sexta-feira, 26 de junho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XI

Obtida a inscrição na Ordem dos Advogados como solicitador acadêmico, comecei a trabalhar no escritório do Ives, amigo e vizinho, especializado em causas trabalhistas, localizado no mesmo prédio da justiça do trabalho. Dos livros ali existentes impressionou-me o de Mozart Victor Russomano, por sua linguagem poética e autoridade na matéria. Eu acompanhava os clientes às audiências, formulava perguntas às testemunhas e fazia sustentação oral. Os juízes permitiam a atuação dos solicitadores nas juntas de conciliação e julgamento. Orientado por Ives, eu elaborava petições aos primeiro e segundo graus de jurisdição. Fiquei familiarizado com a jurisprudência do tribunal do trabalho de São Paulo. Ainda não havia tribunal do trabalho no Paraná. Em pouco tempo conheci os meandros do processo trabalhista.

Mudei-me para o escritório do Dr. Manoel Linhares de Lacerda, autor de um tratado sobre terras do Brasil, advogado conceituado no Paraná. No escritório, que ficava ao lado do prédio da justiça do trabalho, na Rua Marechal Deodoro, atuava um rábula de nome Wadi. Fizemos boa camaradagem. O Dr. Linhares não freqüentava o escritório; trabalhava em casa.

Antonio Carlos de Lacerda, procurador da fazenda, sobrinho do Dr. Linhares, começou a pontificar no escritório. Conversávamos enquanto tomávamos chimarrão por ele preparado. A família dele tinha raízes na Lapa, região produtora de erva mate. Chá e chimarrão integravam os costumes. Construímos duradoura amizade. A roda de chimarrão cresceu com a chegada de Walter, funcionário da assembléia legislativa e amigo de Antonio Carlos. Walter portava o vírus do xadrez e nos contaminou. O jogo virou febre no escritório. Em um final de tarde, Walter e eu estávamos tão absortos no jogo, que não notamos a chuva torrencial e a água que se infiltrava no escritório. Wadi entra esbaforido, todo molhado, a gritar zangado: “Vocês não estão vendo esse aguaceiro aqui dentro?” A água descia pela parede e encharcou o tapete. Assustados, guardamos depressa o tabuleiro e as peças, dobramos a barra das calças e mãos a obra: arrastar mesa e poltrona, guardar papéis e livros, cestas de lixo sobre a mesa, cobrir a máquina de escrever, colocar o tapete no corredor. A chuva lá fora não dava trégua.

Conquistei clientes próprios, porém dependia de advogado para assinar petições e atuar nas audiências e sessões dos tribunais. Em uma audiência na vara cível de Curitiba, o Dr. Linhares se prontificou a comparecer. Em cinco minutos liquidou a pendenga, após examinar o código de processo civil. A juíza elogiou as petições apresentadas nos autos do processo. O Dr. Linhares agradeceu e informou que eram da minha lavra. Ela, que até então ignorara a minha presença, se dirigiu a mim: “Vejo que o discípulo honrou o mestre”. Não senti firmeza e sinceridade naquele gélido olhar. A cortesia encobria o desapontamento. Encontrei o Dr. Linhares, pela última vez, no fórum cível de São Paulo, quando lá me encontrava estudando e trabalhando. Ele estava na defesa dos interesses de um cliente.

Da pauta da sessão da câmara do tribunal constava processo em que eu defendia uma jovem menor de 18 anos, cujo namorado permitia que ela se prostituísse. Pedi ao Walter que fizesse a sustentação oral. Eu ainda era solicitador acadêmico. Na justiça estadual comum eu estava legalmente impedido de praticar ato privativo de advogado. Tracei o roteiro. Enquanto aguardava o pregão, Walter caminhava de beca no átrio, cujas enormes janelas de vidro deixavam passar luz natural. Esforçava-se para memorizar os argumentos repetindo-os a viva voz, esquecido da minha presença e dos transeuntes. Quando o presidente da câmara adiou o julgamento ele estampou no rosto imenso alívio, o que me fez rir, mas não por muito tempo. O desembargador, ex-juiz de menores, aproximou-se e me encarando disse em tom enérgico: “Esse rapaz é proxeneta, corruptor de menores e merece prisão”. Referia-se ao namorado da minha cliente. Nada respondi. Chamei a moça e o rapaz ao escritório. Wadi ficou babando quando a viu. Além de bonita, um corpo escultural. Disse para os dois que a saída era o casamento e que chamassem o pai dela para consentir. Ele morava em outra cidade. O pai do rapaz era remediado agricultor em Toledo, onde os dois pretendiam morar. O pai da moça conversou comigo; ficou triste ao se inteirar da situação; consentiu no casamento. Providenciamos a habilitação. Cerimônia civil. Wadi e eu de testemunhas. O juiz diz as palavras da lei e todos assinam o livro. Com a certidão de casamento juntada aos autos, o processo judicial foi extinto e arquivado.

Dois colegas da faculdade vieram trabalhar no escritório: Carlos Maciel, serventuário da justiça e Sérgio Miranda, filho de advogado do norte do Paraná, companheiro de serestas, tocava violão, recebeu o apelido de Serginho Madrugada por suas freqüentes noitadas. Os dois mostravam interesse e se dedicavam às poucas causas deles e minhas, mantendo o pequeno fichário em dia. Participavam das entrevistas e acompanhavam os processos no foro cível, criminal e trabalhista. Desse modo, nós três adquiríamos experiência.

