sexta-feira, 3 de julho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XII

Na década 1971/1980, alguns países buscaram poder nuclear mediante a produção da bomba atômica, como a Índia e o Paquistão (1973). Com a queda de Mohammed Reza Pahlevi, Xá da Pérsia e amigo dos EUA (1979) os religiosos muçulmanos assumiram o governo. O aiatolá Khomeini regressou do exílio, liderou a nação e estimulou o ódio contra os EUA e Israel. Por direitos territoriais a República Islâmica do Irã (novo nome da Pérsia) entra em guerra com o Iraque de Sadam Hussein, amigo dos EUA (1980). Irã e Israel dedicam-se à pesquisa nuclear a fim de produzir bomba atômica. A diplomacia desses países nega essa intenção. Na América, o Brasil e a Argentina desistiram de produzi-la, deixando os EUA como o único país a possuir arsenal atômico no continente. Na América Latina ocorreu uma série de golpes militares orquestrada pelo governo dos EUA contra governos de esquerda. No Chile, os golpistas mataram Salvador Allende, primeiro governante marxista eleito no continente (1970/1973). Na Nicarágua, cai a ditadura de direita; a revolução sandinista sai vitoriosa (1979).

Devido ao escândalo Watergate, Richard Nixon renuncia à presidência dos EUA (1974). As duas grandes potências, EUA + URSS, acertaram estratégia para congelar a guerra fria (détente) na Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa, realizada em Helsinque (1975). Essa conferência abriu margem aos países da Europa Oriental para reivindicarem autonomia em relação à URSS, do que resultou o rompimento do vínculo na década seguinte. A visita do papa João Paulo II à Polônia (1979) contribuiu para esse rompimento. Multidões ouvem-no e cantam com entusiasmo em praça pública. Em pleno regime comunista, o papa coloca Deus e Jesus acima de Marx e Lênin. O efeito mesmerizador de palavras e gestos faz o povo sentir a presença divina e perder o medo. O papa, ao beijar o solo polonês, provoca um terremoto. A onda religiosa engolfa a Europa Oriental. No ano seguinte, Lech Walesa, operário polonês católico, em frente ao estaleiro Lênin, em Gdansk, anuncia a fundação do primeiro sindicato livre em solo comunista e o denomina Solidariedade (1980). O nome desperta sentimentos ao invés de argumentos. Solidariedade como altruísmo em nível ético, compaixão em nível religioso, laço de interesses recíprocos em nível jurídico.

O movimento republicano e de independência na África, iniciado na década 1951/1960 (Líbia, Egito, Argélia) continua avassalador nas décadas seguintes, modificando o mapa do continente. O mesmo ocorria na Ásia morena e amarela (Kuwait, Bangladesh, Sri Lanka, Malásia, Camboja, Laos, Vietnã). As duas grandes potências manipulavam o movimento em todos esses países, segundo interesses estratégicos e econômicos.

O Brasil passou a década 1971/1980 sob regime autocrático. As forças guerrilheiras na Bahia (MR8) e no sul do Pará (Araguaia) foram dizimadas pelas forças do governo. Em maio/1970 os guerrilheiros haviam sofrido derrota no Vale da Ribeira, local de treinamento no sul do Estado de São Paulo próximo à fronteira com o Estado do Paraná. Em 1977 é promulgada a lei do divórcio pela qual o senador Nelson Carneiro lutara muitos anos. Finalmente derrotada, a igreja católica procura convencer os fiéis a não se divorciarem. A defesa do dogma salta da tribuna para o púlpito. No mesmo ano, o presidente Geisel decreta a reforma do Poder Judiciário. Em carta publicada no Jornal do Brasil protestei contra o ato arbitrário e qualifiquei o presidente de usurpador. Depois dessa carta, o jornalista Castelo Branco começou a criticar moderadamente o governo em sua coluna no referido jornal. Como nada lhe aconteceu, outros jornalistas o imitaram. A distensão, lenta e gradual, do regime autocrático, mostrou-se efetiva ao tolerar essas manifestações; o governo afrouxou a censura à opinião pública e à opinião publicada. Nas dependências do DOI-CODI foram mortos o jornalista Wladimir Herzog e o metalúrgico Manoel Fiel Filho. O setor civil da sociedade brasileira protestou. O comandante da região militar de São Paulo foi exonerado.

