sábado, 21 de setembro de 2013

PERFEIÇÃO



O ABSTRATO E O CONCRETO

Admiro a flor pintada no quadro. Perfeito o amor-perfeito. O desenho e as cores coincidem com a flor cuja imagem está gravada na minha memória. Após o deslumbre, olho o jardim. Noto que um amor-perfeito não é igual ao outro. Qual deles é o perfeito amor-perfeito? Volto ao quadro. Olho e penso: admirei a pintura, a reprodução, a arte do pintor e não o modelo original. As cordas da sensibilidade vibraram tocadas por algum estímulo além do visual. A pintura desperta em mim sensações agradáveis e um significado que pode ser diferente do pretendido pelo pintor. Já foi dito alhures que a obra de arte adquire significado próprio para quem a contempla e nem sempre desperta o mesmo sentimento em diferentes pessoas. Cada observador tem a sua particular compreensão. Vê-la-á sob o prisma da perfeição geométrica ou da beleza diáfana.
Busca-se a perfeição em tudo e ela em nada se encontra a não ser na mente. Pensamento radical. Recorro a um pensamento menos radical que admite perfeição objetiva: ausência de defeitos nas pessoas, nas plantas, nos animais, nas coisas, nas instituições. Ensaio uma noção positiva: perfeito é o ente natural ou cultural que atingiu a plenitude das suas características estruturais e funcionais. Animado com essa definição, arrisco uma variante para introduzir propósito: perfeito é o ente completo nos seus elementos essenciais e que cumpre a sua finalidade com êxito. Rompo os limites: perfeito é o ser na sua infinita extensão e ínfima compreensão. Retorno da metafísica à física. Sigo a trilha do ser e do fazer na dimensão material do mundo: a conduta ou a obra de alguém será perfeita ou imperfeita segundo a tábua de valores e os modelos estabelecidos e desenhados na mente, adquiridos no lar, na escola, na igreja, na sociedade em que vivo.
Na avaliação da conduta e da produção humana contribuem: a minha crença, o meu ideário, o meu senso ético e estético e o meu discernimento. Nessa avaliação, que pressupõe o meu estado consciente, sofro influência externa, pois sou produto do meio natural e social. Posso reagir à pressão social, mas não evita-la, salvo se me tornar anacoreta. Minha reação pode ser legítima ou ilegítima, segundo se conforme ou não com o bem comum. Valores vigentes na sociedade servem de balizas: santidade, bondade, utilidade, verdade, justiça, beleza. Do ponto de vista ético, considero perfeita a pessoa de conduta ilibada cujas virtudes encontram-se no estado mais refinado segundo os parâmetros estabelecidos pela nação. Posso conceber um padrão em que se considera perfeita a pessoa: (1) que acredita em Deus e respeita a crença e a descrença alheia; (2) que se dedica ao bem-estar do próximo com o máximo de bondade; (3) que se mostra útil e traz concórdia à família e à sociedade; (4) que cultiva bons pensamentos e bons sentimentos; (5) primorosa na sua arte, na sua profissão, no seu existir; (6) inteligente e lúcida no seu saber; (7) disciplinada, veraz e justa no seu agir.
Excelsas qualidades e ausência de anomalias físicas e morais caracterizam a pessoa perfeita em abstrato. Todavia, a experiência revela que, em concreto, não há pessoa virtuosa o tempo todo e em todas as circunstâncias; que ninguém é perfeito quando avaliado rigorosamente segundo os padrões religiosos, éticos, estéticos e jurídicos vigentes na comunidade. Ademais, reina discordância entre pessoas, povos e culturas sobre o que se encaixa no bem ou no mal. O sofista Protágoras já se referia a esse desacordo (Grécia, 600 a.C.): não há verdades absolutas ou padrões eternos de direito e de justiça, salvo verdades particulares válidas para certo tempo e lugar; a moralidade varia de povo para povo; o que é certo para os espartanos é errado para os atenienses; verdade, justiça e beleza estão relacionadas aos interesses e às necessidades do homem (Edward Macnall Burns. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre, Globo, 1955, p. 192). Verdade aquém dos Pirineus, falsidade além dos Pirineus, dizia Blaise Pascal (França, século XVII) aludindo ao relativismo dos conceitos humanos (Pensamentos. São Paulo, Nova Cultural, 1999, p.109/110).
Nas relações econômicas, sociais e políticas os humanos ora são coerentes, ora contraditórios; ora benfeitores, ora malfeitores. Para uns, o socialismo é perfeito; para outros, o capitalismo ou o modelo híbrido. Para uns, perfeita é a poligamia; para outros, a monogamia. Para uns, perfeito é o sistema autocrático de governo; para outros, o democrático. Dante Alighieri defendia a autocracia e apelidava de regimes tortuosos a democracia, a oligarquia e a tirania. (Da Monarquia. São Paulo. Brasil Editora, 1960, p.156). Winston Churchill afirmava a superioridade da democracia quando comparada a outros regimes políticos. Nessa área não há perfeição e sim adequação. O sistema político pode variar no tempo, segundo as vicissitudes do povo: num momento, a autocracia apresenta-se como a mais adequada; em outro momento, a democracia. Isto vem ilustrado pela história de Roma: no período inicial, a monarquia se mostrou adequada, pois o povo romano prezava mais a autoridade e a estabilidade política do que a liberdade e a democracia; no período intermediário, prevaleceu a república aristocrática e a ascendência do senado; nos períodos críticos, instituía-se a ditadura temporária; no último período, vigorou o regime imperial. Segundo a índole, a cultura e o momento histórico de um povo, o governo adequado pode ser monárquico ou republicano, autocrático ou democrático, parlamentarista ou presidencialista. Há muitos exemplos dessas alternativas na história política dos povos: Alemanha, Brasil, China, França, Índia, Inglaterra, Irã, Itália, Líbia, Rússia, Síria. Verifica-se, pois, a impertinência de um povo pretender impor o seu sistema político a outro povo de diferente índole e cultura.
Sensato foi o legislador constituinte brasileiro ao incluir entre os princípios das relações internacionais a autodeterminação e independência dos povos e a igualdade entre os Estados.
Insensato foi o juiz brasileiro ao amenizar a situação de criminosos do colarinho branco, desprestigiar sentença condenatória proferida no devido processo jurídico por tribunal supremo em instância única e privilegiar o interesse privado daquela súcia em detrimento do interesse público da nação. A questão acidental suplantou a questão essencial. A forma embocou a matéria. O adjetivo empanou o substantivo. A logorreia e a pantomima camuflaram o engodo. O sofisma subverteu a hierarquia das leis e escarneceu dos valores morais em vigor. 
Há 100 anos, Ruy Barboza se dizia desapontado com o supremo tribunal. Há 40 anos, Bulhões de Mattos, meu colega de toga no Estado da Guanabara, assim manifestava o seu desencanto nos autos de um processo: Supremo? Só de frango.

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