sábado, 22 de junho de 2024

ELO PERDIDO

No monoteísmo europeu e americano campeia a doutrina hebraica e cristã da criação divina do primeiro homem e da primeira mulher ascendentes da humanidade. No século XIX (1801-1900), naturalistas e antropólogos europeus desbancaram essa doutrina. 
[A versão bíblica não se mantém em pé sequer diante de uma simples análise lógica]. 
Lacunas em qualquer série de ideias e coisas são tratadas como elos perdidos até serem preenchidas e explicadas racionalmente. O vácuo deixado pela ciência é preenchido pela religião, magia e superstição. No processo biológico de ascendência e descendência no reino animal, as gerações foram sofrendo mutações paulatinamente. O gênero homo resultou desse processo. Havia lacuna vista como elo perdido na linha evolutiva entre o chipanzé e o homo. Baseados em pesquisas, os cientistas elaboraram a teoria da evolução biológica e ainda descobriram o elo perdido: o “Homem de Java” (Pithecantropus Erectus). Homem símio. Desse ancestral até o homo sapiens primitivo e deste para o homo sapiens moderno, a variação genética ocupou milhões de anos. 
A essência do gênero ancestral sobrevive como herança atávica nas espécies descendentes. As características do homo sapiens primitivo sobreviventes no homo sapiens moderno apontam para a existência de um tipo intermediário. Embora fatos contemporâneos sejam de análise provisória em virtude da insuficiente perspectiva histórica, afigura-se lícito especular sobre a presença desse tipo intermediário em nossa época, em nosso país, em nossa cidade: humanos portadores de sobreviventes características do tipo ancestral. Esses humanos de ambos os sexos, vestem terno, farda, capa, saia, blusa; calçam botas, sapatos, tênis, sandálias; andam de bicicleta, motocicleta, jet-ski, automóvel, navio, avião; usam perfumes, brincos, pulseiras, colares, relógios; constroem casas, edifícios, estádios, catedrais, pontes, estradas, aeroportos; fabricam pistola, fuzil, dinamite, bomba atômica; exercem funções sacerdotais, parlamentares, administrativas, judiciárias, empresariais, jornalísticas. Sob o verniz da civilização, o bárbaro Pithecantropus assedia, assalta, estupra, fere, mata.
Projeto de lei em trâmites pela Câmara dos Deputados, sobre interrupção da gravidez resultante de estupro, exemplifica esse atavismo. Produto do que há de pior na espécie humana, esse projeto causou indignação a grande parcela do povo brasileiro e reabriu a questão do aborto. Na  urdidura desse projeto veio à tona o elo perdido na passagem do homo sapiens primitivo ao civilizado: o Homem Fundamentalista, sobrevivência do “Homem de Java”. 
Pela via legislativa, facção religiosa no Congresso Nacional (católicos + protestantes = bancada da Bíblia) pretende impor os seus dogmas à pluriconfessional nação brasileira. A Constituição da República assegura a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, liberdade de crença e de consciência. Essa liberdade inclui: 
[1] Planejamento familiar. Compete exclusivamente: (i) ao casal, a decisão de ter ou de não ter filhos (ii) à gestante, a decisão de manter ou de não manter a gravidez. Enquanto vigorar a Constituição de 1988, a igreja e o estado não podem impedir o exercício desses direitos pelos brasileiros e pelos estrangeiros residentes no Brasil. 
[2] Livres pensadores e os ateus. Essas pessoas não podem ser (i) discriminadas por suas convicções filosóficas e políticas (ii) obrigadas a aguentar dogmas religiosos. 
A norma da igreja cristã (católica + protestante) contrária ao aborto obriga moralmente os cristãos, porém, não pode obrigar, nem moral e nem juridicamente, quem é de outra religião ou descrente. Transpor, 
sob forma de lei do estado, essa norma da ética religiosa para a ética civil, tipifica violência contra: (i) os direitos e garantias fundamentais (ii) a laicidade e o modelo democrático do estado brasileiro.
Democracia é forma de governo do povo pelo povo e para o povo. Na assembleia constituinte de 1987/1988, o povo brasileiro escolheu democracia como forma de governo para a presente e para as futuras gerações. Destarte, na vigência da Constituição, os órgãos legislativos devem legislar para o povo e não para si mesmos ou para indivíduos e facções. O legislador não pode legislar em benefício próprio e/ou da sua facção. As funções legislativa, executiva e judiciária devem ser exercidas por civis no interesse público e visando ao bem comum.
A facção evangélica do Congresso Nacional se utiliza de argumento “ad terrorem”, ao qualificar o aborto de “assassinato” e o feto de “criança”. Homicídio, feminicídio e infanticídio  é matar alguém. Esse alguém é o ser humano vivo. O feto não é “alguém” e nem “criança”, mas, tão somente um corpo em formação no interior do organismo feminino e que se tornará vivente só depois de sair para o exterior e respirar, ou seja, depois de receber o “sopro da vida”. SE não respirar, o corpo permanecerá sem vida. Impossível, pois, matar o que vida não tem. Segundo a Bíblia, Adão era um corpo sem vida, embora perfeito. Só depois de receber o “sopro da vida” em suas narinas é que ele se tornou corpo vivente. 
O aborto espontâneo (involuntário) e o aborto intencional (voluntário) são o fim antecipado do processo reprodutor. O feto é expulso do útero antes de completar o período de gestação. O inimigo do aborto usa palavras fortes à maneira do vegetariano fanático que, ao tentar nos recrutar para a sua dieta, emprega palavras fortes como “cadáver” apontando para o bife em nosso prato. Segundo a lei brasileira, criança não é o embrião e nem o feto e sim o filho desde o nascimento com vida até os 12 anos de idade. 
Os dispositivos do Código Penal de 1940 sobre o aborto não foram recepcionados pela Constituição de 1988. Portanto, o aborto está excluído do rol dos crimes contra a vida. 

Bíblia. Antigo Testamento. Gênesis 1: 27 + 2: 7. 
Burns, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Globo. Porto Alegre, 1955.
Constituição da República Federativa do Brasil. Artigos 1º, III + 3º, I, IV + 5º, caput, I, VIII + 226, §7º + 227.
Código Penal. Artigos 121, 124, 128. 
Código Civil. Artigos 1º, § 2º + 1.565, § 2º.
Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança). Artigo 2º.

Nenhum comentário: