domingo, 9 de julho de 2023

DEMOCRACIA

Jornal paulista de circulação nacional publicou recentemente a seguinte definição: “democracia é o que é, sem relativismo”. Doravante, a Teoria do Estado simplificará as suas definições: monarquia é o que é; autocracia é o que é; aristocracia é o que é; anarquia é o que é. Cuida-se do princípio de identidade: tudo é o que é, expresso no princípio de contradição: nada pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, princípios expostos por Aristóteles e imortalizados na frase de Shakespeare: ser ou não ser, eis a questão
O presidente da república foi criticado por haver dito, durante entrevista concedida a emissora de rádio, que a democracia é relativa. Esta frase provocou celeuma na média corporativa e na média independente. A frase foi dita na conversa sobre aproximação do governo brasileiro com o governo venezuelano. O que não agrada ao governo dos Estados Unidos da América (EUA) desagrada também aos donos das emissoras de televisão e aos jornalistas amestrados. 
O presidente da república pisa no calo do governo estadunidense quando (i) negocia com a China (ii) restaura o Mercosul (iii) exclui o dólar dos contratos internacionais (iv) reúne-se com o Papa e com chefes de governo. A independência e o profícuo labor do brasileiro melindram o governo dos EUA. Os nazifascistas e os vira-latas do Brasil gostariam que o presidente prestasse continência à bandeira dos EUA a fim de patentear a vassalagem. Acontece que o presidente não padece da Síndrome de Estocolmo. Pelo apoio que deu à fraudulenta operação lava-jato e às ilícitas prisão e tentativa de morte política do então candidato petista à presidência da república (2014/2018), o governo dos EUA deve desculpas aos brasileiros não colonizados e indenização ao atual presidente brasileiro.
A frase usada pelo presidente naquela entrevista liga-se ao relativismo e não à Teoria da Relatividade. Na opinião de Bertrand Russell (1872-1970) matemático e filósofo inglês, a afirmativa “tudo é relativo” é absurda. Questiona: “Se tudo fosse relativo, seria relativo em relação a que?” Conciliador: "Poder-se-ia admitir que tudo no mundo físico fosse relativo a um observador, mas, essa não é a ideia a que chegou a Teoria da Relatividade”. Conclui: "O propósito dessa teoria é excluir o que é relativo e chegar a uma formulação das leis físicas que não dependa de maneira alguma das circunstâncias do observador”. 
A visão positivista dos fenômenos sociais alicerça-se no relativismo como critério de conhecimento. Dois ou mais observadores percebem o mesmo fato social de modo distinto. A mesma paisagem é vista de um jeito pelo daltônico e de outro pelo míope. A análise da política governamental feita por jornalista vira-lata difere da análise feita por jornalista ponderado. O observador da esquerda verá o governo da Venezuela pelo ângulo das práticas democráticas; o observador da direita verá pelo ângulo das práticas autocráticas; sem que nenhum deles tenha feito a experiência (i) de viver anonimamente por 12 meses naquele país (ii) de pesquisar honestamente (iii) de usar dados estatísticos confiáveis para chegar ao índice de aprovação pelo povo. No Brasil de 2019 a 2022, o observador da esquerda via um regime autocrático (por abandono dos direitos sociais) e o da direita, um regime democrático (por haver eleições). A realidade às vezes não se ajusta aos conceitos teóricos. Dogmas são invocados com fervor quando favorecem a quem os invoca; se o desfavorecem, silencia ou atropela.    
Importa saber se há consenso quanto ao conceito de democracia, cuja compreensão se ampliou no curso da história. Na Grécia antiga, berço da democracia, governo do povo pelo povo referia-se à dimensão política da cidade (polis). Povo era a pequena parcela da população masculina constituída de homens livres, iguais perante a lei, proprietários de bens de valor econômico. Atualmente, democracia abrange as dimensões política, econômica e social, adotada como forma de governo por vários estados contemporâneos. No sentido jurídico, o elemento povo inclui mulheres e homens titulares do direito ao sufrágio, com nuances religiosas e limites etários e culturais. No sentido sociológico, povo pode se referir à demografia, população de um país (povo brasileiro), aos membros de uma etnia (povo indígena), aos crentes de uma religião (povo católico). 
Os valores da democracia moderna que integram o fundamento axiológico das constituições dos estados são: vida, dignidade da pessoa, igualdade, liberdade, propriedade, segurança, pluralismo, vontade da maioria. Na esfera política, democracia significa forma de governo que tem o povo como protagonista. Soberano, o povo (i) organiza juridicamente a nação visando ao bem comum (ii) toma decisões diretas através da iniciativa popular, do plebiscito, do referendo (iii) escolhe e destitui os legisladores, os chefes de governo e os magistrados (iv) recusa obedecer a leis, ordens e governos antidemocráticos. Nos limites da moral e do direito, cidadãs e cidadãos fazem escolhas; exercem ofício, profissão; locomovem-se no território nacional; adquirem e alienam bens; associam-se; reúnem-se em locais públicos ou privados; manifestam o pensamento; expressam-se pela arte; dedicam-se à ciência, à filosofia, à religião; praticam esportes, cultivam o corpo e a mente. 
O modelo democrático estendeu-se à sociedade civil. Membros de uma comunidade, condôminos, sócios de um clube ou de uma empresa, participam das discussões sobre matéria de particular interesse e tomam decisões por maioria em assembleia geral. Países capitalistas e socialistas praticam a democracia que se diz (i) liberal quando a liberdade é mais acentuada (ii) social quando a igualdade é mais acentuada. Na república liberal democrática brasileira de 1891 a 1930 não tinham direito de votar: mulher, mendigo, analfabeto, religioso de ordem monástica. Na república social democrática brasileira de 1988 a 2023 não há essas restrições; conjugam-se valores do trabalho e da livre iniciativa no campo econômico, segundo o espírito de solidariedade e de justiça social; poder exercido nos limites do direito posto pelos representantes do povo; objetivo de realizar o bem de todos, de construir e desenvolver sociedade fraterna. Conforme testemunho da história, há governantes que se desviam das balizas democráticas e afrontam o regime constitucional em vigor. 

Lima, Antonio Sebastião de. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro. Freitas Bastos. 1998. 
Maritain, Jacques. Elementos de Filosofia. Lógica Menor. Rio de Janeiro. Agir. 1966.
Russell, Bertrand. ABC da Relatividade. Rio de Janeiro. Jorge Zahar. 2005.  

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