sábado, 10 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXVI

Fatos marcantes colocam à mostra a interdependência dos países e aumentam a consciência cosmopolita. Os tigres asiáticos (Cingapura, Coréia do Sul, Hong Kong, Taiwan) assim apelidados em virtude do notável crescimento econômico, acabaram por sentir os efeitos negativos da política econômica neoliberal. A economia chinesa cai de 10% ao ano (2003/2008) para 6,7% (2009), vertigem decorrente da crise financeira irradiada dos EUA para a comunidade internacional (2008). Entre os meses finais de 2008 e o primeiro semestre de 2009, o preço do barril de petróleo sobe acima de 145 dólares e despenca até 45 dólares, em desvairada oscilação. Somou-se à crise econômica de 2008, o problema ambiental e energético. A inclusão dos pobres no patrimônio social dos países periféricos permanece uma quimera. No Brasil, os programas de inclusão social sofrem de raquitismo e pecam pelo propósito eleitoreiro.

O governo dos EUA injetou bilhões de dólares em bancos privados para atenuar a crise. A desaceleração da economia, nos países centrais, afeta as exportações e o desempenho comercial dos países periféricos. A comunidade internacional busca remédio para essas periódicas vacilações do sistema capitalista. Desde a crise do petróleo, em 1973, os governos buscam matriz energética alternativa como a do sol, dos ventos, do mar e dos vegetais. Nessa busca está imbricado o problema do aquecimento global. A Alemanha tomou a dianteira no que se pode chamar de revolução verde e desenvolvimento sustentável, com seus motores elétricos e fontes naturais de energia. Os EUA projetam a produção de etanol (combustível) derivado do milho, mas enfrentam resistência interna. Por ser insumo da indústria alimentícia, cujos produtos destinam-se a animais racionais e irracionais, o milho dispõe de um grande mercado. O Brasil intensifica a produção do etanol derivado da cana de açúcar, sem interferir na cadeia produtora de alimentos.

Países de todos os continentes se solidarizam na busca de soluções. Este foi o ponto positivo da crise. A solidariedade na área econômica e ambiental amainou a maré separatista em regiões da Europa e da Ásia (Bósnia, Sérvia, Montenegro, País Basco, Chechênia, Tibete). Os respectivos governos reprimem os separatistas. A província do Kosovo separa-se da Sérvia e pede reconhecimento como país independente, no que é atendida prontamente pelos EUA, Inglaterra, Alemanha, França e Itália. Os EUA autorizam envio de armas ao Kosovo. O governo da Rússia ameaça apontar mísseis com ogivas nucleares contra países europeus que permitirem aos EUA instalar equipamentos bélicos em seus territórios. O governo Obama desiste do escudo de defesa (EUA, 2009). O terrorismo de grupo (Al-Qaeda) marca presença com o choque proposital de aeronaves civis contra o Pentágono e o World Trade Center (2001). O terrorismo de Estado (EUA) marca presença na invasão do Afeganistão e do Iraque (2002/2009). Fica evidenciado o interesse dos EUA no petróleo da região e de se utilizarem de Israel como base estratégica na Ásia. A fim de se proteger dessa ameaça terrorista, o governo do Irã recorre à energia nuclear para fins pacíficos e bélicos (estes últimos não admitidos oficialmente). Orientados pela comunidade judaica internacional e pelo governo dos EUA, os meios de comunicação de alguns países referem-se aos palestinos e aos rebeldes afegãos e iraquianos como terroristas. No conflito mundial de 1939/1945, os membros da resistência francesa também eram vistos como terroristas pelos invasores alemães e pelas autoridades francesas que colaboravam com os nazistas.

