terça-feira, 9 de novembro de 2010

POLÍTICA

CONFRONTO NORTE/SUL.

Para harmonizar o presente artigo com o mapa eleitoral resultante do segundo turno da eleição presidencial de 2010, os Estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste serão tratados em conjunto, sob a rubrica Sul, e os Estados do Norte e Nordeste, sob a rubrica Norte. A forma presidente para se referir à candidata eleita, utilizada em artigo anterior, será mantida. Cuida-se de vocábulo aplicável indistintamente nos gêneros masculino e feminino (Caldas Aulete). Além disso, designa um cargo público cujo título permanece inalterado, indiferente se ocupado por mulher ou por homem. Reservo o tratamento de presidenta à mulher que preside associação, empresa ou qualquer empreendimento.

No Sul, o mapa eleitoral de 2010 provocou amargor sem a cuia do chimarrão. Dos pronunciamentos publicados na rede de computadores, constata-se que a vitória de Dilma nos Estados do Norte despertou a ira dos sulistas. Os irados navegantes do cyber espaço consideram aquela região a menos desenvolvida do país, apesar da produção do açaí, do guaraná e de outros vegetais tonificantes e terapêuticos. Debitaram a vitória de Dilma ao atraso dos povos nortistas. Houve quem pregasse o extermínio dos nordestinos que moram em São Paulo. Os defensores dos nortistas citam os vultos regionais da literatura, música, arte, para provar a cultura e inteligência daquela gente. Os ânimos logo se acalmarão, inobstante conceitos e preconceitos latentes. Sempre haverá reserva mental de quem se toma por modelo em relação a quem exibe diferente perfil, tanto na esfera individual como na esfera coletiva. O fenômeno é genético e a natureza nem sempre se submete à moral, à religião e ao direito. Embalados pela maré eleitoral e pela emotividade, equivocaram-se os dois lados em confronto.

A cidade do Rio de Janeiro é considerada um dos pólos culturais do Brasil; tambor de ressonância do pensamento e da prática política e social; palco de violentos conflitos e históricas manifestações pela democracia; munícipes altamente politizados que resistiram à autocracia militar. A maior parcela dos eleitores cariocas votou em Dilma. Isto não faz do carioca um povo culturalmente atrasado. Há considerável fatia de nortistas e descendentes de nortistas na população fluminense. Por causa disto, terá o povo carioca perdido a tradicional posição de vanguarda? Houve retrocesso político no Rio de Janeiro? O panorama social mudou nos últimos 20 anos. Influíram nessa mudança: a estupenda proliferação de favelas, a intensidade do tráfico de armas e drogas, a exponencial violência, o relaxamento dos bons costumes, a corrupção no setor público e na sociedade civil. Por outro lado, o grau de politização dos povos do Norte não se mede só pela escolha dos parlamentares e chefes de governo, mas também por outros fatores que influem no resultado do pleito eleitoral. Os nortistas e os fluminenses retribuíram com votos a atenção que receberam do governo Luis Inácio. Esses votos conduzem a esperança de que a mesma atenção continuará por mais oito anos.

Aos grandes nomes que circularam pela rede de computadores para justificar a inteligência e o valor dos nortistas, devem ser acrescentados, por justiça e merecimento, os nomes dos juristas: Ruy Barbosa (Bahia), Clóvis Beviláqua (Ceará), Pontes de Miranda (Alagoas). Convém assinalar, entretanto, que os grandes vultos citados na rede e aqui, projetaram-se nacional e internacionalmente após se mudarem para o Rio de Janeiro e São Paulo. Ademais, há grandes vultos sulistas na arte, ciência, filosofia, ensino, medicina, política, economia, arquitetura, cuja projeção nacional e internacional não exigiu migração para o Norte.

