sexta-feira, 17 de julho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XIV

No primeiro inverno que passamos em Pato Branco, seco e dias ensolarados, Jussara e eu, apesar do frio, fomos acometidos da sede por cerveja durante a noite. Estocamos na geladeira garrafas pequenas e bojudas. À noite, estourávamos pipocas na caçarola e tomávamos cerveja bem gelada sob os cobertores. Parecia contra-senso, mas era muito bom. Algumas noites, temperatura beirando cinco a dez graus acima de zero, saíamos para comer frango a passarinho e tomar cerveja bem gelada no restaurante que ficava no subsolo de um sobrado. Agasalhados, com o nariz vermelho e os lábios roxos de frio, a tomar bebida gelada! A fina camada de gordura que ficava nos lábios passava para o copo e impedia a formação do colarinho de espuma. Isto exigia a troca do copo antes de a cerveja na garrafa chegar ao fim. Consumíamos o conteúdo de uma garrafa do tamanho comum. Foram momentos agradáveis e inesquecíveis.

No verão, recebemos a visita da minha sobrinha Vanice com o marido Estácio, nossos padrinhos de casamento. Resolvemos fazer nhoque no almoço. Preparamos a massa com farinha, ovos, sal, azeite. Enrolávamos os bolinhos, mas não encontrávamos o ponto. Buscamos mais um saco de farinha de 5 kg. A cozinha, de fórmica vermelha, ficou toda branca. Farinha no chão e para todos os lados. Almoçamos no restaurante.

Financiado pelo Banco Comercial do Paraná, adquirimos o nosso primeiro automóvel: Ford Corcel, amarelo-ouro, zero km. O velocímetro registrava 6 km rodados. Reclamei. O gerente da concessionária explicou que a rodagem era da revisão que precedia a entrega do veículo ao comprador. Aceitei a explicação, embora cabreiro; se é zero, tem que ser zero, ora pílulas! Depois, pensei: “Eles podem rodar com o veículo antes de vendê-lo sem o comprador saber; basta desligar o cabo do velocímetro”. Jussara e eu, de automóvel próprio, já podíamos acompanhar as famílias dos médicos de um dos hospitais, nos passeios pela estrada estadual em direção a Guarapuava, até o galpão à beira do rio onde guardavam esquis, salva-vidas, lancha e outros materiais. O pessoal era hospitaleiro. Sobre cavaletes, montava-se a mesa para as refeições preparadas com esmero pelas senhoras. Largo, fundo e volumoso, o rio cortava extensa área de mata virgem. Jussara e eu aprendemos a esquiar ao preço de algumas lavagens intestinais decorrentes da resistência da água à força propulsora da lancha. Esquiávamos em comunhão com a natureza. Em domingos ensolarados, lá íamos nós.

O açougue no térreo do edifício onde Jussara e eu morávamos, funcionava como termômetro social. Pela manhã, cedinho, eu tomava chimarrão com o irmão mais velho da família Viganó e me atualizava com os assuntos da região. Fiquei informado da troca de tiros entre o promotor de justiça e o dono de um bar. O corregedor do Ministério Público esteve na cidade para apurar o caso. Solicitou o meu depoimento. Concordei. Disse-lhe que não testemunhara o fato, nunca vira o promotor em bares e que ele era um excelente profissional; que certo dia Jussara e eu visitamos a família do promotor e nessa ocasião notei que a esposa dele desejava mudar-se para a cidade de Palmas e estava descontente porque o marido não obtinha remoção. Ao fim da sindicância, o procurador-geral determinou a remoção do promotor para a comarca de Palmas.

