quinta-feira, 9 de março de 2023

DEMOCRACIA versus TECNOCRACIA

O recente duelo entre o Presidente da República e o Presidente do Banco Central tendo como pivô a taxa de juros, destoa do sistema constitucional brasileiro. 
Conselho Monetário Nacional, Banco Central, Banco do Brasil, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, são entidades da administração pública indireta e instrumentos da realização dos fins do estado no que concerne à política econômica. A economia passa pelo prisma político. O primado da decisão técnica dessas entidades sobre a decisão política do governo não se coaduna com a vigente Constituição. A república brasileira é democrática e não tecnocrática. Isto significa que a técnica deve estar a serviço do povo e atender ao interesse da nação. Como técnica é usada tanto para o bem como para o mal, com fatores do cálculo manipulados para obter resultado adrede pretendido, à autoridade política compete apreciar, de modo criterioso, a oportunidade e a conveniência de aplicar as soluções técnicas apresentadas pelos órgãos da administração pública direta e indireta. A democracia carrega em si o calor da alma humana. A tecnocracia carrega em si o gelo polar da racionalidade sem alma. 
Como autarquia, o Banco integra a administração pública indireta e deve prestar serviço em sintonia com os objetivos fundamentais da república. Prestá-lo para atender aos interesses privados da minoria rentista é grave desvio de função. Ao fixar a taxa de juros numa altura excessiva a favor dessa minoria, o Banco entra nesse desvio. Então, faz-se necessária intervenção da autoridade política para corrigir o abuso. A harmonia entre os supremos poderes da república é exigida pela Constituição. A desarmonia é inconstitucional e enseja medidas repressivas. Se assim é nas relações entre os poderes supremos, com maior razão o será nas relações deles com os subalternos órgãos da administração pública. No caso em tela, a desarmonia autoriza o afastamento do presidente do Banco. Autonomia significa capacidade jurídica da autarquia de governar a si própria por regras estabelecidas na lei que a criou e no seu regimento interno. Entretanto, isto não significa que o ente autônomo esteja solto no universo político, econômico, social e jurídico do estado. Do ponto de vista constitucional e administrativo, o Banco está vinculado ao governo stricto sensu (Poder Executivo). 
Toda entidade da administração pública direta e indireta está submetida à fiscalização e ao controle do governo lato sensu (Legislativo + Executivo + Judiciário). Como instituição pública administrativa federal, o Banco está sujeito (i) a essa fiscalização e a esse controle (ii) ao administrativo poder de polícia da União Federal. Se o presidente da república discordar da taxa de juros fixada pelo Banco, poderá exercer a sua competência regulamentadora e fixar taxa diferente com base em pareceres dos ministros da área econômica. Assinado pelo presidente e pelos ministros, o decreto fará referência às razões políticas da fixação da taxa, salientando o interesse nacional. Tal como aconteceu em anos anteriores, o presidente da república poderá submeter as leis que disciplinam o Banco a uma nova regulamentação. 
Norma infraconstitucional alguma tem o condão de impedir o presidente da república de exercer, de modo legitimo e no devido processo jurídico formal e material, as suas atribuições constitucionais. Do rol das competências constam: (i) exercer, com o auxílio dos ministros de estado, a direção superior da administração federal (ii) dispor sobre organização {= estrutura + funcionaento} da administração federal mediante decreto (iii) editar medidas provisórias com força de lei (iv) exercer outras atribuições previstas na Constituição. Portanto, como instituição administrativa federal, o Banco está sujeito à fiscalização e ao controle da presidência da república não só em relação à taxa de juros como, também, em relação a qualquer outra matéria, inclusive a que se refere à quantidade, à origem e ao destino do ouro comprado, depositado e vendido. Se for o caso, apura-se a responsabilidade penal, civil e administrativa do presidente do Banco. O escândalo do garimpo ilegal justifica a suspeita, ainda mais quando a corrupção no estado brasileiro é estrutural, histórica, notória e corriqueira, internacionalmente famosa.   
A lei complementar 179/2021 (LC) sobre autonomia do Banco, violou preceitos da Constituição como os da moralidade, impessoalidade e legalidade. A LC foi assinada por dois ministros que dela eram beneficiários. Isto equivale a legislar em causa própria. A LC elevou indevidamente o poder da autarquia (i) ao fundir a independência relativa derivada da autonomia com a independência absoluta derivada da soberania (ii) ao conferir representação internacional ao presidente do Banco sem controle do Ministério das Relações Exteriores e do Senado Federal (iii) ao desvincular o Banco de qualquer ministério, concedendo-lhe ampla e desmesurada liberdade (iv) ao tornar inapeláveis as decisões do Banco. A LC reduziu atribuições constitucionais do presidente da república, o que só poderia ser feito mediante nova assembléia constituinte. Como chefe de governo, compete ao presidente organizar o seu ministério e estabelecer o elo das entidades da administração pública com os respectivos ministérios. A LC, ao cassar essa atribuição, extrapolou os lindes constitucionais. A LC classifica o Banco como autarquia “especial”, inobstante toda autarquia ser autônoma e especial dentro do quadro geral da administração pública. A intenção da redundância foi a de salientar (i) a amplitude da liberdade outorgada ao Banco comparada à liberdade das demais autarquias (ii) a ausência de subordinação como se o Banco fosse um novo poder supremo ao lado do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.
Constituição da República. Artigos: 2º e 3º + 37 + 52 + 62 + 84 + 164. 
Lei 4.595/1964. Lei Complementar 179/2021.    


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