sexta-feira, 2 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXV

Às vezes, os mesmos personagens, nas relações amigáveis, colocam-se em situações distintas; em épocas diferentes, concordam lá, discordam cá. A fase da discordância pode azedar as relações. Na mesa do bar dos magistrados, eu conversava com um colega mais antigo, oriundo do judiciário da Guanabara, ex-juiz de menores, que pontificava em vara criminal. Cotovelo sobre o tampo da mesa, braço na vertical, testa apoiada na mão, ele se mostrava angustiado porque estava preste a condenar um jovem que não merecia ter o futuro assim comprometido, mas o processo não lhe deixava alternativa. O colega estava sensibilizado com o drama retratado no processo judicial. Soprei: “Ausência de dolo”. Ele, intrigado: “Como”? Expliquei: se o seu problema é de consciência, como estou vendo que é, absolva o jovem; declare que você não está convencido de que ele agiu dolosamente.

O colega abriu um largo sorriso. Feliz, sem sombras na face, agradeceu a sugestão e louvou a minha inteligência. O louvor dispensa liame com a verdade. O seu terreno não é a lógica. Crer no louvor é iludir-se; o sentimento – e não a razão – é o seu ninho. O louvor provém da gentileza, como retribuição de um bem recebido, ou é gerado na esperança de um bem futuro. A intenção de louvar, entretanto, pode resultar do cálculo, tendo em vista a rede dos interesses de que se compõe a comunidade humana.

Tempos depois, esse mesmo colega pede minha atenção para um processo criminal cuja ré, na opinião dele, procedera mal na presidência da Fundação do Bem-Estar do Menor. Ao examinar o caso, notei tratar-se de divergência quanto ao método pedagógico: o anterior visava formar o cidadão soldado (reflexo do regime autocrático em vigor à época); o que a ré implantou visava formar o cidadão civil (efeito dos ventos democráticos que começavam a soprar na América Latina). Do ponto de vista penal, não havia conduta ilícita a punir. Absolvi a ré. O colega ficou aborrecido e não falou mais comigo. O advogado da ré lecionava direito penal. Certo dia, no meu gabinete, ele compareceu para despachar petição e me contou que ilustrava algumas aulas com o teor daquela minha sentença.

Vara criminal I. Réu preso. Inquiridas as testemunhas, réu e escolta se preparam para sair quando a promotora de justiça esboça um gesto, ressabiada pela minha fama de inimigo do Ministério Público. Solicitei aos guardas que aguardassem. Indaguei se ela tinha algo a dizer. Ela disse que a prova era insuficiente para sustentar a denúncia. Pediu a soltura do réu. Acolhi o pedido, julguei extinto o processo e determinei a imediata expedição de alvará de soltura. Emocionada, com os olhos marejados, a promotora exclama: “O senhor não é nada disso que estão dizendo!”.

Vara criminal II. Na última vara criminal de que fui titular, a sala de audiências e o cartório eram os mesmos para duas varas. Eu e a juíza da outra vara conciliávamos as pautas. Certo dia, ela me diz, em tom de censura: “você não é durão como apregoam”. Juíza da linha dura, ela se decepcionara ao verificar que minha conduta real discrepava daquela fama. A juíza confundia severidade com arbitrariedade, tanto no plano intelectual como no plano da ação.

Vara cível I. Advogado com petição nas mãos para despacho. De plano, deferi o pedido de levantamento da importância depositada pelo executado. Antes de chegar à porta de saída, o advogado lê o despacho, volta-se para mim e exibindo no rosto surpresa e contentamento, diz: “vossa excelência não é um juiz comum; ninguém defere assim prontamente.” Nada respondi. Ele se retira.

Vara Cível II. Bomba explode na seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, na capital do Rio de Janeiro, matando a secretária Lyda Monteiro, no período de distensão política no Brasil. Ataque da extrema direita à instituição defensora da liberdade e da democracia. Mediante portaria, suspendi todos os prazos processuais em atenção ao luto na família forense. Fiquei sabendo pelos jornais, ter sido eu o único juiz a tomar tal medida. O tribunal de justiça se omitira.

Vara de família I. Advogado idoso. Finda a audiência, o advogado titubeou no momento de se retirar da sala. Decidiu voltar. Olhou para mim e disse: “Diante de juiz como vossa excelência, até dá gosto advogar”. Sem esperar resposta, retirou-se.

Vara de família II. Advogado idoso. Após despachar petição comigo, faz o seguinte comentário: “Antes eu era conhecido pelo meu nome e pelo meu trabalho como advogado. Agora, sou conhecido como o pai da Nara Leão.” Riu e saiu.

Vara de família III. Audiência em processo de investigação de paternidade. Filhos adultos pretendiam incluir o nome do pai nos seus registros de nascimento. Um deles depõe: “Aqui estou a pedido do meu irmão mais novo; ele é que faz questão do nome do pai; eu não faço questão alguma do nome ou de qualquer coisa desse indivíduo que nunca foi pai verdadeiro e que deixou minha mãe nos criar sozinha; eu precisava dele quando pequeno, agora não preciso mais.” Quiçá por minha infância feliz, apesar da pobreza, com pai e mãe presentes e vigilantes, que se respeitavam e jamais se desentenderam na frente dos filhos, aquele depoimento causou-me tristeza. Eu não conseguia mais ditar o depoimento à escrevente. A garganta fechou. Palavra alguma passava. As batidas do coração aumentaram de intensidade. A alma sofria as dores do mundo. A curadora de família e a escrevente olhavam-me espantadas; aquela reação era estranha para elas e não combinava com a imagem de severidade que tinham de mim. As partes e os advogados aguardavam eu sair daquele transe. Senti na carne o significado de tempo emocional: cronologicamente, passaram-se alguns segundos; emocionalmente, parecia uma eternidade. Eu vi a criança no coração daquele adulto, a mágoa e a frustração de uma criança rejeitada pelo pai, a criança que sabia ter pai vivo, mas cujo afeto lhe fora negado; afeto paterno mais importante para ela do que eventual pensão. Senti a humana miséria naquele instante. Supliquei a Deus que me ajudasse a controlar aquela avalanche emocional que me apanhara de surpresa, produzira lágrimas nos meus olhos, secara a minha garganta e sepultara a minha voz. A serenidade retornou aos poucos.

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