Após colar grau, no início de 1968 (ano que não terminou, segundo Zuenir Ventura), deixei o escritório. Fui a São Paulo cursar filosofia do direito. A minha escolha foi questionada. Na opinião de alguns colegas, eu devia cursar direito tributário, em grande voga na época. Parentes censuravam a minha decisão. Entendiam que eu devia permanecer no escritório, continuar o exercício profissional em Curitiba, constituir um patrimônio com os honorários e suavizar a pobreza da família.

Hospedei-me na casa da irmã do meu pai, tia Argentina, localizada na Zona Leste da cidade de São Paulo. Ela morava com o filho Eli. O outro filho, Elenir, muito ligado à igreja católica, ordenou-se frade franciscano. Minha tia, Eli, minha irmã Adília e eu comparecemos à cerimônia no mosteiro da Ordem de São Francisco de Assis, em Santa Catarina. Elenir recebeu o nome de Frei Sérgio. Meu avô paterno, capitão da força pública de São Paulo, orador nordestino, saiu-se com essa: “Agora tenho um neto advogado de Deus e outro neto advogado dos homens”. Faltou pouco para me qualificar como advogado do diabo.

O almoço domingueiro era servido com o vinho de São Roque, que a minha tia não deixava faltar. Depois, assistíamos na TV ao programa do Sílvio Santos. Durante a convenção da Ordem Rosacruz, em 1968, hospedaram-se na casa da tia Argentina minha amiga de fé Terezinha, mais duas amigas: Jacira, professora e pintora, e Míriam, funcionária pública. Em Curitiba, no meu retorno, Jacira e eu namoramos por breve tempo. Apesar dos batismos, crismas e casamentos de que participei como padrinho, eu estava afastado da igreja católica desde a adolescência e desidratado espiritualmente quando, em 1965, me filiei à Ordem Rosacruz. Os ensinamentos e práticas rosacruzes me fortaleceram interiormente. Passei por todos os graus e todos os planos durante 44 anos e ainda mantenho a filiação ativa. No Rio de Janeiro, participei da fundação do Capítulo R+C Leblon, posteriormente, Loja R+C Gávea. Em homenagem ao meu pai, filiei-me também à maçonaria que ele tanto prezava: Grande Oriente do Brasil, Loja de Pato Branco/PR. Estudei e me submeti aos rituais de iniciação dos três graus fundamentais: aprendiz, companheiro e mestre, os dois últimos na Loja de Castro/PR, região onde eu exercia a judicatura. Depois, adormeci maçonicamente.

O curso de especialização em filosofia e sociologia jurídicas era ministrado pelo professor Miguel Reale, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Freqüentei-o regularmente no ano letivo de 1968, porém não apresentei a dissertação final. Permaneci em São Paulo mais um ano, pois estava inscrito no quadro de advogados da seção paulista da Ordem dos Advogados. Mesmo sem matrícula, assisti a algumas aulas no ano letivo de 1969. As aulas eram expositivas. Reale não usava o quadro nem equipamento auxiliar. Em ocasiões diferentes, ele trouxe como convidados os professores Recaséns Siches (espanhol) e Gofredo Telles Jr. (paulista), grandes mestres do direito. As lições de filosofia e as pesquisas na biblioteca da faculdade de direito da USP foram de grande valia. Adquiri uma visão ampla do direito. Compreendi melhor o fenômeno jurídico, inclusive sob o ângulo sociológico. A visão filosófica e sistêmica contribuiu para o sucesso futuro. Adquiri confiança na interpretação dos textos legais e na solução dos problemas submetidos à minha apreciação.

Por indicação da minha prima Luzia Galvão, promotora de justiça, o advogado João Batista Magalhães me cedera mesa no seu escritório localizado na Rua Barão de Paranapiacaba, próximo à Praça da Sé. O Dr. Magalhães me passava alguns casos, mas a renda era pouca. Tentei melhorá-la vendendo livros. A cada coleção vendida martelava-se um sino no escritório da distribuidora. O objetivo era estimular os outros vendedores. Eu me sentia cobaia em experimento de Pavlov. Desisti. A minha praia era outra. Ao lado do escritório do Dr. Magalhães havia uma loja de artigos esportivos. Doralice, a proprietária, jovem, solteira, bonita, bem servida de atributos físicos, flertou comigo. Saímos e trocamos carinhos algumas vezes. Durante jogo de baralho em sua casa, comecei a assobiar baixinho. Dante, o irmão dela, reparou: “Que assobio triste!”. Saudade. Quando retornei a Curitiba, ela e Dante me visitaram. A minha mãe gostou deles. Eu os acompanhei nas visitas a alguns colégios que encomendavam uniformes. Ela casou em São Paulo com antigo pretendente.

Março/68: o pau comeu nas ruas do centro do Rio de Janeiro porque, ao atacar o Calabouço, restaurante e local de permanente assembléia dos estudantes, a polícia matou um jovem que lá se encontrava trabalhando. Outubro/68: batalha feroz na Rua Maria Antonia, em São Paulo. Estudantes do Mackenzie contra estudantes da USP. No mesmo mês, o congresso da União Nacional dos Estudantes – UNE, em Ibiúna/SP, foi atacado pelas forças do governo. Centenas de estudantes foram presos. Enquanto isso, eu ia ao cinema com Noemi, filha do pastor da igreja defronte à casa da minha tia. No teatro, assistia Navalha na Carne, de Plínio Marcos e Vida e Morte Severina, de João Cabral de Mello Neto. Certa noite, no vestíbulo do teatro, comungava com outras pessoas a frustração pelo cancelamento da peça que pretendíamos assistir, quando entra Tônia Carrero. Surpreendi-me. Ao invés de alta, graúda e esnobe, como eu a imaginava, era miúda, magnética, comunicativa e linda.

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