sexta-feira, 24 de julho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XV

Ao presidente do tribunal de justiça, pedi e obtive remoção para a região nordeste do Paraná, constituída das comarcas de Castro, Piraí do Sul, Jaguariaíva e Sengés (divisa com o Estado de São Paulo). Em Castro, alugamos casa e nos instalamos (Jussara, Evandro e eu). Em bonito dia de domingo visitamos a colônia holandesa. As janelas das casas exibiam cortinas brancas bordadas. Através da vidraça via-se o interior ordeiro e limpo. Em torno, árvores, hortas e jardins. Os moradores encontravam-se reunidos no templo religioso e no salão de festas da comunidade holandesa onde celebrei alguns casamentos. O senso de propriedade daquela gente era muito forte e me fazia sentir estrangeiro, mesmo sendo autoridade brasileira. Fisicamente, eu parecia um pigmeu perto daqueles homens e mulheres de elevada estatura. Da criação de gado e da produção artesanal de leite e seus derivados, a colônia progrediu tecnicamente como indústria. Os seus produtos recebiam o nome Batavo.

Evandro estava com dois meses de idade e tinha de tomar três doses de vacina em meses consecutivos. Jussara o levou à farmácia de Castro. Na terceira dose, o farmacêutico insistiu na receita que Jussara esquecera em casa. De nada adiantou lembrá-lo de que a receita fora apresentada a ele próprio na aplicação das doses anteriores. Além de se negar a aplicar a terceira dose, o farmacêutico agiu de modo grosseiro e ofensivo. Jussara foi para casa, apanhou a receita, retornou à farmácia e finalmente a vacina foi aplicada. Ela inteirou-me da conduta do farmacêutico. Não tive dúvida. Chamei-o ao gabinete, dei-lhe uma espinafrada e mandei que fosse à minha casa se desculpar com minha esposa. Ele obedeceu.

Certo dia, no tribunal de justiça, fui interpelado pelo corregedor: “Você mandou prender o farmacêutico porque ele se recusou a vacinar sem receita”. Político da região, parente do farmacêutico, havia representado contra mim. Respondi ali mesmo no gabinete do desembargador: não houve prisão alguma, nem abuso; eu apenas não tolerei injúria feita à minha esposa. Não se tratava de ter ou não ter receita e sim da grosseria com que ela foi tratada. Como eu não podia agir como homem e arrebentar os cornos daquele desgraçado, uma vez que eu era juiz, a solução que melhor me pareceu foi aquela e ponto final. A representação foi arquivada.

Sengés faz divisa com Itararé, cidade natal do Névio, que viera morar na vizinhança da casa da minha avó, em Curitiba. Ficamos amigos, eu e ele, minha irmã mais velha e a irmã dele. Jussara e eu fizemos ronda pela cidade paulista que deu nome a uma batalha que nunca houve e cognome irônico ao jornalista e humorista gaúcho Aparício Torelly (Aporelly): “Barão de Itararé”. Almoçamos na residência da promotora de justiça de Sengés, aprazível casa de estilo colonial onde Evandro recebeu os devidos cuidados.

Estava eu despachando no fórum de Sengés quando a servente entra no gabinete. Desenvolta, ela foi logo passando o pano sobre a mesa em movimentos ondulatórios além do que exigia a quantidade de pó, curvando-se de modo a exibir seios que ameaçavam saltar do generoso decote. Viúva jovem, asseada, perfumada, bonita, cintura fina, pernas bem torneadas. Após a anatômica analise, fiquei a imaginar o motivo de a servente se apresentar daquele modo para fazer faxina. Resolvi adverti-la: “Como a senhora não está em gozo de férias ou licença, deverá: (i) comparecer diariamente ao fórum (ii) reduzir o decote um milímetro, no mínimo (iii) manter a barra da saia 18 cm acima do joelho, no máximo (iv) usar óculos de grau para não confundir o colo do juiz com a poltrona”. Ela saiu toda serelepe no bamboleio próprio das mulheres bem dotadas. Acho que eu não devia ter sido tão severo com a moça. Alguns dias depois, na comarca sede (Castro), por casualidade, inteirei-me da causa daquela desinibição da servente: o juiz titular vivia um idílio com a viúva. Posteriormente, obteve emprego para ela no tribunal de justiça. Solteiro, barrigudo, corcunda, usando óculos com lentes que pareciam fundo de garrafa sobre um nariz curvo divisor de faces macilentas, aquele juiz, não fora a toga, não pegaria nem resfriado.

Dizia Ullysses Guimarães: “O poder é afrodisíaco; tenho orgasmo de poder”. A autoridade tem força atrativa e sedutora. Os assédios, ostensivos ou disfarçados, são constantes durante a carreira do magistrado. Mulheres bonitas, perfumadas, charmosas, tentam despachar com o juiz na menor distância possível e logram o seu intento se o magistrado não solicitar à intrusa que se poste à frente, deixando a mesa entre ambos, como convém à austeridade do cargo. Cruzadas de pernas à Sharon Stone, olhares lânguidos, falas macias, gestos estudados, consultas que alimentam a vaidade intelectual seguidas de atitudes de admiração ante a sabedoria da resposta, são técnicas empregadas no jogo da sedução contra as quais o juiz deve se precaver.

Cupido também lança flechas no coração das juízas. Há homens que utilizam a sua beleza, o seu charme, o seu porte vistoso, a elegância de suas vestes, para atrair as juízas, na tentativa de encantá-las e, desse modo, obter adesão à sua causa. As mulheres percebem as intenções dos homens, mesmo quando ocultas em artifícios verbais e atitudes de fingido desinteresse. De um modo geral, elas não são iludidas; elas se deixam iludir. A insinuação mais sutil é percebida. Essa fina percepção parece atávica, desde as culturas eolítica e paleolítica. De tanto ser submetida à força, como fêmea, a mulher desenvolveu esse instinto. Apaixonados, juízes e juízas sucumbem aos propósitos dos seus amados e entram no tráfico de influência.