O Ato Institucional nº 5 foi revogado em 1979. Decretada anistia geral, retornaram ao Brasil os exilados voluntários e involuntários. Entre os voluntários havia os oportunistas que lecionavam na Europa e desfrutavam o exílio dourado. Os involuntários sofriam real ameaça do sistema repressivo militar (Brizola, Arraes, Betinho, Gabeira entre outros). Foi extinto o bipartidarismo (ARENA x MDB). Houve greves no ABC paulista. Com apoio da igreja católica e dos intelectuais de esquerda, os trabalhadores fundaram um partido político sob a liderança do operário metalúrgico Luiz Inácio da Silva (1980). Esse operário foi eleito e reeleito presidente do Brasil em 2002 e 2005, respectivamente. Governistas da extrema direita praticaram atos de terrorismo contra instituições defensoras da democracia (Ordem dos Advogados do Brasil/RJ, Associação Brasileira de Imprensa/RJ, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento/SP). Além disso, tentaram explodir bomba em festa popular no Riocentro/RJ. O artefato bélico, no colo do terrorista, detonou no interior do automóvel por ele ocupado.

Para se distinguirem dos caudilhos latino-americanos, os presidentes brasileiros usavam trajes civis durante a ditadura militar. Construíram as usinas nucleares de Angra dos Reis, a hidrelétrica de Itaipu (sacrificando a beleza natural das Sete Quedas de Guaíra, no Paraná), a rodovia transamazônica e a ponte Rio-Niteroi. O mar territorial brasileiro foi ampliado para 200 milhas. A crise do petróleo provoca recessão (1973). A moeda perde poder aquisitivo. Diminuem as chances de emprego. Facilitou-se o crédito aos consumidores e aos agricultores. Incrementou-se a exportação de manufaturados e de gêneros agrícolas. A produção rural modernizou-se. Surgem empresas agropecuárias. Prevalecem a pecuária e a lavoura de exportação (soja e trigo). Cai a produção do café. Empresas estatais crescem em número e incorporaram o espírito capitalista; visam mais aos lucros em detrimento do interesse público. Cresce a informalidade (biscateiros, artesãos, contrabandistas, receptadores, falsificadores, contraventores). A camada baixa da sociedade vive em precárias condições, sem moradia própria, aluguel abusivo, escola pública de má qualidade, acesso difícil a médicos, remédios e hospitais, saneamento básico deficiente. Pesa ao inquilino taxas de administração e tributos que são obrigações do locador, imoralidade que a lei de 1991 não afastou, pois permitiu que essa obrigação legal do locador fosse invertida no contrato escrito celebrado com o locatário.

Aluguei quarto em apartamento de família, na Rua Ápia, no alto da Avenida São João, em São Paulo (1969). O aluguel consumia quase todos os meus parcos rendimentos. Havia dias em que a minha única refeição era o conteúdo de um frasco de Yakult. Em outros, era caldo verde no Largo do Arouche. A certa altura do ano, chegaram Luis Cassiano, meu amigo de boemia, mãe e padrasto, com o propósito de abrir escritório de corretagem na área dos incentivos fiscais, como fizeram em Curitiba. Atendendo ao pedido deles, o Dr. Magalhães e eu cedemos os nossos nomes para figurar no contrato social a fim de completar o número mínimo de sócios exigido por lei. O trabalho deles teve sucesso. Algumas vezes jantei com eles no Restaurante Franciscano. O padrasto de Cassiano pagava a despesa com cartão Diners, sinal de status na época. Certa ocasião, eu jantei com o engenheiro Armando Robert (compadre dos meus pais), esposa e a bonita filha do casal. Vieram a São Paulo para cuidar do transporte dos bens oriundos da Europa. Ele me procurou no escritório e eu o ajudei nessa tarefa. De vez em quando, eu tomava refeição na casa da minha prima Luzia, que morava com os pais. O pai dela e o meu não eram irmãos de sangue. O meu avô paterno, viúvo e com filhos, casara com a avó paterna de Luzia, viúva e com filhos. O tratamento de primos era convenção doméstica. Luzia, no ápice da carreira no Ministério Público, ingressou no tribunal de justiça de São Paulo como desembargadora.

