domingo, 28 de novembro de 2010

DIREITO

Sigilo bancário e fiscal.

Na sessão do dia 25.11.2010, do Supremo Tribunal Federal - STF, foi debatido o sigilo bancário. O Banco Santander comunicou à sua cliente, pessoa jurídica de direito privado, que a receita federal solicitara os dados da sua conta. A cliente propôs ação judicial para impedir o fornecimento da informação. Alegou que os dados estavam sob sigilo garantido pela Constituição. Em ação cautelar, a cliente pediu ao STF concessão de efeito suspensivo ao recurso extraordinário. Reconhecendo a urgência do caso, o relator deferiu o pedido liminarmente, atribuindo efeito suspensivo ao recurso extraordinário e determinando ao banco que nenhuma informação prestasse à receita federal até o julgamento definitivo do citado recurso. A seguir e na forma regimental, submeteu sua decisão ao plenário para referendo. Por maioria de votos, o tribunal revogou a liminar. Em conseqüência, o recurso extraordinário seguirá seus trâmites com efeito devolutivo exclusivamente; a decisão judicial poderá ser executada; nela amparado, o banco fornecerá, ao fisco, os dados solicitados.

A gravidade e a urgência do caso eram de evidência solar. Por isso mesmo, o relator concedeu a medida cautelar liminarmente. Uma vez quebrado o sigilo, o dano está consumado, sem volta. Os dados ganham publicidade. A privacidade e a intimidade restam violadas. A medida cautelar garantiria a eficácia de ulterior decisão do recurso extraordinário. Os ministros se precipitaram e avançaram o seu entendimento sobre a matéria tratada na ação cautelar e no recurso extraordinário, sem esperar o oportuno e adequado momento processual.

Os votos vencedores negam a publicidade, afirmando que se trata de simples transferência do sigilo bancário para o sigilo fiscal, o que dispensa autorização judicial nos termos da lei complementar 105/2001. Essa lei permite ao Banco Central do Brasil, à Comissão de Valores Imobiliários e às autoridades e agentes fiscais tributários, acesso a dados sigilosos existentes nas instituições financeiras (inclusive sobre as contas de depósito dos clientes, pessoas físicas e jurídicas).

Da leitura dessa lei, entretanto, nota-se que o acesso direto a dados sigilosos só é permitido ao Poder Legislativo Federal (art. 4º). As demais instituições, autoridades e agentes tributários, no exercício das suas funções fiscalizadoras, só terão acesso indireto, isto é, por intermédio de autorização judicial (art.3º e 7º), o que se harmoniza com a Constituição em vigor. Essa interpretação literal permite manter a LC 105/2001 no ordenamento jurídico, salvo a parte que permite a circulação de dados entre as instituições financeiras (art. 1º, §3º).

Equivocadamente, a maioria dos ministros entendeu dispensável autorização judicial; a minoria, acertadamente, entendeu-a imprescindível. Somente as comunicações telefônicas podem ter o sigilo afastado ocasionalmente e, mesmo assim, mediante ordem judicial (CF 5º, XII). O sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas e de dados não pode ser quebrado nem por ordem judicial. Cuida-se de mandamento absoluto. Esse dispositivo constitucional pode ser dividido em dois grupos: (1) sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas; (2) sigilo de dados e das comunicações telefônicas. Este segundo grupo estaria na ressalva “salvo, no último caso”, contida no aludido preceito constitucional que permite levantar o sigilo. Absoluta seria a inviolabilidade do primeiro grupo. A do segundo grupo poderia ser afastada por decisão judicial. Divisão contestável; situa-se no terreno da linguagem. O “último caso” certamente refere-se somente às comunicações telefônicas. De qualquer modo, estejam ou não incluídos os dados na ressalva, a ordem judicial é imprescindível ao levantamento do sigilo.

A lei infraconstitucional não pode autorizar ou permitir o que a Constituição desautoriza ou proíbe. No Brasil, vige a supremacia da Constituição. O ordenamento jurídico brasileiro é hierárquico. A validade das leis depende do ajustamento da sua forma e do seu conteúdo aos preceitos constitucionais.

