quinta-feira, 16 de novembro de 2023

FELIZ ANIVERSÁRIO

No apartamento de Júlia estavam reunidas as suas amigas da mesma faixa etária, todas saudáveis e elegantes, além de  Inês, sua única filha e de Bruna e Patrícia, suas duas netas. Comemoravam o septuagésimo aniversário de Júlia no mesmo dia em que a república brasileira celebrava o centésimo trigésimo quarto ano de nascimento. A coincidência das datas veio à baila. Júlia respondeu às amigas: A república nasceu num ambiente pérfido, parida à sorrelfa no convescote de militares de alta patente, sem participação do povo. Derrubaram a monarquia constitucional e desterraram o monarca e família. Quanto a mim, nasci 64 anos depois desse golpe de estado. A minha vinda era esperada, fruto de um ato de amor da minha mãe e do meu pai. Eu fui recebida com carinho no seio de uma família honesta, culta e religiosa.     
O clima no amplo apartamento era de animada conversação. Algumas fumavam e se ajudavam ao acender os cigarros. Dora, uma das amigas, dedicada ao comércio de joias, exibia sofisticados isqueiro e piteira. Música instrumental em som baixo. As netas ansiosas para escapulir. Os namorados aguardavam na pracinha próxima ao prédio da avó das garotas situado num bairro de classe média da cidade. Empadão, salgadinhos, docinhos, sucos, refrigerantes, água mineral. Cadê o bolo? Inês havia esquecido. Na véspera, ela o encomendara à confeitaria do bairro. Desculpou-se e saiu às pressas a fim de buscá-lo. As filhas aproveitaram o ensejo e saíram à francesa. 
Júlia era viúva, dona do apartamento em que morava, tinha como fontes de renda os proventos da sua aposentadoria como funcionária pública e a pensão gerada por morte do seu marido, contribuinte autônomo da previdência social. No mercado de capitais, investiu o valor da apólice do seguro de vida do marido. A sua poupança permitia cobrir os gastos extras como estes do seu aniversário, os de eventuais viagens e as pequenas quantias que esporadicamente dava às netas. 
Ao retornar com o bolo, Inês notou a ausência das filhas. Conformou-se. Acostumara-se a tais escapadas. As amigas da aniversariante discutiam várias coisas, inclusive política e religião. A falta de homens na casa foi intencional. Júlia assim pensou: Além de não ajudar, eles ainda atrapalham. Ficou a matutar: O marido de Inês viajara a negócios. Ele começou a viajar “a negócios” depois de vinte anos de casado e de ter conquistado bom padrão de vida. Inês nada questiona; prefere manter a estabilidade da família, o seu papel na sociedade e costuma dizer que felicidade é coisa ilusória. Cita os versos do poeta: “O amor é eterno enquanto dura”. Falava mais para convencer a si própria do que aos outros. Dizia que durável é o amor sereno da maturidade. Felicidade? Momentâneo estado da alma que acontece de vez em quando. Convicta e realista, afirmava: Neste mundo, eterna é a luta pela vida, por subsistência, bem-estar, liberdade e justiça.  
Jornalista vivaz e experiente, Eugênia pergunta em tom provocador: Júlia, o que você acha dessa tragédia? Quando, por alguns segundos, Júlia mergulhara naqueles pensamentos, perdera parte da conversa. Saiu pela tangente: Queridas amigas, sempre houve tragédias. De qual delas vocês querem a minha opinião? 
Letícia, assistente social ativa e brincalhona, exclama: Acorda amiga! Nós estávamos falando do genocídio em Gaza. Júlia se desculpou pelo apagão. Claro que concordo com vocês (ela presumiu que havia unanimidade). A nossa geração está testemunhando atrocidades praticadas por gente genocida e selvagem. Essa gente criminosa e racista ainda tem o desplante de qualificar os palestinos de animais sub-humanos! Devemos organizar uma passeata de mulheres a partir do nosso grupo, protestando contra esse crime cometido por aquele estado terrorista. Devemos exigir do governo posicionamento claro e firme. Os homens que atualmente governam o nosso país não têm colhões roxos. No mundo violento em que vivemos, essa tibieza é anacrônica e inoportuna, ainda que disfarçada de diplomacia. Nós, mulheres, devemos tomar a iniciativa de sacudir esses homens para que tomem vergonha na cara.
Letícia, com olhar malicioso e sorriso maroto, simulando ignorância, pergunta: Colhões roxos? Sim, confirma Júlia. Ouvi isto do Collor, na televisão, não lembro se em campanha eleitoral ou se ele já era presidente. Na ocasião, eu entendi que ele se referia a homem destemido. Eugênia dá a sua pitada: O que ele queria era evitar a imagem de emasculado. Dora também dá a sua: Pois é. Vejam só como são as coisas. Machão porém corrupto, igual ao capetão que não foi reeleito presidente. 
