quinta-feira, 30 de novembro de 2023

CRISE

O Senado Federal aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 8 de 2021, cuja ementa está assim redigida: Altera a Constituição Federal para dispor sobre os pedidos de vista, declaração de inconstitucionalidade e concessão de medidas cautelares nos tribunais
Essa PEC seguirá seus trâmites na Câmara dos Deputados e tem por fim alterar os artigos 93, 97, 102 e 125, da Constituição da República (CR). Da sua justificação emana o motivo: persistentes abusos praticados por juízes. Entre os abusos alí citados constam as invasões da competência privativa do Presidente da República de nomear os seus auxiliares (CR 84). Decisões monocráticas de juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), durante os governos Rousseff e Bolsonaro, violaram frontalmente a norma constitucional que estabelece a mencionada competência privativa. Os juízes imiscuíram-se em assunto que não era da alçada deles. 
A mudança preconizada na PEC tem caráter saneador: limpar o processo judicial (a) dos pedidos de vista utilizados pelos juízes para engavetar processos e (b) da aberração lógica e jurídica que significa qualquer decisão monocrática proferida em nome de tribunal judiciário. 
A paralização dos trâmites processuais mediante o expediente de pedir vista “a perder de vista” (ironia do ministro Marco Aurélio) constitui praxe indecorosa, antijurídica, politicamente incorreta, contrária aos princípios constitucionais (i) da celeridade e razoável duração e (ii) da moralidade e eficiência (CR 5º LXXVIII + 37). 
Sentença prolatada por juiz singular deve passar pelo crivo de um tribunal judiciário do segundo grau de jurisdição. Cuida-se de constitucional garantia dos jurisdicionados. Decisão monocrática é própria dos juízos de direito do primeiro grau de jurisdição (órgãos singulares, varas). Decisão colegiada é própria do tribunal judiciário de segundo grau de jurisdição (câmaras, turmas, plenário). O fundamental princípio da segurança jurídica exige a revisão das sentenças judiciais pelos diversos graus de jurisdição a fim de proporcionar certeza aos jurisdicionados sobre a maior probabilidade de justiça quando o caso sub judice é examinado por três ou mais juízes em pública sessão de julgamento sob a garantia constitucional do contraditório (CR 5º, LV). 
Tribunal judiciário é órgão colegiado cuja precípua finalidade é examinar e resolver controvérsias de forma colegiada. Decisão monocrática, cautelar ou de mérito, no seio de um tribunal judiciário de segundo, terceiro ou quarto grau de jurisdição, constitui aberração lógica, jurídica e política em país onde vigora o regime democrático. 
A PEC saiu capenga do Senado. Decisão monocrática no seio do tribunal deve ser extinta por incompatível (a) com a estrutura processual do ordenamento jurídico em vigor e (b) com as garantias fundamentais dos jurisdicionados. Cabe à Câmara dos Deputados corrigir a falha e excluir do direito processual brasileiro essa aberração. A desculpa de que a decisão monocrática é necessária para atender situações emergenciais não convence. Trata-se de desculpa para atender ao interesse do juiz, ao seu pendor despótico, à sua vaidade de sozinho se colocar acima do Legislativo e do Executivo. Poder supremo tende ao despotismo e à suprema injúria. “A corrupção de cada governo começa quase sempre pela corrupção dos princípios” (Montesquieu “in” Do Espírito das Leis). No recesso, o tribunal pode instituir câmara ou turma de plantão para os casos de real urgência. Os pedidos de urgência geralmente não têm real urgência. Provêm da esperteza postulatória. A prestação da tutela jurisdicional seria mais eficiente, imparcial e compatível com o decoro, se os juízes se dedicassem mais à função judicante e menos aos negócios paralelos, tais como: fazendas, escritórios, atividades docentes (faculdades, cursos), culturais (seminários, congressos, palestras, viagens) e políticas (holofotes, aconselhamentos). 
A PEC está em sintonia com o princípio da separação dos poderes (CR 60). A função do STF de guardião da Constituição está preservada. Do texto da PEC verifica-se que o controle da constitucionalidade das leis e da legalidade dos atos do Legislativo e do Executivo deve ser feito pelo STF de forma colegiada e nunca por um só dos seus juízes. Por sua relevância para a nação brasileira, a PEC situa-se acima de rivalidades, de mesquinhos sentimentos e interesses políticos partidários, ideológicos e/ou eleitoreiros. Como dizem os religiosos: “Deus escreve certo por linhas tortas”. A PEC talvez não seja do agrado das grandes bancas de advocacia que se beneficiam das decisões monocráticas, porém, neste caso, o interesse público sobrepõe-se ao interesse privado, assim como, a norma processual posta pelo legislador sobrepõe-se à norma regimental dos tribunais, conforme hierarquia das normas no ordenamento jurídico. Monocracia no tribunal judiciário conflita com a dimensão material do devido processo jurídico (CR 5º, LIV).
A reação de juízes do STF, inclusive a queixosa e reivindicante visita ao Presidente da República, mostra-se incompatível com a austeridade e a dignidade que se exige da magistratura. A reação gerou crise institucional, embora o presidente do Senado a negue ao dizer: “Não se pode criar uma crise que não existe”. Criar é dar origem a alguma coisa que ainda não existe. O que já existe não se cria, apenas se transforma, como diria Lavoisier. A rebeldia dos juízes balançou a harmonia que deve existir entre os poderes da república. A independência restou intocada (CR 2º). A defesa da democracia pelo STF não inocenta os seus juízes dos abusos cometidos; tampouco ofusca as medidas saneadoras estabelecidas na PEC. A experiência jurisprudencial brasileira deste século XXI mostra que o guardião tem sido o supremo e funesto violador da Constituição.
Essa PEC também devia patentear a subordinação dos juízes dos tribunais superiores ao Conselho Nacional de Justiça. Alterar-se-ía a redação do § 4º, do artigo 103-B, da Constituição: Compete ao Conselho o controle (…) do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, inclusive dos juízes do Supremo Tribunal Federal e demais tribunais superiores (…). Essa adição é necessária, pois, na república democrática, nenhuma autoridade do estado há de ficar fora de qualquer controle. O impeachment restringe-se à prática de crime de responsabilidade cujo processo compete ao Senado, órgão do Poder Legislativo. O controle disciplinar tem caráter administrativo (não jurisdicional) e compete ao Conselho Nacional de Jusiça, órgão do Poder Judiciário (CR 92). Desse controle administrativo, os ministros do STF fugiram através de um parcial e vergonhoso julgamento em causa própria sob a presidência do ministro Cézar Peluso (2010-2012).

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