O voto do ministro Celso de Mello destaca a inviolabilidade da intimidade financeira das pessoas. Trata-se de norma de valor absoluto (CF 5º, X). A discussão genérica e acadêmica sobre o caráter absoluto ou relativo do direito peca por inadequação e falta de especificidade. Para aqueles que não gostam dos freios jurídicos, tudo é relativo. A inviolabilidade da intimidade e privacidade é garantia fundamental que resulta de decisão política soberana do legislador constituinte petrificada em norma constitucional. O legislador constituinte não estabeleceu exceção alguma ao declarar essa inviolabilidade. Por isso mesmo, o legislador ordinário não pode criar exceção. Cuida-se de garantia intransponível pelo Poder Constituído (Legislativo, Executivo, Judiciário). Não há interesse público maior, no Estado Democrático de Direito, do que respeitar as garantias constitucionais dos cidadãos. O legislador constituinte as colocou entre os valores supremos da república (CF, preâmbulo). Dispensar o banco do dever de sigilo sobre os dados das contas dos seus clientes significa esvaziar garantia fundamental e conceder licença ao abuso. Ao atribuir esse poder a um órgão do Executivo, o STF abandona seu papel de guardião da Constituição. Os aloprados estarão franqueados para devassar a intimidade e a privacidade das pessoas.

A propriedade privada é assegurada às pessoas pelos artigos 5º e 170, II, da Constituição Federal. Os dados lançados na conta bancária pertencem à intimidade do titular. O banco é mero depositário e administrador financeiro de bem alheio. O poder do Estado de investigar e apurar autoria e materialidade de ilícitos encontra limite nas garantias individuais. Quando esses limites são transpostos, os cidadãos ficam inseguros, expostos aos desmandos dos agentes políticos e administrativos do Estado.

O legislador constituinte, no exercício pleno da soberania nacional, outorgou, ao Poder Judiciário, competência para zelar pela constitucionalidade das leis e pela eficácia dos direitos fundamentais. Atribuiu aos juízes e tribunais a guarda da Constituição. Estabeleceu algumas exceções aos direitos fundamentais, mas coerentemente, exigiu autorização judicial para serem efetivadas. Assegurou a estrutura do sistema. Além dos juízes e tribunais, apenas as comissões parlamentares de inquérito podem levantar sigilo (CF 58, §3º). Entretanto, o legislador ordinário elabora leis para livrar o Executivo da amarra jurídica; garante formalmente arbitrariedade ao governante. O artigo 1º, §3º, da lei complementar 105/2001, exemplifica isto; rompe o dique das garantias individuais. Informações sobre a intimidade, a privacidade, a situação financeira das pessoas circulam amplamente pelos corredores da administração pública e das instituições financeiras. Motivos ideológicos, econômicos e imorais solapam o sistema constitucional brasileiro. O anseio pelo poder absoluto, livre de freios éticos, jurídicos e religiosos, domina o espírito dos governantes e dos seus auxiliares, tanto nos países democráticos, como nos autocráticos.

Intervenção no Município.

Na mesma sessão (25.11.2010) o Supremo Tribunal Federal apreciou questão relativa à extensão dos poderes da Controladoria Geral da União. Prefeito municipal propõe ação judicial para impedir a Controladoria de intervir nos negócios do seu município. Apóia-se na autonomia municipal assegurada na Constituição Federal. A Controladoria sustenta a legitimidade da sua intervenção lastreada no controle interno e na fiscalização previstos na Constituição. Controle (dirigir, orientar) e fiscalização (examinar, vigiar) neste caso concreto referem-se às verbas federais entregues ao município através de convênio celebrado com a União Federal.

Lavrou divergência no STF. A maioria dos ministros entende legítima a ação da Controladoria no município. Estriba-se no princípio republicano, do qual é corolário o dever de prestar contas de quem utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens e valores públicos (CF 70, p.u.). O fornecedor da verba tem o direito de fiscalizar a respectiva aplicação e exigir prestação de contas de quem a recebe. O município que recebe dinheiro em decorrência de convênio celebrado com a União fica sujeito à fiscalização por órgão federal. Essa fiscalização convive com a exercida pelos órgãos de controle externo da prefeitura (câmara municipal + tribunal de contas). Depreende-se do caso exposto no tribunal, que essa fiscalização especial está prevista no convênio.

