Olavo, meu camarada! Como vai
essa força?
Ora, ora, se não é o Arquibaldo!
Sou eu mesmo. O que faz você aqui
nesta praça, em manhã de sol, todo enternado,
engravatado e ensapatado? Noto que você carrega sofisticada valise de
couro. Será que aquele adolescente tímido do curso colegial abraçou profissão
que exige espírito de luta?
Ô Arquibaldo, você não perdeu a
maneira jocosa de se expressar e aquele jeito extrovertido que a turma do
colégio admirava. Pois é. Adivinhou. Sou advogado. Estou de roupa de trabalho
porque meu escritório fica ali naquele prédio. Deixo meu carro no
estacionamento deste outro lado da praça.
O que você me conta, Olavo, está
tudo bem?
Sim, está tudo bem. Enfrento
dificuldades normais no exercício profissional e na consolidação da família.
Chegam os filhos e o sossego bate asas. Sou pai de dois: o rapaz formado em
direito e a moça em
pedagogia. Moro na Barra da Tijuca. Marieta, minha esposa,
formou-se em psicologia e montou consultório na Zona Sul. Além disto, atua como
assistente dos juízes em varas de família. Continuo a torcer pelo Flamengo.
Mantenho-me longe dos partidos, mas acompanho o desempenho dos políticos
eleitos. Da crise econômica mundial de 2008, por exemplo, acho que o governo
brasileiro saiu-se bem. Já no quesito honestidade não se pode dizer o mesmo. Na
democracia impera a lei elaborada pelos representantes do povo. Quando a casa
dos representantes vira covil de ladrões e vagabundos, o império da lei
torna-se um risco para a democracia e para a justiça. Os juizes têm de buscar
escoras nas vigas mestras do Direito para escapar da involuntária cumplicidade
com as safadezas dos legisladores. Creio que a postura enérgica do supremo
tribunal na ação penal do “mensalão”, por exemplo, não intimidará os corruptos.
O mal é congênito. Mas, Arquibaldo, fale-me de você.
Tentei engenharia, mas desisti.
Prestei concurso, ingressei no serviço público, fiz carreira e me aposentei com
proventos insuficientes para uma vida cômoda. Continuo a trabalhar como
corretor de imóveis para reforçar a renda mensal. Por duas vezes casei e me
separei. Moro sozinho no Leme. Cansei das rondas noturnas pelos bares de
Copacabana, Leblon e Gávea. Para mim, a boemia perdeu a graça. À Lapa, eu só
vou para acompanhar algum amigo em visita ao Rio. Quase não vou ao teatro. Meus
atores preferidos morreram e restam poucas atrizes do meu agrado. Cinemas de
que eu tanto gostava fecharam as portas. Não há mais glamour. Salas insossas
nos shoppings. Poucos filmes de boa qualidade. Ainda resta a pipoca. Assisto a
alguns programas na televisão. Durmo cedo e acordo cedo. Tomo o café da manhã
na padaria ao lado do edifício onde moro. Pão quentinho que derrete a manteiga.
Na xícara, fumegando, um estimulante café. Não troco esse café nem pelo sortido
café do Sheraton. Há delícias que só a simplicidade propicia. Do primeiro
casamento, tenho um filho que se formou em medicina; do segundo, duas filhas:
uma formada em odontologia e outra em educação física. O meu time do coração
continua a ser o Fluminense. Lembra da algazarra que eu fazia no pátio do
colégio quando o tricolor vencia? O inspetor de alunos acabava com a festa. Ele
era vascaíno. Fui militante na política partidária e tirei bom proveito disto.
Para mim, obtive cargos em comissão e gratificações que engordavam a renda.
Para meus filhos, consegui boas colocações enquanto eles cursavam a faculdade.
Ontem eu tentava vender apartamento para um cliente da imobiliária quando ele
mencionou a proximidade da data do fim do mundo. Dei a mínima para aquela
bobagem. O mundo acaba para quem morre.
Pois eu, enquanto aguardava o fim
do mundo participei de uma rodada de chope com os amigos na hora do almoço. À
noite, em casa, a família se reuniu em jantar festivo organizado por Marieta. A
crença no fim do mundo, Arquibaldo, é armadilha do intelecto. Vida e morte,
começo e fim, são idéias fincadas na experiência humana. Os seres vivos nascem
e morrem. Estrelas nascem e morrem. Civilizações emergem, ascendem e declinam.
Fácil pensar então – ainda mais com apoio em escrituras religiosas – que o
cosmos também teve começo e terá fim. No meu entender, fim terá a vida em nosso
planeta quando o sol queimar todo o seu combustível, o que levará milhões de
anos.
Estou com você, Olavo. Não
descarto a extinção acidental da vida em extensão planetária por cataclismo
decorrente do choque com algum corpo celeste de enorme dimensão, ou por
hecatombe nuclear provocada pela doidice das lideranças mundiais. As verdades
científicas são sempre provisórias. A inteligência humana passa por altos e
baixos. A mediocridade ocupa o espaço maior na comunidade humana. Veja alguns
exemplos domésticos: Academia Brasileira de Letras, nos últimos cinqüenta anos
tornou-se abrigo de mentecaptos. No ensino, a decadência é notória. Raros são
os estabelecimentos em que o ensino é de boa qualidade. Profissionais de
formação acadêmica cometem erros crassos com graves prejuízos aos clientes, à
sociedade e ao Estado. A presidente da República deu uma paulada no vernáculo
ao exigir tratamento de Presidenta,
além do embaraço ao se expressar sem muletas.
A conversa está boa, mas o tempo
voa. Gostou da rima? Preciso ir ao escritório elaborar petições e me preparar
para uma audiência vespertina. Vamos nos encontrar mais vezes de agenda marcada
e não ao acaso. Não vamos dar chance à saudade. Dá cá um abraço.
Saudade, Olavo, é bom e nostálgico sentimento provocado pela
recordação das experiências registradas em nossa memória e que deixaram marcas
em nosso coração. Gosto de curtir as doces lembranças e não só o momento atual.
Agora, sigo para o apartamento do meu filho no Leblon, coloco traje de banho e
vou à praia porque está no meu horário. Vá lá o abraço.
Traje de banho? Horário de praia?
O que é isso, Arquibaldo? Você quer me impressionar ou me provocar inveja?
Nem uma coisa, nem outra. O traje
de banho compõe-se de sunga e sandália. Horário de praia é o período da manhã
que eu escolhi para caminhar na areia e tomar banho de mar. Nesse horário a
praia é freqüentada por mulheres bonitas e de corpos torneados em academia. Quando
elas mergulham, os traseiros roliços e firmes brilham ao sol antes de sumirem
na água. Colírio para os olhos. Isto me basta, pois além de senil, estou um
bagaço.
Sentindo a fofa areia
da praia sob os pés, Arquibaldo pensava enquanto caminhava: será que Olavo
acreditou em tudo o que eu disse? A troca de endereços e telefones foi para
valer? Sabemos que não. “Apareça”, “me liga”, expressões convencionais que se
esgotam em si mesmas. Passam os anos e não aparecemos, nem ligamos.
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