sexta-feira, 10 de julho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XIII

Havia duas formas de ingresso no cargo inicial da carreira de magistrado no judiciário paranaense: como juiz de direito titular ou como juiz substituto. Na primeira modalidade, o candidato prestava provas escritas e orais; se aprovado, era nomeado juiz de direito de investidura permanente. Na segunda modalidade, o candidato prestava apenas prova oral; se aprovado, era nomeado juiz substituto de investidura temporária. Para ingressar em caráter definitivo na carreira, o juiz substituto teria de prestar exames escritos e orais. O meu concurso foi para juiz substituto. A banca examinadora era de pessoas simpáticas, educadas, mais interessadas em selecionar do que em reprovar. O examinador mais antigo percebeu que eu não dominava o texto legal sobre o qual me inquiriam. Então, de modo paciente e pausado, começou a expor situações relacionadas ao texto e a me indagar a solução possível (se tal conduta tinha amparo legal, o enquadramento jurídico de tal situação, e assim por diante). Usou a maiêutica socrática. A exceção de uma, dei resposta satisfatória às demais questões. A banca me aprovou, certamente por haver notado que, embora eu não conhecesse bem aquele texto legal, eu conhecia o direito e me saíra bem nas outras matérias. Obtive boa classificação. Em virtude disso, coube-me região judiciária no próspero norte do Paraná.

Aí aconteceu a minha primeira experiência com as injunções de bastidor. Na lista divulgada, a região nortista ao lado do meu nome foi riscada e substituída por região do sudoeste. Mal sabiam os manipuladores - e eu também - que aquela manobra para favorecer um candidato menos classificado, porém, apadrinhado, iria mudar o meu futuro para melhor em outro Estado da federação. Estava escrito nas estrelas.

Aprovado no concurso, eu viajei a São Paulo a fim de renunciar aos mandatos recebidos da minha clientela. Notifiquei os meus dois clientes e protocolei as petições de renúncia. No dia anterior, a caminho da paulicéia, a certa altura da noturna viagem de ônibus, senti dedos na minha coxa direita em direção às partes pudendas. O moço sentado ao meu lado dispunha-se, gentilmente, a me proporcionar algum prazer, de modo a tornar a viagem mais agradável. Abri os sonolentos olhos, tornei o assento à posição vertical e mostrei de modo inequívoco a minha discordância. O moço nada mais tentou. Sem dar um pio sequer, desembarcou em Pinheiros.

Em dezembro de 1970, na cerimônia de posse, no salão nobre do tribunal de justiça, lá estava o moço do ônibus, vestindo a capa de juiz, empertigado e de braço com moça esbelta, face louçã, muito bonita. Mamãe, Adília e Jussara presenciaram a cerimônia. Tiramos fotografia. Sérgio, o orador da turma, vizinho no Juvevê, surpreendeu-se com a minha presença, como se eu estivesse deslocado naquele ambiente seleto. Eu não atinava como ele fora escolhido para falar em nome dos aprovados no concurso. Proferiu um discurso chinfrim, cheio de lugares comuns, como “a divina missão de julgar” e “não julgueis para não serdes julgados”. Ele não percebeu que a mensagem bíblica lançada ao ar sem ressalva era uma trava à nossa judicatura. Anos mais tarde, ele se aposentou voluntariamente para dar vazão à veia artística. Exibia cabelos compridos presos atrás da cabeça, como rabo de cavalo.

Jussara me conhecia desde criança. O flerte no aniversário da nossa prima passou a namoro. A aniversariante era minha prima por parte de mãe e prima da Jussara por parte de pai. O noivado foi sem festa, só eu e Jussara. Colocamos as alianças nos anelares da mão direita. Ela confiou em mim, embora eu estivesse na corda bamba. Nós dois comparecemos à festa da posse no cargo de juiz substituto realizada na sede campestre do Clube Curitibano, fina flor da alta sociedade. O salão do Clube Operário recebia outro tipo de público. Começava uma vida nova do ponto de vista social e político. Ato formal e simbólico de prestar compromisso e assinar um livro perante o presidente do tribunal, testemunhado publicamente, transformara o governado pobre em governante remediado. Investido na autoridade do cargo, passara de uma pessoa insignificante a uma pessoa importante para a comunidade. Tornara-me agente político de um dos poderes do Estado. Na esfera judicial, distribuiria justiça a pessoas naturais e a pessoas jurídicas na região do Estado para a qual fora designado.

Jussara e eu combinamos casar apenas no civil, em cartório, só com duas testemunhas. No horário marcado, o juiz não apareceu (22 anos depois, ele presidiu o tribunal de justiça). Fomos aguardá-lo na casa da minha irmã Adília. Desculpas apresentadas, cerimônia realizada, os padrinhos nos levaram até o balneário de Camboriú/SC. Sob o céu azul e o sol de outono, banhos de mar, caminhadas pela praia e consumo de camarão, peixe, frutos do mar e cerveja gelada. Terminada a lua de mel, Jussara e eu viajamos a Pato Branco, sede da região judiciária que incluía as comarcas de Clevelândia, Chopinzinho e Coronél Vivida, no sudoeste do Paraná.