Em uma roda de truco na casa dos Viganó, quando a trucada estava em seis, estimulado por alguns copos de cerveja, subi à mesa, bati com os pés no tampo e falei alto, trazendo as cartas com as duas mãos contra o peito: “Nove, caboclo velho, nove, nove que seis é pouco”. O Viganó mais novo, cujo filho morava com a companheira em apartamento vizinho ao nosso, sem se levantar da cadeira, modulando o tom da voz em seqüência, respondeu: “É pouco mesmo doutor, quero ver se doze chega, doze doutor, doze que é pra terminar a conversa”. Era correr ou mandar ver. Correr, depois de todo aquele escarcéu, de modo algum. O meu adversário, com movimento rápido, bateu na mesa com os nós dos dedos da mão que segurava a carta, naipe voltado para cima: gato, manilha maior do truco. Coloquei o espadilha sob o maço de cartas e a viola no saco. Suportei zombaria por algum tempo. Passada a ressaca, tive a desagradável sensação de haver transgredido a ética da magistratura. Apesar do clima provocador e agitado próprio daquele jogo de cartas, censurei-me: “Você agora é juiz, temporário, mas juiz, cujo comportamento há de ser irrepreensível na vida pública e na vida particular”!

Notei, na comarca de Pato Branco, que os trâmites das reclamações trabalhistas eram mais rápidos dos que os trâmites dos processos cíveis. Além do interesse social na celeridade das causas trabalhistas, havia o interesse particular dos juízes: participação nas custas. O juiz titular da vara cível mostrou-se surpreso com os meus despachos que determinavam liquidação de sentença nos processos trabalhistas. Disse que passaria a fazer o mesmo. Julguei o mérito de dezenas de mandados de segurança que estavam parados. O juiz titular e o promotor de justiça comentaram que as minhas sentenças lembravam os ensinamentos de Pontes de Miranda (positivista, entre os maiores juristas do mundo ocidental). Repliquei, com ar blasé: “Pontes de Miranda, pelo visto, conhece direito”. Eles ficaram na dúvida se eu estava brincando ou falando sério. Anos mais tarde, visitei esse notável jurista. Morávamos na mesma quadra em Ipanema.

Durante as férias forenses eu despachava e decidia centenas de ações. Em uma Kombi, o escrivão da comarca de Coronel Vivida trazia pilhas de processos. Eu despachava no salão do tribunal do júri. Certo domingo, eu almoçava no hotel quando chega o escrivão de Chopinzinho com autos de um habeas corpus. Os pacientes estavam presos porque surpreendidos com madeira nos caminhões sem comprovante da origem. O delegado informa a falta de cumprimento dos requisitos legais para a prisão. Concedi a ordem. Na segunda-feira, recebo em meu gabinete o militar que efetuara a prisão, zangado porque tivera trabalho enorme para prender os ladrões. Disse que fora honesto e não aceitara propina; que, então, os ladrões pagaram ao delegado para dar aquela informação que propiciou a soltura. Colhi o depoimento e instaurei sindicância.

Os executivos fiscais, na comarca de Pato Branco, estagnavam depois que os devedores efetuavam o pagamento. Descobri que o dinheiro era depositado irregularmente na conta bancária particular da escrivã da vara cível. Procedi à correição no cartório, apurei as irregularidades e encaminhei o expediente ao Tribunal de Justiça. Resultado: fomos todos removidos. O juiz titular, para a comarca de Paranaguá, próxima à Capital do Estado; a escrivã, para Francisco Beltrão, comarca vizinha a Pato Branco; o juiz substituto, para Foz do Iguaçu, fronteira do Brasil com o Paraguai, a 400 km de Pato Branco e a 800 km da Capital, para eu deixar de ser besta e de meter-me a corregedor em vara que tem por titular genro de desembargador. Segundo me informaram à época, a remoção do juiz substituto que lá se encontrava deveu-se a dois motivos: (i) ele se desentendera com as autoridades militar e civil daquela cidade; (ii) saíra em perseguição de um réu, atravessando comarcas fora da sua jurisdição, com o propósito de efetuar prisão decretada em sentença por ele proferida. O tribunal aproveitara a vacância para me afastar de Pato Branco. Assim, não pareceria que eu estava sendo punido por haver apurado irregularidades que colocavam em má situação o juiz titular e a escrivã.