Na Bolívia, o povo elege presidente da república um índio aculturado (Evo Morales); a oposição reage e luta por autonomia de algumas regiões. Combatentes das forças armadas revolucionárias colombianas (FARC) acampados em território do Equador foram mortos, enquanto dormiam, pelo exército regular da Colômbia (2008). A violação do território do Equador pela Colômbia gerou questão internacional solucionada por acordo celebrado no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). As FARC soltam alguns prisioneiros, entre os quais, Ingrid Bethancourt, candidata à presidência da Colômbia, seqüestrada durante campanha eleitoral e mantida presa durante 6 anos. O povo paraguaio elege presidente da república ex-bispo católico; o eleito exige revisão do acordo sobre a usina de Itaipu; o governo brasileiro concorda. Em missão de paz, o Brasil enviou contingente do exército ao Haiti, como fizera ao Suez (anos 50) e à República Dominicana (anos 60). A Venezuela pede ingresso no Mercosul. O seu presidente, Hugo Chávez, lança a doutrina bolivariana: (i) solidariedade entre os países dessa parte da América; (ii) ruptura dos laços coloniais com os EUA. Essa doutrina reflete o programa de união das esquerdas da América Latina, elaborado pelo Foro de São Paulo, cujos encontros se realizam periodicamente há alguns anos. O último encontro (15º) ocorreu no México (agosto/2009) e incluiu entre os seus temas, as alternativas para a crise econômica e financeira mundial.

A solidariedade com o ex-presidente de Honduras (Manuel Zelaya Rosales) decorreu dessa união internacional das esquerdas. Integrante da oligarquia de direita que domina historicamente o país, Zelaya bandeou-se para a esquerda quando isto se mostrou conveniente ao seu projeto pessoal de permanecer no governo por tempo indeterminado. Tal projeto reflete a tendência caudilhesca própria da cultura política da América Latina. Zelaya iniciou a execução desse projeto golpista ao consultar o povo sobre uma futura assembléia constituinte. A Constituição de Honduras admite reforma, porém, faz ressalvas a determinadas matérias. Na teoria constitucional, dispositivos com tais ressalvas denominam-se cláusulas pétreas. Entre as ressalvas hondurenhas estão a duração do mandato presidencial e a proibição de reeleição. A Constituição hondurenha qualifica de traição o ato de violar as cláusulas pétreas. O Legislativo e o Judiciário de Honduras deram o contra golpe. A iniciativa de Zelaya foi declarada inconstitucional. A corte suprema do país o destituiu da presidência e lhe decretou a prisão. Ao invés de prendê-lo, forças do governo o expulsaram do país, a fim de evitar agitação interna. Ato político; não jurídico. A Constituição de Honduras estabelece a ordem de sucessão no cargo presidencial. O vice-presidente renunciara ao cargo para se candidatar às eleições. O chefe do Poder Legislativo (Roberto Micheletti) era a pessoa da vez na ordem sucessória. Foram obedecidas as regras constitucionais. O retorno clandestino de Zelaya a Honduras, homiziando-se na embaixada do Brasil, gerou problema entre os dois países (setembro/2009). A comissão enviada pela OEA para intermediar o impasse não logrou êxito. O presidente em exercício (Roberto Micheletti) manteve-se irredutível no propósito de realizar as eleições já marcadas e de empossar o vencedor (2009/2010).

Coerente com a sua conduta na ordem interna, o governo brasileiro apoiou o criminoso. Ao fazê-lo, o governo Silva, adepto do Foro de São Paulo, menosprezou a soberania do povo hondurenho e violou princípios de direito internacional: (i) independência nacional (ii) autodeterminação dos povos (iii) não intervenção. De acordo com a ordem jurídica de Honduras, Zelaya é criminoso, traidor que atentou contra a Constituição e que deve cumprir a pena que lhe foi imposta. Assim como aconteceu com Fernando Collor de Mello, no Brasil, lá também houve o impeachment do presidente, em que pese diferença de nomenclatura, na forma do direito em vigor naquele país.

O governo Collor (1990-1994) bloqueou a poupança nacional de surpresa, causando impacto na classe média. Desqualificou os automóveis montados no Brasil. Liberou as importações. Despejou cimento na serra do Cachimbo para impedir experiências nucleares. Formou círculo exclusivo de aliados, apelidado de República das Alagoas. Inadmitiu políticos de outros quadrantes. Os excluídos do banquete acusaram-no de corrupto, promoveram escândalo nacional e processo político. Collor renunciou ao mandato, mas o processo de impeachment continuou e ele perdeu a habilitação à função pública. Itamar Franco, vice-presidente, assume o governo e termina o mandato com aprovação da maioria do povo brasileiro. Itamar lança o plano real que se mostrou oportuno e eficaz no combate à inflação.

