sábado, 8 de agosto de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XVII

No Leme, eu passeava com Evandro na praça, deixava-o brincar com certa liberdade, inclusive que subisse a escada do escorregador. Eu o amparava em baixo quando ele escorregava lá de cima. Na praia, ele brincava com bola colorida, com balde e pequena pá fazendo castelo e outros desenhos com a minha ajuda. De carro, ao entardecer, com Jussara, passeávamos a beira mar, pela Avenida Atlântica. Do interior do carro, certo final de tarde, Evandro, com um ano e poucos meses de idade, todo alvoroçado, apontou para nós a placa circular de 60 centímetros de diâmetro, mais ou menos, com o anúncio da Coca-Cola. Reconheceu a imagem formada pelas letras.

Financiado pela Capemi, adquirimos o nosso primeiro imóvel. Pagamos em 8 anos. Ali, no apartamento de Ipanema, nasceram Gabriela (1975) e Rafael (1979). Na maternidade da casa de saúde São Sebastião, no Catete, em ambos os partos, fiquei do lado de fora da sala. O médico da Jussara, Dr. Jefferson, era excelente. Os passeios tiverem pequenos acréscimos: praia, praça e barcos de pedal na lagoa Rodrigo de Freitas. Passeávamos pelas praças do Leblon e Copacabana, porém a mais visitada era a da Nossa Senhora da Paz, próxima da nossa casa, em Ipanema. As crianças gostavam muito, inclusive de assistir peças infantis no teatro. Aos domingos, quando não íamos à sede campestre da associação dos magistrados, almoçávamos em diferentes restaurantes da Zona Sul e da Zona Oeste.

Nas férias, viajávamos para Curitiba e nos hospedávamos na casa de dona Isaura, mãe da Jussara, única avó que meus filhos conheceram, pois o avô materno e os avôs paternos eram falecidos. As crianças brincavam no quintal, na rua e na praça com a meninada. Nos anos 90, adquirimos terreno e construímos um sobrado ao lado da casa de dona Isaura, no Jardim das Américas. De vez em quando, fazíamos churrasco lá em casa, com a moçada da vizinhança e com nossos amigos curitibanos.

Aproveitamos algumas férias para conhecer o Nordeste. Em Porto Seguro, na Bahia, visitamos os índios da Coroa Vermelha. Trouxemos artesanato indígena. No hotel em que nos hospedamos os quartos eram separados e imitavam oca. As crianças adoraram e brincaram a valer. Lá fizemos uma excelente fritada de camarão graúdo que nunca mais esquecemos. Na viagem seguinte, Porto Seguro crescera muito, havia até aeroporto. Já não gostamos tanto. Filhos adolescentes. Muito movimento e barulho. A lambada comia solta. Revisitamos Salvador e fomos até Alagoas, curtindo as praias. Em Sergipe, conhecemos Propriá, cidade natal do meu avô paterno.

Um dia, em Ipanema, recebemos a visita de dois jovens, Roberto Amin e Paulo Serejo. Vieram nos convidar para a fundação de um corpo afiliado da Ordem Rosacruz. Como membros da instituição, aceitamos o convite. Os dois continuaram a freqüentar o nosso apartamento e se integraram à pequena família. Às vezes ficavam com nossos filhos, que a eles se afeiçoaram, para que eu e Jussara pudéssemos ir ao cinema. No restaurante da Rua Garcia D´Avila, próximo à nossa casa, as pessoas se admiravam ao ver nossos filhos pequenos a comer de garfo e faca. Os três estudaram no Chapeuzinho Vermelho, colégio que ficava na Rua Prudente de Moraes, atrás do prédio onde morávamos, o que facilitou o nosso trabalho de levá-los e buscá-los. Eles cursaram o ensino médio em colégios diferentes: Evandro, no Santo Agostinho, Gabriela no Gimk, ambos no Leblon e Rafael no Anglo-Americano, na Barra da Tijuca.

Depois de 11 anos, vendemos o apartamento de Ipanema. Mudamos para o Leblon e depois para Barra da Tijuca, onde também moramos 11 anos. Vendemos o apartamento e retornamos a Ipanema. Decorridos 3 anos, mudamos para Penedo, colônia finlandesa situada no município de Itatiaia, no sul do Estado do Rio de Janeiro, onde compramos terreno e construímos a nossa casa.

O presidente do tribunal de justiça, talvez por me considerar de pouca idade para os padrões da magistratura do Estado da Guanabara (antigo Distrito Federal) resolveu aclimatar-me antes de me designar para varas cíveis e criminais. Designou-me para o registro civil. Notei que o procedimento de habilitação de casamento era demorado. Determinei que fosse observado o código civil: a habilitação devia ter seus trâmites perante o oficial do cartório; conclusão ao juiz só quando houvesse dúvida séria. Exigi que os promotores de justiça se pronunciassem sobre a habilitação em cota única, uma só vez, para evitar pronunciamentos a conta-gotas e o interminável vai e vem que angustiava os interessados, retardava a data do casamento e desprestigiava a justiça. Baixei portaria regrando o procedimento na circunscrição sobre a qual eu tinha jurisdição. Os promotores de justiça ficaram descontentes e a partir daí fui considerado inimigo do Ministério Público. O corregedor-geral da justiça inspecionou o cartório do registro civil e fiscalizou os meus atos. Nada encontrou de ilegal ou abusivo. As outras circunscrições copiaram as normas contidas na minha portaria. O oficial do cartório comentou: “Vossa Excelência mudou costumes aqui vigentes há 90 anos”. A esse comentário, acrescentei: “costumes e praxe contra legem”.