Os nortistas migraram para o Sul – não para construir São Paulo, como se propala – mas sim em busca de melhores condições de vida. A decadência do Norte e o domínio dos proprietários de terra e dos senhores de engenho na região ainda eram notórios no século XIX, enquanto as províncias do Sul prosperavam graças à mentalidade vanguardeira e empreendedora das suas elites, ao trabalho assalariado em substituição ao trabalho escravo e às atividades rurais e urbanas dos imigrantes europeus e asiáticos. Atualmente, é considerável o peso eleitoral dos nortistas domiciliados em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Grandes vultos não significam grandes povos. Os grandes líderes e conquistadores, em épocas pretéritas, comandavam exércitos formados de gente rude e mercenária. Essas conquistas bélicas contribuíram pouco para o progresso da humanidade e muito para enaltecer a guerra e o heroísmo. O gênio militar pode surgir em qualquer parte, de terno ou de farda, mas depende do momento histórico oportuno para se manifestar. Avanços tecnológicos decorreram de objetivos militares. O esplendor do Antigo Egito, nos milênios de história, deveu-se a uma elite guerreira, intelectual, mística e religiosa; a massa ignara contribuía com sua obediência, força de trabalho e serviço militar. Na Grécia Clássica, pessoas representativas, grandes chefes guerreiros, pensadores, escultores, resumiam-se a um punhado de cidadãos (Péricles, Alexandre, Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles). Base da civilização ocidental, a herança grega procede dessa minúscula parcela de homens; a maioria do povo era ignorante e analfabeta, obreiros livres ou escravos. A ciência européia, que mudou a fisionomia do mundo ocidental, provém de alguns poucos homens que se destacaram a partir do século XVI da era cristã (Copérnico, Galileu, Descartes, Newton, Pasteur, Harvey, Planck, Einstein, Bohr). Até o século XIX, a maioria do povo europeu era ignorante e analfabeta; contribuiu com sua força de trabalho (agricultura, pecuária, comércio, processo de industrialização); serviu de bucha de canhão nas guerras e revoluções. Levando-se em conta a população da Europa, verifica-se que as teorias e os sistemas econômicos se devem a uma escassa minoria (Mirabeau, Quesnay, Condorcet, Smith, Malthus, Ricardo, Keynes, Marx, Pareto).

O Brasil não foge à regra. Em sua história, são poucos os grandes artistas, inventores, empreendedores, cientistas, juristas, escritores, filósofos, se comparado o número desses brasileiros com a extensão territorial e a densidade demográfica do país. Até a metade do século XX, a maioria do povo brasileiro era ignorante, analfabeta, enferma, alienada, massa facilmente manobrável por políticos corruptos, caudilhos, coronéis e generais. Com o advento da televisão, a expansão dos meios de comunicação, cursos à distância, a população ficou mais instruída e informada. A ignorância e o analfabetismo retrocederam a partir da segunda metade do século XX, quando se acelerou o desenvolvimento econômico e social iniciado nos anos 30. No crepúsculo do século XX, amainou o militarismo, visceral na república brasileira desde a proclamação em 1889. Nesta primeira década do século XXI, nota-se alguma evolução na vida política, mas há resquício do coronelismo em áreas do Sul e do Norte. Coronel com maquiagem e equipamentos modernos, dono de jornais e emissoras de rádio e televisão. Nos seus domínios, mantém cativo o eleitorado. Tal sobrevivência ainda influi no pleito eleitoral. Políticos sem peias morais seguem o novo figurino do velho coronel: criam reservas de eleitores mediante benesses que distribuem na sua região; estabelecem laços de dependência mediante assistencialismo público e privado; promovem a si próprios mediante propaganda enganosa. Essa conhecida realidade vem retratada em alguns livros, como Vila dos Confins, de Mário Palmério (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1984), O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro (São Paulo, Companhia das Letras, 1995), Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro (São Paulo, Globo, 2001). A parte decente da sociedade brasileira reage: por iniciativa popular, obteve do Congresso Nacional, com muito esforço e insistência, legislação repressora da imoralidade e dos abusos no processo eleitoral. Em sintonia com a reação popular, a Justiça Eleitoral tem se mostrado atuante, célere e eficaz.

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