O ABSTRATO E O CONCRETO
Admiro a flor pintada no quadro. Perfeito o
amor-perfeito. O desenho e as cores coincidem com a flor cuja imagem está
gravada na minha memória. Após o deslumbre, olho o jardim. Noto que um
amor-perfeito não é igual ao outro. Qual deles é o perfeito amor-perfeito?
Volto ao quadro. Olho e penso: admirei a pintura, a reprodução, a arte do
pintor e não o modelo original. As cordas da sensibilidade vibraram tocadas por
algum estímulo além do visual. A pintura desperta em mim sensações agradáveis e
um significado que pode ser diferente do pretendido pelo pintor. Já foi dito
alhures que a obra de arte adquire significado próprio para quem a contempla e
nem sempre desperta o mesmo sentimento em diferentes pessoas. Cada observador
tem a sua particular compreensão. Vê-la-á sob o prisma da perfeição geométrica
ou da beleza diáfana.
Busca-se a perfeição em tudo e ela em nada se encontra
a não ser na mente. Pensamento radical. Recorro a um pensamento menos radical
que admite perfeição objetiva: ausência
de defeitos nas pessoas, nas plantas, nos animais, nas coisas, nas
instituições. Ensaio uma noção positiva: perfeito é o ente natural ou cultural que atingiu a plenitude das suas características estruturais e
funcionais. Animado com essa definição, arrisco uma variante para
introduzir propósito: perfeito é o ente completo nos seus elementos essenciais e
que cumpre a sua finalidade com êxito. Rompo os limites: perfeito é o ser na sua infinita extensão e ínfima compreensão. Retorno da
metafísica à física. Sigo a trilha do ser e do fazer na dimensão material do
mundo: a conduta ou a obra de alguém será
perfeita ou imperfeita segundo a tábua de valores e os modelos estabelecidos e
desenhados na mente, adquiridos no lar, na escola, na igreja, na sociedade em
que vivo.
Na avaliação da conduta e da produção humana
contribuem: a minha crença, o meu ideário, o meu senso ético e estético e o meu
discernimento. Nessa avaliação, que pressupõe o meu estado consciente, sofro
influência externa, pois sou produto do meio natural e social. Posso reagir à
pressão social, mas não evita-la, salvo se me tornar anacoreta. Minha reação
pode ser legítima ou ilegítima, segundo se conforme ou não com o bem comum.
Valores vigentes na sociedade servem de balizas: santidade, bondade, utilidade, verdade, justiça, beleza. Do ponto
de vista ético, considero perfeita a
pessoa de conduta ilibada cujas virtudes encontram-se no estado mais refinado
segundo os parâmetros estabelecidos pela nação. Posso conceber um padrão em que
se considera perfeita a pessoa: (1)
que acredita em Deus e respeita a crença e a descrença alheia; (2) que se
dedica ao bem-estar do próximo com o máximo de bondade; (3) que se mostra útil
e traz concórdia à família e à sociedade; (4) que cultiva bons pensamentos e bons
sentimentos; (5) primorosa na sua arte, na sua profissão, no seu existir; (6)
inteligente e lúcida no seu saber; (7) disciplinada, veraz e justa no seu agir.
Excelsas qualidades e
ausência de anomalias físicas e morais caracterizam a pessoa perfeita em abstrato. Todavia, a experiência revela que, em
concreto, não há pessoa virtuosa o tempo todo e em todas as circunstâncias; que
ninguém é perfeito quando avaliado rigorosamente segundo os padrões religiosos,
éticos, estéticos e jurídicos vigentes na comunidade. Ademais, reina
discordância entre pessoas, povos e culturas sobre o que se encaixa no bem ou
no mal. O sofista Protágoras já se referia a esse desacordo (Grécia, 600 a.C.): não há verdades absolutas ou padrões eternos
de direito e de justiça, salvo verdades particulares válidas para certo tempo e
lugar; a moralidade varia de povo para povo; o que é certo para os espartanos é
errado para os atenienses; verdade, justiça e beleza estão relacionadas aos
interesses e às necessidades do homem (Edward Macnall Burns. História da
Civilização Ocidental. Porto Alegre, Globo, 1955, p. 192). Verdade aquém dos
Pirineus, falsidade além dos Pirineus, dizia Blaise Pascal (França, século
XVII) aludindo ao relativismo dos conceitos humanos (Pensamentos. São Paulo,
Nova Cultural, 1999, p.109/110).
Nas relações econômicas, sociais e políticas os
humanos ora são coerentes, ora contraditórios; ora benfeitores, ora
malfeitores. Para uns, o socialismo é perfeito; para outros, o capitalismo ou o
modelo híbrido. Para uns, perfeita é a poligamia; para outros, a monogamia.
Para uns, perfeito é o sistema autocrático de governo; para outros, o
democrático. Dante Alighieri defendia a autocracia e apelidava de regimes
tortuosos a democracia, a oligarquia e a tirania. (Da Monarquia. São Paulo. Brasil Editora, 1960, p.156). Winston
Churchill afirmava a superioridade da democracia quando comparada a outros
regimes políticos. Nessa área não há perfeição e sim adequação. O sistema
político pode variar no tempo, segundo as vicissitudes do povo: num momento, a
autocracia apresenta-se como a mais adequada; em outro momento, a democracia.
Isto vem ilustrado pela história de Roma: no período inicial, a monarquia se
mostrou adequada, pois o povo romano prezava mais a autoridade e a estabilidade
política do que a liberdade e a democracia; no período intermediário,
prevaleceu a república aristocrática e a ascendência do senado; nos períodos
críticos, instituía-se a ditadura temporária; no último período, vigorou o
regime imperial. Segundo a índole, a cultura e o momento histórico de um povo,
o governo adequado pode ser monárquico ou republicano, autocrático ou
democrático, parlamentarista ou presidencialista. Há muitos exemplos dessas
alternativas na história política dos povos: Alemanha, Brasil, China, França,
Índia, Inglaterra, Irã, Itália, Líbia, Rússia, Síria. Verifica-se, pois, a
impertinência de um povo pretender impor o seu sistema político a outro povo de
diferente índole e cultura.
Sensato foi o legislador constituinte brasileiro ao
incluir entre os princípios das relações internacionais a autodeterminação e
independência dos povos e a igualdade entre os Estados.
Insensato foi o juiz brasileiro ao amenizar a situação
de criminosos do colarinho branco, desprestigiar sentença condenatória proferida
no devido processo jurídico por tribunal supremo em instância única e
privilegiar o interesse privado daquela súcia em detrimento do interesse
público da nação. A questão acidental suplantou a questão essencial. A forma
embocou a matéria. O adjetivo empanou o substantivo. A logorreia e a pantomima
camuflaram o engodo. O sofisma subverteu a hierarquia das leis e escarneceu dos
valores morais em vigor.
Há 100 anos, Ruy Barboza se dizia desapontado com o
supremo tribunal. Há 40 anos, Bulhões de Mattos, meu colega de toga no Estado
da Guanabara, assim manifestava o seu desencanto nos autos de um processo: Supremo? Só de frango.
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