sexta-feira, 31 de julho de 2009

REMINISCENCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XVI

O desembargador corregedor-geral da justiça fazia correição em Pato Branco. Reunido com os juízes da região, ele sustentava que no Brasil não havia cientista do direito. Discordei de imediato. Os colegas silenciaram. Citei Pontes de Miranda (como citaria Pinto Ferreira) e as pesquisas de campo do ilustre jurista. O ambiente ficou pesado. Percebi a mancada. Inadvertidamente, provoquei polêmica quando a conversa era simplesmente coloquial. Despreparado em diplomacia, eu não lembrei que éramos os anfitriões e o desembargador, o hóspede. Esqueci que ele seria meu examinador no futuro concurso para juiz de direito de investidura permanente. Felizmente, não prestei tal concurso. Antes disso, fui aprovado no concurso para a magistratura da Guanabara.

Após o confronto com o juiz titular de Castro em torno das custas oriundas da cédula rural, estava eu de passagem no tribunal quando encontro aquele desembargador corregedor-geral da justiça. Nervosamente, ele me interpela sobre o ocorrido. Apesar de nervoso, o desembargador era homem correto. Relatei os fatos ali mesmo na área do tribunal onde nos encontrávamos. Ele informou que a representação formulada contra mim pelo juiz de Castro seria julgada naquela semana. Eu ignorava a existência da representação e estranhei que não me fosse dado o direito de defesa. O regime político no país era ditatorial, porém eu esperava que no âmbito do Judiciário prevalecessem os princípios de direito. O desembargador disse que aceitaria defesa desde que apresentada naquela mesma tarde. Essa pressão indicava a tendência do Conselho da Magistratura de prover a representação e me aplicar alguma penalidade.

Zé Macedo, colega da faculdade e companheiro de serestas, lotado no tribunal de justiça em cargo bem situado na hierarquia administrativa, apresentou-me a uma funcionária que cedeu folhas de papel e máquina de escrever. Redigi a defesa. Como a lei empregava a expressão juiz de direito, o juiz de Castro entendia que ao juiz substituto não cabia fazer a correição no cartório. Demonstrei que o direito do juiz titular ao recebimento das custas não era absoluto e que outro juiz poderia fazer a correição no cartório extrajudicial durante o período normal de substituição, na forma da lei. O Conselho da Magistratura acolheu a tese da defesa e baixou resolução legitimando a correição feita pelos juízes substitutos no período de férias dos titulares.

Na época desses acontecimentos eu concorria a uma vaga de magistrado no Estado da Guanabara. Quando ainda estava em Pato Branco, apareceu um advogado que pretendia cumprir carta precatória expedida por juízo de direito da Guanabara. O juiz titular estava ausente, então, o advogado bateu à minha porta. Ele me observava enquanto eu despachava. De óculos, apertando os olhos, franzindo o cenho, ele deu início a um diálogo: “Vossa Excelência por acaso morou em Ponta-Grossa?” “Sim, ali nasci e morei até 10 anos de idade”. “Vossa Excelência é o Antoninho, irmão do Tcheco?” “Sim, sou eu mesmo”. “Pois, eu sou Eros, irmão do Zico; nós morávamos defronte à tua casa e jogávamos futebol e bolinha de gude na rua”. Admirei-me do reconhecimento depois de 23 anos sem nos vermos. “Você nada mudou” disse ele. Eu não pude retribuir. Jamais o reconheceria, usando óculos, calva se insinuando, rosto redondo aparentando cansaço. Em idade, eu regulava com o Zico, irmão mais novo dele.