Celebrei casamentos em salão comum no forum, em salões nobres, em clubes e em residências particulares. Uma vez, suspendi a cerimônia quando percebi que a noiva exibia sinais de debilidade mental. Determinei que se procedessem às cautelas legais, apesar dos protestos do noivo e dos familiares. No mesmo salão, em data diferente, enquanto celebrava um casamento, um senhor me cumprimentou e sorriu. Logo o reconheci: Hélio Gracie, o mestre do jiu-jitsu, pai do noivo. Em celebração externa, no Jardim Botânico, notei o noivo com a cara enfezada e certa indisposição contra a minha pessoa. Indaguei ao escrevente: “O que está havendo com esse rapaz?” “Ele está nervoso porque vossa excelência, em processo criminal, condenou a noiva e lhe cassou a carteira de habilitação para dirigir automóvel”. Coincidência infeliz. Nesse tempo eu já iniciara judicatura no contencioso, em vara criminal, acumulando com o registro civil, mas não me lembrava do caso. Em luxuoso apartamento na Avenida Vieira Souto, o metro quadrado mais caro do mundo naquele ano, um senhor português veio conversar comigo. Elogiei o seu linguajar. Conhecendo o costume brasileiro de caçoar dos portugueses, ele não sabia se eu falava sério ou ironizava. Quando percebeu a seriedade do meu comentário, ele respondeu: “Vossa Excelência está acostumado com o linguajar dos meus patrícios aqui do Brasil, geralmente pessoas rudes, de pouca instrução, diferente das pessoas educadas e cultas lá de Portugal”.

A partir daí, comecei a prestar atenção a essa diferença. O linguajar de Mário Soares, primeiro-ministro de Portugal, por exemplo, era superior ao da maioria dos portugueses cá do Brasil, com os quais conversamos na padaria. Até os modos são mais contidos, educados, civilizados. Comparados com os de lá, os portugueses de cá, de um modo geral, se mostram grosseiros. Isto vale também para os espanhóis. Em Portugal e Espanha, percebe-se a diferença entre o modo de falar culto e o modo vulgar, nos programas de televisão daqueles países.
Ao me dirigir com o escrevente à sede do Fluminense FC, para celebrar casamento, o nosso carro foi barrado no portão. Devíamos estacionar fora do clube. Mandei o motorista regressar à minha casa (eu ainda morava no Leme). Passada meia hora, chega o escrevente com o pai da noiva se desculpando e rogando que eu celebrasse o casamento da filha. Quando lá voltei, o portão estava escancarado, o porteiro fez reverência, outro abriu a porta do carro na entrada principal do clube. Só faltou o tapete vermelho. Ficaram cientes de que prédio particular se torna temporariamente público na presença oficial do juiz celebrante.

Antes das palavras da lei, eu fazia o pregão e discursava alguns minutos sobre as dimensões naturais, sociais, morais e espirituais do matrimônio, sem conotação religiosa. Esse procedimento valeu-me convite de um desembargador para celebrar o casamento da filha dele católica, com o noivo judeu. Certamente a pedido dele, o presidente do tribunal autorizou-me a presidir a cerimônia na Reitoria da Universidade Federal. Eu aguardava a hora na sacada, já de capa, quando ouço voz feminina se dirigindo a mim. Era minha prima Luzia, amiga do irmão da noiva, colegas no Ministério Público de São Paulo (alguns anos depois, esse irmão da noiva ingressou na magistratura do novo Estado do Rio de Janeiro). Ao fim da cerimônia nos reunimos, eu, Luzia e Hamiltinho ali mesmo na Reitoria, pois não foi possível aceitar o convite para jantar, eis que Jussara estava sozinha com nosso filho Evandro de um ano de idade.

O noivo esperava à frente da mesa bem ornada, livro do registro de casamentos aberto, numerosos e seletos convidados. As portas se abrem e a noiva entra com vestido primoroso, compassadamente, sobre um tapete vermelho. Os convidados formaram um corredor por onde ela passou apoiada no braço do pai; ambos emocionados. Os noivos postaram-se à minha frente. Comecei o discurso com o pregão do casamento: “Estamos aqui reunidos para celebrar o matrimônio...” Respeitoso silêncio no salão nobre da Reitoria. Quando mencionei o significado transcendental do amor, os dois apertaram mais ainda as mãos. Tocada pela emoção, a mãe do noivo deposita sobre a mesa um símbolo da religião judaica. A noiva católica não se importou. Dias depois, na sala da associação dos magistrados, encontrei o desembargador que, ao comentar a cerimônia do casamento da filha, citou uma expressão usada por convidado ilustre a respeito do meu discurso: “Esse juiz sabe o que diz e diz o que sabe”. Na hora, fiquei mudo e comovido com a alegria e felicidade estampadas na fisionomia daquele pai.

A minha judicatura no contencioso começou em vara criminal. O titular estava de férias. No seu lugar estava um juiz substituto, Asclepíades Eudóxio, de uma turma anterior a minha. Asclepíades era originário de Manaus, onde estava convocado como juiz substituto de desembargador do tribunal de justiça do Estado do Amazonas. Aprovado no concurso para a magistratura da Guanabara, ele e a esposa vieram morar na Praia do Flamengo. Em rua transversal, ficava o hotel onde, eu e Jussara, nos hospedamos quando chegamos ao Rio de Janeiro. Foram as primeiras pessoas que visitamos. Na casa deles o Evandro, com 11 meses de idade, recebeu confortável tratamento. Até nos mudarmos do hotel para o apartamento do Leme, fizemos constantes visitas ao casal.

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