“Amor, invencível amor, tu que subjugas os mais poderosos; tu, que repousas nas faces mimosas das virgens; tu que reinas, tanto na vastidão dos mares, como na humilde cabana do pastor; nem os deuses imortais, nem os homens de vida transitória podem fugir a teus golpes; e quem for por ti ferido, perde o uso da razão! Tu arrastas, muita vez, o justo à prática da injustiça, e o virtuoso, ao crime; tu semeias a discórdia entre as famílias... Tudo cede à sedução de uma mulher formosa, de uma noiva ansiosamente desejada; tu, amor, te equiparas, no poder, às leis supremas do universo, porque Vênus zomba de nós!” (Sófocles, em Antígona).

No que tange às consultas, sedutoras ou não, o magistrado deve se recusar a respondê-las. Essa tarefa cabe aos advogados, privativamente. A divergência entre os operadores do direito sobre o enquadramento jurídico dos fatos é normal. Os pareceres sobre a mesma questão podem se diferenciar inclusive quanto à estratégia a ser empregada. Um juiz, por sua credibilidade e suposta cultura, ao emitir opinião diferente poderá colocar o advogado em situação embaraçosa. O advogado terá um trabalho adicional para explicar a sua opinião e a estratégia escolhida; assim mesmo, poderá perder o cliente.

Na comarca de Jaguariaíva encontrei meu conterrâneo Jarbas Martins, vereador respeitado na comunidade. A mãe dele era prima da minha mãe. Aproveitando um domingo, Jussara, Evandro e eu, fomos visitar e conhecer a família do Jarbas. Passamos uma tarde agradável. Quando solteiro, estive algumas vezes na casa do Jarbas. Ele morava com os pais em Ponta-Grossa, meus padrinhos de batismo. Jogávamos bilhar e íamos ao cinema. Flertei com Iara, a irmã caçula. Jarbas nos surpreendeu na sala quando ela acariciava o meu rosto com uma flor. Ele caçoou de ambos. Lá, fiz serenatas com meus amigos e reunião na casa da Isabel, a outra irmã dele, casada com um radialista.

Jussara, Evandro e eu, em alguns domingos, visitávamos os tios Leocádio (capitão do exército) e Leocádia (irmã mais nova da minha mãe) em Ponta-Grossa, cidade vizinha de Castro. Dona Mercedes, mãe de Leocádio e minha avó Lúcia, mãe de Leocádia, ambas espíritas kardecistas, tinham fé no espírito do doutor Leocádio. Pendurado na parede da sala da casa de vovó Lúcia, havia um quadro grande com a fotografia desse médico. Vovô Sebastião zombava dos modos e das rezas da minha avó. Quando chovia forte e trovejava, minha avó rogava: “Santa Bárbara, São Jerônimo, nos protejam”. Meu avô, aproveitando o ruído, acompanhava: “Faça a barba São Jerônimo”. Vovó não percebia a mudança na invocação e se sentia apoiada pelo marido.

Mesa farta no almoço, no lanche ou na janta, a casa dos meus tios/compadres era ponto de alegria com meus primos. Eu e Arlete, minha irmã, fomos padrinhos de batismo de um desses primos, Alexandre, na igreja do Bom Jesus, em Curitiba. Ele se empregou na usina Itaipu, em Foz do Iguaçu. Henrique, o primogênito, era caminhoneiro; um enfarte o tirou do nosso convívio, colhendo todos de surpresa. Ao escrever o romance “O Evangelho da Irmandade”, sempre que eu me referia a João Batista, a imagem física que me vinha à mente era a desse primo, embora no livro eu tenha desenhado imagem diferente para combinar com o pai carnal do apóstolo. Os outros primos: Augusto cursou a Academia das Agulhas Negras e seguiu carreira militar, Alícia e André formaram-se em diferentes cursos universitários de graduação e pós-graduação. Eu tomei a família desses tios para modelo da minha própria.

Na comarca de Pirai do Sul, assim como nas outras comarcas, o volume de serviço era pequeno. Custas judiciais provenientes das cédulas rurais, recolhidas na correição periódica, constituíam fonte extra de receita para os juízes. Durante as férias dos juízes titulares eu as recolhia. Na comarca de Castro, o juiz titular se insurgiu contra esse procedimento. Mandou o oficial de justiça à minha casa para que eu comparecesse ao gabinete dele. O oficial retornou com o recado de que eu lá estaria no expediente do dia seguinte. O juiz titular exigiu a devolução do dinheiro, sob pena de representar contra mim. Perplexo pelo desplante, eu o mandei contar favas: “Vá ao tribunal se quiser, mas nada devolverei”. Pelo meu gesto, ele entendeu que eu o estava enviando para outros lugares, além do tribunal.

Ao contrário do que o público imagina, não há subordinação do juiz substituto ao juiz titular, embora entre ambos deva existir respeito. Da mesma forma que o titular, o juiz substituto está investido nos poderes jurisdicionais; ele não é substituto deste ou daquele indivíduo, nem subalterno; exerce atribuições próprias na região judiciária para não deixar as comarcas sem atendimento no caso de vaga ou afastamento dos titulares. A situação assemelha-se ao do Vice-Presidente da República, que não é subordinado ao Presidente, tem cargo próprio no qual é empossado com função específica de substituir ou suceder o titular. Essa distinção feita pelo jurista Afonso Arinos, em programa de televisão, quando Tancredo Neves faleceu, foi decisiva para que José Sarney, Vice-Presidente eleito, assumisse o cargo do titular em toda a extensão do mandato.

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