No período de noivado, enquanto me hospedava no Hotel Central, em Pato Branco, aluguei apartamento de 3 quartos, sala, cozinha e área de serviço, em prédio novo de três andares, sem elevador. Providenciei a mobília, os eletrodomésticos, louças, copos, talheres, panelas, panos de prato, material de limpeza, rádio e aparelho de televisão, tudo adquirido na cidade; as coisas graúdas, a crédito. Em um dos quartos montei o escritório (mesa, cadeira, estante para os códigos e poucos livros, máquina de escrever).

No quarto do hotel eu cumpria ritual rosacruz. Certo dia, joguei os tocos de velas acumulados na lixeira. Causei involuntário rebuliço. O dono do hotel e os funcionários ficaram assustados com aquilo que podia ser coisa do diabo. Acalmei a todos, informando que fora eu quem jogara aquele material na lixeira. Disse-lhes que eu era muito devoto e acendia vela para rezar. A explicação foi necessária. 90% da população eram de gaúchos descendentes de italianos, todos muito ligados à igreja católica. A influência do pároco era muito forte. As práticas estranhas à igreja eram qualificadas de coisa do demônio.

Clevelândia foi a primeira comarca onde exerci a judicatura como juiz substituto. O nome da cidade vem do presidente Grover Cleveland, dos EUA, que arbitrou a questão de limites com a Argentina, cujo laudo arbitral reconheceu o direito do Brasil sobre o território das Missões (05/02/1895). Durante o governo de Artur Bernardes, todo sob estado de sítio (1923/1926) Clevelândia serviu de presídio político para rebeldes militares e civis integrantes do movimento descentralizador e tenentista, do qual resultou a coluna Prestes.

O juiz titular estava em férias. Jussara e eu íamos a Clevelândia pela manhã e regressávamos a Pato Branco no crepúsculo. Ao ver o modo e a rapidez com que eu despachava os processos e decidia as demandas, o escrivão do cível admirou-se: “Parece que Vossa Excelência é juiz há muito tempo”. Os despachos e sentenças eram manuscritos. Eu não levava a máquina de escrever para a comarca e nem confiava rascunhos aos serventuários. Quando examinava os processos em casa, as sentenças eram datilografadas. Em pouco tempo, o serviço estava em dia. O mesmo aconteceu nas comarcas de Coronél Vivida e Chopinzinho. Eu presidia audiências nas comarcas quando os juízes titulares entravam em férias ou se licenciavam.

Os conflitos motivados pela posse da terra e pela extração de madeira eram constantes na região. O delegado de Pato Branco cedeu-me um revólver Taurus. Alegou que a delegacia não tinha condições de me dar segurança nas andanças por essas comarcas onde havia mais lugares ermos do que habitados. Guardei-o no apartamento, na prateleira superior do armário do quarto de casal, de onde nunca saiu. Eu confiava mais na proteção cósmica. Esse delegado foi assassinado em Curitiba, nas proximidades do Hospital São Vicente. Emboscaram-no em plena capital do Estado. Quando delegados, promotores e juízes são emboscados, o indício é de envolvimento dessas autoridades com o lado mafioso da sociedade. A autoridade pode se envolver ao levar o caso para o terreno pessoal; persegue o bandido de modo concentrado e exagerado, em todos os sentidos. Ocorrem, ainda, as hipóteses de cumplicidade e de conivência entre a autoridade e o bandido, em que a emboscada caracteriza um ajuste de contas fatal.

Juízes que cumprem o seu dever com austeridade, firmeza e moderação, dificilmente são alvos de violência, porque respeitados como pessoas justas. As suas sentenças condenatórias no processo criminal são recebidas sem rancor. Os condenados têm consciência dos atos que praticam e senso de proporção. Ainda que protestem por inocência, eles sabem que a condenação foi justa; o protesto é mera encenação. Os condenados se revoltam quando no processo são incluídos crimes que não praticaram acumulados com os crimes que praticaram. Essa desova se faz para livrar a autoridade policial de investigar crimes de solução difícil, ou para livrar do processo penal os verdadeiros autores pelos mais variados motivos. Negar aos réus benefícios quando presentes os requisitos legais, também pode provocar reações violentas.

No quarteirão onde morávamos em Pato Branco, estava localizada a casa de um agrimensor considerado chefe da quadrilha de grileiros. A casa era freqüentada por pistoleiros. Jamais desviei caminho para evitar passagem sob a sua janela, nem ali passava com atitude desafiadora. Quando foi preso um dos pistoleiros acusado de homicídio, eu percebi que a comunidade esperava ação concreta e positiva do judiciário para livrá-la daquele facínora. O tribunal do júri ficou lotado. Pessoas esperavam do lado de fora o revezamento para assistirem ao julgamento. Alfredo, o promotor de justiça, foi corajoso e brilhante. O juiz presidente, meu compadre, se manteve firme. Quando as luzes se apagaram no meio do julgamento, o comandante da polícia militar, que havia destacado soldados para garantir a ordem, blindou o réu, jurados, promotor e juiz, inspecionou as dependências do fórum e providenciou o restabelecimento da luz elétrica. Passado o nervosismo, a sessão continuou até o fim, sem mais incidentes. O veredicto foi condenatório. O mais importante foi o efeito social. Diminuiu o temor que aquela quadrilha infundia na comunidade. Os pistoleiros e grileiros podiam ser vencidos dentro da lei, desde que houvesse disposição e vontade das autoridades. A quadrilha ficou desmoralizada. O juiz e o promotor não sofreram qualquer tipo de violência.

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