Em uma das minhas visitas, quando Luzia ainda morava na Aclimação e era promotora de justiça em início de carreira, lá encontrei o namorado dela. Durante a conversa, confessei timidez ao tratar com as autoridades. Ele sugeriu a prática de arte marcial. Lembrei que na Praça João Mendes havia placa na fachada de um prédio anunciando caratê. Fui conferir. Lá estava: Nihon Karate Kyokai. Conheci o sensei Sagara, de quem me tornei discípulo. O estilo era shoto-kan. Combinei arte mística e arte marcial. A timidez sumiu. Em 1970, já em Curitiba, treinava com o nissei Júlio, meu companheiro na academia do sensei Sagara, quando viajei para o sudoeste do Paraná como juiz substituto. Só treinei em academia novamente, no Rio de Janeiro, de 1974 em diante, com o sensei Tanaka, no Botafogo e Flamengo, com o sensei Takeuchi, em Copacabana e com o sensei Inoki nas academias do Leblon e Ipanema, sem me preocupar com graduação de faixas. Prestei alguns exames para não comprometer a academia no que tange à eficiência do ensino. A faixa preta compreende 10 graus. Apto ao terceiro grau, eu fui morar em Itatiaia/RJ (Penedo), onde treino sozinho para manter a forma (2004).

Em 1970, na festa de aniversário da minha prima Maria Cristina, um amigo da família, Jorge, informou a data do concurso para juiz substituto. Eu, que estava de visita a Curitiba, viajei para São Paulo imediatamente, em companhia de Sandra, minha irmã, de Terezinha, minha amiga e do sobrinho dela, Washington. Apanhei livros, roupas e os acomodei no fusca que pertencia à Terezinha. Regressamos a Curitiba, num só ímpeto, em uma única viagem, da noite para o dia, literalmente. Terezinha comentou: “Parece que estamos fugindo”. Tranqüilizei-a: “O aluguel é adiantado, o contrato é verbal, tenho crédito de 15 dias e posso sair a qualquer momento”.

Silenciei sobre um cuidado especial. Cerca de um mês antes disso, uma senhora portuguesa, amiga do casal e que freqüentava o apartamento para jogar cartas, chamou-me à casa dela e me confidenciou que a locadora do quarto apaixonara-se por mim e que o marido estava desconfiado. Ele era policial civil e usava arma de fogo. Quando chegamos para pegar os meus pertences, o casal não estava no apartamento. Por medida de cautela, resolvi não aguardar a chegada deles. Mais prudente era arrumar as coisas e partir sem despedidas. Voltei lá no mesmo ano para apanhar a correspondência. Antes, telefonei para que a deixassem na portaria. Alguns envelopes estavam abertos.

Na mesma ocasião, fui ao escritório do Dr. Magalhães e o informei do meu regresso ao Paraná. No ano anterior, após o almoço de domingo na casa dele, fomos ao estádio do Morumby assistir ao jogo São Paulo x Corinthians. Nós dois éramos torcedores do São Paulo FC. Notei um jogador que andava no campo como se fosse o rei da cocada preta. Perguntei ao Dr. Magalhães, apontando com o dedo: “Quem é aquele jogador?” Ele respondeu como se estranhasse a minha pergunta: “É o Rivelino!”.

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