Trocamos abraços emocionados e recordamos os tempos de infância. Contou-me que Zico era dentista e morava em Curitiba com as irmãs. (Eu os visitei quando fui a Curitiba. A irmã mais velha gostava de falar sobre política internacional). Lá pelas tantas, Eros perguntou: “Porque você não faz concurso para a Guanabara?” “Farei, basta que você me informe e depois acompanhe os trâmites no Rio”, respondi. “Pode contar comigo”, garantiu. Cumprida a precatória, ele retorna ao Rio. Quando menos esperava, recebo correspondência dele com cópia da página do diário oficial publicando edital de abertura de concurso para juiz substituto do Estado da Guanabara. Preparei os papéis e fiz a inscrição. Eu estudava os códigos, as leis esparsas e a jurisprudência, pois tinha poucos livros de doutrina. Arrimava-me na experiência forense de 6 anos como solicitador acadêmico, advogado e juiz substituto, bem como, na anterior e intensiva dedicação ao curso de graduação em direito e ao curso de especialização. O presidente da banca examinadora adoeceu. O concurso foi suspenso por alguns meses. Para fazer provas escritas viajei 1.600 km, de Foz do Iguaçu ao Rio de Janeiro.

Em reunião social no apartamento de Pato Branco, o assunto do concurso veio à baila. O promotor de justiça, Luiz Carlos de Oliveira, disse que tinha um primo na Guanabara que era nascido em Palmas, no Paraná e fora juiz em Santa Catarina. Do telefone da minha casa, Luiz Carlos ligou para o primo e foi atendido. Identificou-se, conversaram assuntos de família até que entraram no tema do concurso. Tratava-se de Amilcar Laurindo, juiz substituto de desembargador, que se prontificou a acompanhar o processo e me avisar das etapas a tempo de eu viajar. Assim, além do Eros, fiquei com mais uma pessoa vigilante. Ele informou o meu sucesso nas provas escritas e as datas das provas orais. Viajei para o Rio e me hospedei em hotel de meia estrela no Catete, onde fiquei até a última prova oral, sofrendo forte calor em um quarto enjambrado.

Conheci pessoalmente Amilcar Laurindo. Ele se mostrou cordial, educado e atencioso. Nos dias das provas orais, no salão nobre do tribunal de justiça, lá estava ele em uma ponta e meu amigo Eros na outra. A banca situava-se em patamar alto e distante. O candidato ficava em pequena mesa no centro do salão em espaço retangular vazio. O microfone se elevava do tampo da mesa em direção à boca do candidato, como se fora uma serpente no ataque ao rosto da vítima. A parte reservada ao público, atrás dos cancelos, ficava lotada. O exame era um show para a comunidade forense. O presidente da banca (Oscar Tenório) com a fisionomia mais séria do mundo deixava rolar.

Algumas respostas provocaram o riso da platéia. Oscar Tenório formulou pergunta sobre o estado de sítio. O Brasil em plena ditadura. O chumbo ainda estava quente. Silêncio sepulcral. O ar do salão parecia ter sido sugado por poderoso exaustor. Vacilante e ganhando tempo para pensar, comecei a resposta: “Bem, aí depende”. A platéia explodiu em riso. Até cessarem as risadas, ganhei preciosos segundos. Outras respostas provocaram a mesa e o público. Exemplos: (i) ao usar o vocábulo barbaridade com sotaque paranaense, provoquei comicidade no salão, involuntariamente; (ii) quando o examinador de direito civil por três vezes pediu a definição de posse e as três vezes repeti a mesma definição (fundado em Rudolf Von Ihering) o ambiente anuviou. O examinador passou a novas perguntas. Cresci nas respostas. O ambiente desanuviou. No átrio, Amílcar Laurindo comentou: “Vendo você descer o despenhadeiro, fiquei apreensivo; depois, você retomou a subida e fiquei aliviado”.

Deixei de oferecer resposta à pergunta sobre o conceito de ação formulada pelo examinador de direito penal. A filosofia me atrapalhou, porque o conceito de ação extrapola o campo do direito. A judicatura me atrapalhou, porque censurei o examinador por falta de especificidade. Esqueci que ali eu estava como candidato e não como filósofo ou juiz. Insuficiente para me reprovar, tal postura certamente prejudicou a minha classificação. Os examinadores eram monstros sagrados que eu só conhecia dos livros de doutrina: Oscar Tenório, Ebert Chamoun e Hélio Tornaghi. Dois outros eram professores que começavam a despontar como grandes juristas: José Carlos Barbosa Moreira (procurador do Estado) e João Mestieri (advogado). A maratona me deixou extenuado. Voltei a Curitiba com febre alta.