Maria de Fátima, engenheira civil, universaliza a sua crítica: No mundo contemporâneo, a violência espalhou-se como pandemia. A democracia fragilizou-se. O fator emocional prepondera. O romantismo fascista seduz considerável parte da humanidade. O ódio suplanta o amor e verga a razão. O pensamento racional e crítico é visto como grave ameaça ao domínio exercido pelo sistema financeiro em níveis nacional e internacional. Além da violência do estado, há a violência da sociedade civil nos lares e bares, nas ruas, escolas, lojas e fábricas. Há violência contra as mulheres dentro e fora de casa. Elas apanham dos maridos e dos companheiros machistas. Isto quando não são assassinadas por esses covardes. Júlia atalha: Tem havido reação. Algumas mulheres insurgem-se e denunciam os seus agressores às autoridades públicas. Enfrentam, às vezes, a má vontade e as interpretações capciosas de policiais, delegados e juízes que beneficiam os machos, principalmente, os machos ricos e poderosos como, por exemplo, empresários, ministros, presidentes de casas legislativas, magistrados.  
Homens também são vítimas da violência, ponderou Iracema, procuradora estadual aposentada. Agora mesmo, alguns brasileiros estão sendo perseguidos em solo brasileiro e privados da sua liberdade a pedido de um governo estrangeiro nazista. As prisões ocorrem por simples suspeita, sem prova, sem que esses cidadãos estejam cometendo crime. Motivo dessa prisão cautelar: denúncia do primeiro-ministro e do serviço de inteligência de Israel, sem carta rogatória. Cidadãos brasileiros são acusados de terroristas contratados pelo Hezbollah, instituição libanesa inimiga de Israel. No campo da futurologia, em frontal colisão com os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, a polícia brasileira colocou-se a serviço de um paranoico governo estrangeiro.
Selma, advogada e professora universitária, lamenta: Realmente é surreal, sem trocadilho. Aduz: De acordo com a nossa Constituição, ninguém será privado da sua liberdade sem o devido processo legal; ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; ninguém será preso senão em flagrante delito; ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória. Fala-se de ordem de prisão expedida por autoridade judiciária brasileira. Se isto for verdade, a justiça brasileira, mais uma vez, terá se precipitado, violado a Constituição, ferido a dignidade humana de cidadãos brasileiros, sem a evidência de fatos que estivessem provados no devido processo jurídico. O nosso sistema de segurança submeteu-se, de modo servil e vergonhoso, ao capricho de um governo estrangeiro nazista. A vida e a liberdade são os bens mais preciosos das pessoas civilizadas, mas, o estado israelense age como se tais preciosidades fossem patrimônio exclusivo dos judeus. Trata os palestinos como seres inferiores sem direito a esses bens. 
Maria Augusta, médica que presta serviço hospitalar e ainda atende pacientes em seu consultório, manifesta a sua opinião: Os políticos são craques no jogo das palavras. Escondem a verdade com filigranas. O discurso dos ministros para justificar a submissão do governo brasileiro aos interesses e orientações do governo estrangeiro não me convenceu. O argumento cronológico de que a polícia brasileira já se debruçava sobre o caso antes dos acontecimentos em Gaza mostra-se falacioso, pois, a operação sanduíche foi iniciada agora, depois de tais acontecimentos. O que foi, Isabel?
Artista plástica de reconhecido valor, Isabel segurava o seu queixo com a mão direita, o cigarro entre os dedos da mão esquerda e rindo divertida, respondeu: Maria, meu anjo, o nome da operação policial é “trapiche” e não “sanduíche”. Você olhava para a mesa do lanche quando falou. Calma! Lá estaremos tão logo a Inês chamar. No diapasão em que tocamos o assunto (Isabel mantinha o tom divertido enquanto falava) “trapiche” significa o armazém próximo do “caos” onde as mentiras são depositadas antes de serem embarcadas com destino à massa ignara. 
A feminina audiência riu às gargalhadas da “definição” posta por Isabel. Cessado o ruído, ela continuou a jocosa dissertação: Eu sei e vocês sabem que todos que nascem e vivem em cidade são cidadãos. Lembro que a palavra “cidade” vem do grego “polis”. Portanto, como moramos e vivemos na “polis”, todas nós somos “políticas”. Em sentido estrito, apelidamos de “políticos” os homens e mulheres filiados a partidos que se dedicam à causa pública e exercem, ou aspiram a exercer, o poder do estado. Aqui no Brasil, as cidadãs e os cidadãos devem ter a idade mínima de 16 anos para escolher governantes; de 18 anos, para servir às forças armadas; de 21 anos, para adquirir a capacidade civil plena. No entanto, desde o nascimento, todos são titulares dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, sustentáculos da dignidade humana. 
Inês faz soar o pequeno gongo e, como arauto, conclama: Meninas, eu sei que vocês querem esticar a conversa, porém, antes, venham aqui para a sala, sentem-se em torno da mesa e compartilhem do lanche que preparei para vocês, auxiliada pela Rosa, nossa fiel escudeira. Júlia agradeceu. Às convivas, em tom de gracejo, ela diz: O bolo da velhinha está sem velinhas. Por gentileza, não cantem “parabéns a você”!
 

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