O governo Cardoso (1995-2002) convidou à mesa do banquete todos os políticos que dela quisessem participar. Conseguiu maioria no Legislativo. Garantiu a impunidade. Afastada a ameaça do impeachment, excedeu-se nas viagens internacionais e na corrupção. Só para a feira de Hanover gastou 10 milhões de dólares, verba colocada nas mãos do seu filho e da filha de Bornhausen, senador de Santa Catarina. Ao preço vil privatizou o patrimônio público; prevaleceu o interesse pela taxa de corretagem sobre o interesse nacional. O Legislativo aprovou emenda à Constituição permitindo a reeleição do presidente. Isto lhe rendeu mais 4 anos no poder. Governantes da América Latina imitaram o brasileiro (Bolívia, Colômbia, Equador, Honduras, Venezuela). Todavia, mudar a Constituição em proveito próprio tipifica imoralidade incompatível com o regime republicano. O governo Cardoso seguiu os ditames do FMI e elevou a taxa de juros (48%). Favorecido pela conjuntura internacional, esse governo prosseguiu no plano real, obteve a estabilidade da moeda brasileira e criou programas sociais.

O governo Silva (2003-2010) imitou o antecessor no lícito e no ilícito. Unificou programas sociais sob a rubrica bolsa-família. Nesta ponta, distribuiu migalhas a milhões de brasileiros. Na outra ponta, distribuiu fortunas aos banqueiros, ao fixar as taxas de juros em patamar elevado e liberar as tarifas bancárias. Os dois maiores bancos brasileiros, em 2006, haviam lucrado, cada um, 4 bilhões de reais. Em 2007, cada um lucrou mais de 8 bilhões de reais. Foi necessária uma crise mundial para que a taxa de juros baixasse à casa de um dígito. Esse governo lançou os programas: (i) luz para todos, distribuindo energia elétrica para regiões carentes; (ii) aceleração do crescimento (PAC), estabelecendo estratégias no campo econômico; (iii) territórios da cidadania, prestando auxílio financeiro aos jovens carentes, eleitores na faixa dos 16 aos 18 anos de idade. Agigantou o ministério para atender aliados políticos. Funcionários foram nomeados às dezenas de milhares, sem concurso público, para os cargos de livre nomeação. Insuficientes os existentes, novos cargos foram criados para atender à clientela e permitir o aparelhamento do Estado pelo partido político (PT). O governo federal ajudou a trazer para o Brasil, a copa do mundo de futebol de 2014 e para o Rio de Janeiro, os jogos olímpicos de 2016.

O governo Silva perdoou dívida de país africano para redimir-se do pecado da escravatura. Equívoco deplorável. O governo português foi o fundador e mantenedor do sistema escravocrata na América Portuguesa do século XVI ao XIX (1501/1900). O Brasil ainda não existia como nação e Estado independente. Os negros da África venderam os seus conterrâneos aos brancos da Europa e da América. Somente ao se tornar independente de Portugal em 1822 – portanto, ainda no século XIX – é que surge o Império do Brazil. A nação brasileira demora um pouco mais para se formar. O Brasil paga a dívida de Portugal com a Inglaterra: dois milhões de libras esterlinas. Portugal reconhece, então, a independência do Brasil (1825). O acordo foi celebrado pela santíssima trindade: o pai (Dom João VI, rei de Portugal), o filho (Dom Pedro I, imperador do Brasil) e o espírito santo (Trono da Inglaterra). Cessada a hostilidade externa, permaneceram os conflitos internos, a luta pela nacionalização do comércio (em mãos dos lusos) e por maior influência na política. Tem início o movimento abolicionista: proibido o tráfico negreiro (1850), declarado livre o nascido de mulher escrava (1871), liberto o escravo com idade igual ou superior a 60 anos (1885). A escravidão extingue-se oficialmente em 1888.

Rompe-se o sistema escravocrata com a proibição do tráfico negreiro. A renovação do trabalho servil ficou prejudicada. A reprodução intestina de escravos frustrou-se com o advento da lei do ventre livre. A lei dos sexagenários acabou com o escravo vitalício. A imigração de europeus substituiu a importação de africanos. O trabalho assalariado mostrou-se mais econômico aos donos do capital. Sem futuro, o sistema escravocrata aguardava o decreto imperial para ser extinto de direito, porque já o estava de fato. Tudo isso em 63 anos de vida política independente, enquanto sob o governo português, na colônia americana, a escravatura durava 300 anos.

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