Conversávamos na sala de jantar da casa de Juarez e Vera, irmão e cunhada de Jussara, em Curitiba, quando lá chegaram minha sobrinha Vanice e o marido Estanislau com a notícia de que eu fora aprovado e deveria embarcar para o Rio a fim de tomar posse no cargo. Embarquei sem Jussara e Evandro. No Rio, providenciei a toga com o alfaiate que atendia aos aprovados. Na cerimônia de posse, quando eu me aproximava da mesa, Chagas Freitas, governador do Estado da Guanabara, olha para o desembargador Nelson Ribeiro Alves, presidente do tribunal de justiça e exclama: “Mas ele é muito moço!”. O presidente completa o comentário: “É o mais novo do concurso e do Estado”. Eu estava com 34 anos. Para os padrões da magistratura do antigo Distrito Federal, eu era moço. Os familiares acompanhavam os novos juízes na cerimônia (setembro/1973). Senti falta dos meus. Lá estavam Eros e Amilcar Laurindo. Solicitei ao presidente do tribunal licença para voltar ao Paraná a fim de buscar minha pequena família, exonerar-me do cargo de juiz substituto daquele Estado, entregar o imóvel de Castro ao locador e despachar livros e alguns pertences para a Guanabara. “Você nem começou a trabalhar e já pede licença?” motejou o presidente. Nelson Ribeiro Alves era uma pessoa generosa e concedeu a licença com um largo sorriso no rosto.

Tudo regularizado no Paraná, Ford Corcel amarelinho na estrada, cesto com Evandro no banco traseiro, sensação do início de um novo ciclo em nossas vidas, lá fomos, Jussara e eu, rumo à Guanabara. Ficamos hospedados em hotel no Flamengo enquanto eu procurava apartamento. Encontrei no Leme, zona sul do Rio de Janeiro. Ali moramos durante um ano. Adquirimos móveis, aparelho de ar-condicionado, eletrodomésticos, material de cozinha e limpeza. Recebemos aviso da chegada dos poucos volumes. A maior parte dos bens móveis nós havíamos doado em Castro. O promotor de justiça nos sucedeu na locação da casa com a mobília que lá deixamos. O agente da rede ferroviária admirou-se da via por mim escolhida. Os volumes tinham ido ao interior de São Paulo e só depois seguiram para o endereço correto.

Juízes de outros Estados (Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Amazonas) também prestavam exames para ingressar na magistratura do Estado da Guanabara. Tratava-se de uma cidade-estado, sem divisão em comarcas. Passei a ganhar na Guanabara três vezes mais do que eu ganhava no Paraná. Em compensação, o custo de vida na Guanabara era bem mais alto. No percurso do Leme ao Castelo (centro do Rio de Janeiro onde se localiza o fórum) ainda não havia engarrafamentos. Após o túnel, passava-se pela sede do Botafogo FC, hospital psiquiátrico Pinel e enseada do Botafogo, onde se descortinava à esquerda, a estátua do Cristo Redentor no cimo do Corcovado e à direita, os morros da Urca e do Pão de Açúcar, e os barcos ancorados que as ondas do mar faziam balançar, sob o céu azul e o sol a brilhar. A seguir, o Parque do Flamengo, com edifícios à esquerda; à direita, o oceano e o imenso jardim planejado por Burle Max, com inúmeras quadras de esportes, trincheiras, passarelas, pistas para ciclistas e pedestres. Durante 17 anos contemplei diariamente essa bela paisagem e vi o crescimento de árvores e folhagens até a vegetal exuberância dos dias atuais.

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