Chegando a Foz do Iguaçu, convidei o comandante do batalhão do exército, o delegado da polícia federal e o delegado da receita federal para reunião, em separado, no meu gabinete, a fim de aparar arestas, conforme me solicitara o corregedor-geral da justiça. A concórdia voltou a reinar. No jantar do dia da justiça em dezembro/1972, apoiado por colegas, pedi clemência ao desembargador corregedor para o juiz substituto que me antecedera em Foz do Iguaçu e que o tribunal pretendia exonerar. Em vão. Fiquei sabendo que esse colega prestou concurso para a magistratura de Mato Grosso, seguiu carreira e chegou à presidência do tribunal de justiça daquele Estado.

Em março de 1972, a concepção do primeiro filho. Oito meses depois, Jussara estava reunida com amigas no apartamento vizinho quando a bolsa estourou. Nessa ocasião, eu estava designado para a região oeste do Estado, cuja sede era a comarca de Foz do Iguaçu. Recebi mensagem, via rádio, do comandante do batalhão da polícia militar, avisando que minha esposa estava na maternidade. O comandante e a esposa reuniam conosco, ora em nossa casa, ora na casa deles, para jogar buraco (canastra, para alguns). O major regulava em idade comigo (33 anos); a esposa teria dois anos a mais do que a Jussara que, por sua vez, tinha dez anos menos do que eu. Ao contrário do marido, a esposa não prestava atenção ao jogo; o comandante se esforçava para disfarçar a irritação. Às vezes eu também me aborrecia com os descuidos da Jussara ao soltar cartas que completavam a canastra dos adversários. As duas não estavam nem aí para o jogo. Aproveitavam a reunião para conversar e lanchar.

Jussara, por causa da gravidez, ficara no apartamento de Pato Branco enquanto eu exercia a judicatura em Foz do Iguaçu. Contraí hepatite. Busquei tratamento em Pato Branco. O remédio aplicado pelo médico deixou meu corpo inchado e febril. Reassumi as funções após ter sido medicado com êxito por médico de outra clínica. Na iminência do nascimento do primeiro filho, saí às pressas de Foz do Iguaçu. Na serra, subi com o automóvel em um barranco e parei à borda do precipício. O afoitamento quase priva o pai de ver o filho nascer. Jussara estava sob os cuidados do Dr. Ildefonso Canto, excelente médico da maternidade de Pato Branco. No primeiro dia solar de novembro de 1972, nasce Evandro. Permaneci ao lado de Jussara, todo equipado com vestes hospitalares, vendo as tentativas do menino para sair do ventre materno. Foi uma experiência incrível. Cícero, juiz da vara criminal e sua esposa Vera, vieram na manhã seguinte. Testemunharam o nascimento no registro civil e assim tornaram-se nossos compadres. Um casal nissei (o varão era médico da clínica) presenteou o menino com manta amarelo-ouro que combinava com a cor do automóvel. Adquirimos enxoval para o bebê, óleo, talco, mamadeiras, fraldas, berço com mosquiteiro, colchão, lençóis, cobertores, travesseiros. Forramos um cesto para transportar o Evandro.

O nome do menino foi inspirado no de Evandro Lins e Silva, notável ministro do Supremo Tribunal Federal (vai longe o tempo em que esse tribunal tinha juízes notáveis). Segundo a mitologia, Evandro, rei da Arcádia, exilado na Itália, chefiava pequeno Estado, morava em cabana e auxiliou Enéias, chefe dos troianos, na luta contra os rútulos para conquista do Lácio, região italiana formada por algumas cidades, entre as quais, Roma se destacava. Pai Tibre, deus das águas, prometeu a Enéias os reinos latinos. Nova raça, que dominaria o mundo, nasceria da união de Enéias com Lavínia, filha de Latino, rei daquelas terras. A lenda combinou com a história: os romanos dominaram o mundo por 1.000 anos.

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