A minoria considerou inconstitucional a ação da Controladoria. Arrima-se no princípio federativo do qual a autonomia municipal se tornou corolário ex vi da Constituição brasileira de 1988 (art. 18 e 29). A ação da Controladoria no território municipal e nas dependências da prefeitura constitui intromissão indevida nos negócios do município; tipifica intervenção extraordinária, sem amparo constitucional.

Realmente, consoante artigo 34, da Constituição, a União só pode intervir nos Estados e no Distrito Federal. Logo, esse tipo de atividade da Controladoria – órgão do Executivo federal – é inconstitucional. Irrelevantes para a solução da controvérsia as distintas qualificações dadas à federação pelos doutrinadores (rígida, orgânica, integrada, flexível). Lex habemus. No município, a intervenção compete exclusivamente ao respectivo Estado federado, mediante decreto do governador, com assentimento da assembléia legislativa (CF 36,1º). Na hipótese de prestação de contas, a intervenção estadual só se justifica se o município for inadimplente (CF 35, II). Não há notícia, pelo menos veiculada na sessão do tribunal, de que o município se negou a prestar contas ou que as prestou sem atender aos requisitos constitucionais e legais.

Em sintonia com o princípio republicano da responsabilidade dos gestores da coisa pública, os ministros concordam com a obrigação do município de prestar contas. Discordam entre si, porém, quanto à primazia do princípio republicano sobre o federativo. Entretanto, a divergência se resolverá se abandonada a área dos princípios e adentrada a seara dos conceitos. República é um tipo de Estado cujo governo e cujos bens constituem patrimônio da nação perante a qual respondem os governantes. A responsabilidade é nota essencial do conceito de república. Federação é um tipo de Estado soberano composto de Estados autônomos. Daí a congruência do legislador constituinte ao definir o Brasil como república federativa (CF 1º): adotou a forma republicana de vida política (que poderia ser monárquica) e o modelo federativo de Estado (que poderia ser unitário). Não há sentido, pois, falar de primazia da república sobre a federação ou vice-versa. Esses conceitos formam uma unidade institucional na organização política e administrativa do Brasil (CF 18).

Em nosso país vigora a supremacia da Constituição। Contrato, lei complementar e qualquer outro ato normativo infraconstitucional não podem contrariá-la. O ordenamento jurídico brasileiro é hierárquico. O contrato ou a lei não pode: (i) autorizar ou permitir o que a Constituição desautoriza ou proíbe; (ii) disciplinar de modo diferente a dinâmica determinada na Constituição. A intervenção no município deve obedecer ao procedimento estabelecido na Constituição. O direito da Controladoria de exigir prestação de contas não pode servir de pretexto à intervenção extraordinária no município. As contas são prestadas na forma contábil, circunscritas à verba recebida. Em relação ao município, a fiscalização pela Controladoria é externa, pois o município não integra a organização administrativa do Executivo federal e sim a organização política e administrativa da república federativa. Se o dever do município de prestar contas no caso concreto refere-se a verba federal e decorre de obrigação derivada da Constituição, o controle externo compete ao Tribunal de Contas da União (além dos controles interno e externo locais); se a obrigação deriva de contrato entre órgão federal e órgão municipal, a fiscalização da respectiva execução cabe às partes contratantes, sem prejuízo dos controles interno da prefeitura e externo da câmara municipal e do tribunal de contas.
A fiscalização especial e não intervencionista decorre da exigência de legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência na administração pública (CF 37)। O desvio de verbas é corriqueiro। Verba destinada à construção de estrada, por exemplo, é aplicada em negócios particulares ou em obra distinta. Notas fiscais, recibos e faturas sem correspondência com a realidade ou registrando valores acima do valor de mercado do material e da mão de obra utilizados, são fatos notórios na administração pública. Do que foi exposto na sessão de julgamento, depreende-se que o equívoco está no caráter invasivo da fiscalização realizada pela Controladoria. Ainda que esteja previsto no contrato, tal procedimento não prevalece ante os freios constitucionais. Subjaz à conduta invasiva do agente público, a tendência de exercer o poder além dos limites traçados pelo direito e pela moral. Summum jus, summa injuria.

Nenhum comentário: