domingo, 30 de abril de 2023

MORTE CIVIL

Veículos de comunicação social tentam matar civilmente o treinador de futebol Alexi Stival, apelido Cuca, mediante campanha difamatória baseada num episódio de 1987, em Berna, capital da Suíça. A campanha exala odor fétido de um jornalismo abjeto sedento de sensacionalismo. Os dados utilizados foram obtidos ilegalmente. Utilizar, divulgar ou publicar dados obtidos ilegalmente configura crime. O direito à liberdade de informação não significa licença para o exercício criminoso dessa liberdade. A matéria divulgada está sob segredo de justiça, portanto, não podia ser utilizada, divulgada nem publicada sem autorização do juiz. Ao desobedecerem a decisão judicial e violarem sigilo cujo vigor legal é de 100 anos, os divulgadores assumem o risco de causar danos morais e materiais. 
A paciente do episódio primou pelo silêncio e pelo resguardo da sua intimidade, privacidade e dignidade. Recusou-se a prestar declarações fora do processo judicial e a conceder entrevistas. O seu direito foi violado por quem ilicitamente obteve, usou, divulgou e/ou publicou dados contidos no processo judicial sigiloso. A divulgação dos fatos depois de 36 anos violou o direito ao esquecimento. O treinador viu-se na contingência de se demitir do cargo que ocupava no Corinthians, clube paulista de futebol. Além da vida profissional do treinador, a divulgação também afeta a sua vida doméstica e as suas relações de parentesco e de amizade na sociedade brasileira. 
Segundo os dados revelados ilegalmente na imprensa e nas redes de computadores e de televisão, a garota, o seu irmão e o seu namorado visitaram 4 jogadores do Grêmio, clube gaúcho de futebol, no quarto do hotel da capital suíça em que eles estavam hospedados. O irmão e o namorado saíram do quarto. A garota ficou e concordou em manter relações sexuais com os jogadores. O porte da garota era de moça alta e saudável. Houve conjunção carnal com um dos jogadores, sexo oral com outro, bolina com outro e voyeurismo por outro jogador. Não está claro quem foi o agente de cada um desses atos, salvo o que só olhou. Os autos do processo continuam inacessíveis a terceiros em virtude do segredo de justiça. Impossível, pois, esclarecer de modo seguro: (i) a sequência dos atos libidinosos (ii) a autoria de cada ato (iii) o teor dos depoimentos, documentos e laudos periciais produzidos na instrução processual. Assim, atribuir à “justiça suíça” vazamento de dados sobre a prova, inclusive a pericial, significa espalhar notícia falsa. 
Segundo a lei brasileira, constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça, tipifica o crime de estupro. A lei suíça é semelhante. Apesar disto, o juiz suíço não condenou os réus por estupro. Isto significa que o juiz não reconheceu violência e grave ameaça naqueles atos libidinosos. Os réus foram condenados por ato sexual com mulher menor de 16 anos e por coerção presumida, nos termos do código penal suíço. O juiz aplicou pena privativa de liberdade inferior a 2 anos de prisão e pena pecuniária inferior a 10 mil dólares. Não há, pois, falar em impunidade. A sentença judicial evidencia a punição aplicada. Ao governo suíço cabia solicitar ao governo brasileiro a homologação da sentença e a expedição do mandado de prisão. Fugir é impulso natural de liberdade. Prender é dever legal da autoridade pública. 
Se o caso fosse de estupro, considerado o rigor da pena cominada a esse tipo de delito, os réus não teriam obtido liberdade mediante fiança. Portanto, quem qualificar os jogadores de estupradores ficará sujeito a ser processado civilmente por dano moral e criminalmente por calúnia.
A sentença penal condenatória transitada em julgado traz a certeza de que a garota era menor de 16 anos, mas não a certeza de que ela era criança e virgem. De acordo com os dados ilegalmente obtidos e expostos por jornais impressos, rede de computadores, emissoras de televisão, a garota era desenvolvida fisicamente e tinha idade superior a 12 anos. Assim, pois, ela era adolescente e não criança. Em países como Dinamarca, Suécia, Suíça, o tabu da virgindade foi superado; vigora ampla liberdade sexual. No caso em foco, a virgindade sequer foi cogitada. O pai da garota soube do ocorrido pelo relato – não dela – e sim do irmão. Isto indica que a vontade da paciente era a de manter o episódio em segredo. Talvez, a sua inibição em relatar se explique pelo fato de ela ter a consciência de haver concordado com os atos libidinosos.
Durante a transmissão do programa Seleção pelo Canal 39 Sportv nos dias 26 e 27 de abril/2023, os participantes vestiram a beca de juristas defensores da paciente e censores do agente. No intuito de justificar o trato da matéria só agora, depois de quatro décadas, o apresentador disse que, naquela época, os jogadores foram tratados como heróis pela imprensa enquanto a situação da paciente foi menosprezada. Na opinião dele, apoiada pelos colegas, cabia agora corrigir essa falha do jornalismo brasileiro. Tal opinião não se ajusta à vontade da paciente. Ela sempre se opôs à divulgação do ocorrido. Ela não outorgou mandato a esses jornalistas para que a defendessem e nem os autorizou a divulgar conteúdo da ação penal. Cabe indagar, para fins de legitimidade, se a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) cedeu a sua competência institucional a esses jornalistas para falarem e agirem em nome do jornalismo brasileiro. Mais realistas do que a rainha, os jornalistas comportaram-se como matilha de hienas salivando prontas para devorar o cordeiro. Eles e a emissora de TV são responsáveis pela ilegal, maliciosa e infame divulgação. 
A alegada intenção de fazer justiça à paciente não encontra eco no direito. Além de contrariar a vontade da paciente e violar segredo de justiça, a conduta dos jornalistas também colide com os humanitários objetivos da política do direito penal brasileiro. O longo tempo decorrido desde o evento originário confere legitimidade à tácita reabilitação do condenado e gera direito ao silêncio perpétuo. Tais preceitos jurídicos têm por escopo permitir ao condenado o pleno exercício dos seus direitos como cidadão honesto, trabalhador, cumpridor dos seus deveres para com a família, a sociedade e o estado. A impiedosa conduta dos jornalistas vai na direção oposta; mostra anseio por assassinar reputação alheia. Moral e juridicamente ilícita, essa conduta causou a morte civil do treinador. 
CR: 221, IV. CP: 7º, 9º, 138/140, 213. CPP: 323, 748, 783, 787. CCi: 186/187. Estatuto ABI: 1º/3º.

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