento interno do STF; disse que o regimento recebeu força de lei por ter sido elaborado sob a égide da Carta de 1969; que o regimento foi recepcionado pela Constituição de 1988; que a norma regimental é compatível com a lei 8.038/1990. Acompanharam a divergência os ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, que deram provimento ao agravo e admitiram os embargos infringentes. Houve empate na votação (5 x 5). O desempate caberá ao ministro Celso de Mello, último a votar.
O Estado como instituição composta de governo, povo e território, tem como agentes da sua soberania os parlamentares, o chefe de governo e os juízes. Investidos de poder político e em sintonia com os princípios e as normas de direito, os juízes resolvem controvérsias no âmbito do processo judicial. No julgamento em tela, transparece o aspecto político da função jurisdicional. De um lado, o grupo de juízes que representa o governo stricto sensu e procura amenizar a situação dos criminosos de colarinho branco; de outro, o grupo de juízes que representa o povo lato sensu e procura manter a condenação dos criminosos. Marcou presença a chicana, a manobra astuciosa. Os direitos do homem e do cidadão, formidável conquista da civilização ocidental, perdem legitimidade quando exercidos em favor de abusos e chicanas. Em nome do direito de ampla defesa procrastina-se a execução do julgado; tenta-se mudar o veredicto mediante novo julgamento propiciado pelos embargos infringentes.
Na instrução e no julgamento da ação penal 470 o direito à ampla defesa foi respeitado. Mais de 50 sessões foram dedicadas à postulação das partes, à produção de provas e aos extensos debates (inclusive entre os juízes). A sentença é o limite da acusação e da defesa, o termo final do processo judicial. No entanto, em nome da liberdade, os condenados pretendem a titularidade de um direito sem freios e sem limite no tempo. Há um momento em que deve prevalecer a autoridade da sentença. Os condenados serviram-se do recurso cabível: embargos de declaração. O tribunal apreciou esse recurso em várias sessões onde houve intensos e dramáticos debates entre os juízes. As questões levantadas pelos condenados foram amplamente examinadas e alguns embargos foram providos para atenuar as penas aplicadas.
Na esfera penal, os embargos infringentes são admitidos quando reunidas as seguintes condições: (i) o processo estar em segundo grau de jurisdição (segunda instância) o que supõe origem no primeiro grau; (ii) a decisão ser desfavorável ao réu; (iii) ter havido divergência (decisão não unânime). Na ação penal originária não há grau de jurisdição, não há escala jurisdicional, a instância é única; logo, falta o pressuposto de admissão dos embargos. Na esfera civil, os embargos infringentes são admitidos quando reunidas as seguintes condições: (i) estar o processo em grau de apelação; (ii) a decisão reformar sentença de mérito; (iii) haver divergência (decisão não unânime). A lei abre exceção para admitir os embargos na ação rescisória. Entretanto, na esfera penal, a lei não abre exceção para a ação originária.
A questão da vigência da norma regimental surgiu com a interposição do recurso de embargos infringentes e tinha de ser enfrentada pelo tribunal. Não se trata de casuísmo e sim do juízo de admissibilidade próprio da função jurisdicional. Assim como a petição inicial, também a petição recursal passa pelo crivo desse juízo. A petição pode ser deferida ou indeferida pelo magistrado, conforme esteja ou não amparada no direito. A norma regimental, ainda que tivesse força de lei, não podia prevalecer sobre lei posterior. Embora prestigie os regimentos internos dos tribunais, a nova lei não contempla aquele recurso no capítulo específico da ação penal originária, nem tampouco o inclui no capítulo que trata dos recursos.
Os atuais governistas sentem-se injustiçados pelo fato de a quadrilha de Fernando Henrique estar impune enquanto a quadrilha de Luiz Inácio foi punida. A impunidade de uma quadrilha não justifica a impunidade da outra. O sentimento de injustiça é compreensível. Porém, a culpa pela impunidade não pode ser atribuída aos juízes e tribunais e sim ao braço político do Ministério Público e da polícia. A malta de Fernando Henrique tem sido habilidosa na tarefa de impedir a apuração da responsabilidade criminal dos seus integrantes. Além disto, faltou um Roberto Jefferson para abrir as entranhas da referida malta.

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