domingo, 24 de abril de 2022

CLEMÊNCIA

O decreto de indulto expedido pelo presidente da república nesta semana beneficiando um parlamentar alvoroçou a opinião pública e o mundo político, jurídico e acadêmico. 
Indulto é ato de clemência historicamente praticado por papas e chefes de governos monárquicos e republicanos, ditado pela bondade ou espírito de indulgência. Trata-se de virtude moderadora da autoridade religiosa e da autoridade civil cujo propósito é o de atenuar o rigor dos juízes eclesiásticos e dos juízes profanos na aplicação da lei canônica e da lei estatal.  
No Brasil, compete privativamente ao Presidente da República conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos constituídos em lei. O legislador constituinte não distinguiu “indulto”, “graça” e “perdão”. Segundo regra essencial da hermenêutica jurídica, onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir. Tais vocábulos, portanto, devem ser empregados como sinônimos. Diante do sistema constitucional brasileiro implantado em 1988, a distinção doutrinária entre indulto, graça e perdão, ficou anacrônica. Com a máxima vênia dos eminentes doutrinadores que pensam diferente, enquanto vigorar a Constituição de 1988, o indulto poderá ser concedido tanto a uma só pessoa como a um grupo, seja por livre iniciativa do chefe de governo, seja por provocação de quem está sofrendo a punição. 
O chefe de governo é o soberano juiz da ocasião e do merecimento do benefício; não está obrigado a aguardar as festas natalinas, nem subordinado a opinião alheia. Ante o princípio da separação dos poderes, não cabe ao Legislativo e ao Judiciário intervir nesse ato da competência privativa do presidente da república. Todavia, na presença de vícios formais e materiais contrários aos preceitos constitucionais, o decreto pode ser questionado no Supremo Tribunal Federal (STF), respeitado o devido processo legal. O poder de clemência atribuído ao chefe de governo não é absoluto. Há barreiras consistentes nos princípios essenciais da administração pública: moralidade, legalidade, impessoalidade, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, supremacia do interesse público
A intempestividade do decreto é um dos vícios evidentes. Enquanto a sentença penal condenatória não transitar em julgado (enquanto não esgotados todos os recursos cabíveis) a presunção de inocência favorece o sentenciado. O indulto destina-se a culpados e não a inocentes. No caso em tela, a sentença sequer tinha sido publicada. Sem condenação definitiva, o processo judicial está incompleto e a decisão ainda pode ser alterada pelo tribunal. A sentença não pode ser executada e nem poderá ensejar indulto enquanto a ação penal não chegar ao fim. O presidente funcionou, de fato, como instância revisora do STF, ferindo o princípio da separação dos poderes da república. Outro vício do decreto: premissas falsas. Ao contrário do que ali se afirma [1] a condenação do criminoso não causou comoção popular alguma; causou desgosto apenas aos evangélicos da denominação religiosa a que pertencem o presidente e o sentenciado [2] a decisão judicial não ofende o estado democrático de direito, mas, ao contrário, o prestigia.
O parlamentar está sendo processado não só por atentar contra o estado democrático de direito como também por ofensas ao STF. Neste tópico, a marcha dos juízes entra em rota de colisão com a ética judicial e estremece o princípio da imparcialidade essencial à judicatura. Aos juízes é vedado atuar em causa própria. Em situação semelhante, a suprema corte dos EUA, no século passado, teve de julgar a questão da irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados. A matéria lhes interessava diretamente. Ponderaram: (i) aos magistrados compete solucionar juridicamente os litígios (ii) no sistema constitucional estadunidense não há instância superior à suprema corte (iii) a necessidade obriga a conhecer e a julgar o caso. O argumento do tribunal norte-americano serve para o assunto aqui ventilado. Não há outra instância superior para processar e julgar o autor das ofensas aos juízes do STF. Reina soberana a lei da necessidade. A tutela jurisdicional tem que ser prestada pelo Poder Judiciário. O caso não pode ficar sem apreciação judicial. Se não houvesse privilégio de foro, o parlamentar seria processado e julgado na instância judicial ordinária. Nessa hipótese, o STF só atuaria na fase final do processo, se houvesse recurso. Em verdade, no tópico das ofensas, do ponto de vista ético, os juízes do STF ficaram numa situação crítica.
No que concerne ao atentado contra a democracia, a decisão do STF não merece reparo algum. A conduta nazifascista do parlamentar não pode ser tolerada enquanto vigorar o estado democrático de direito. O decreto de indulto judicialmente impugnado pode funcionar à semelhança de algumas ações cautelares, quando o STF não aguarda a ação principal e desde logo aprecia o mérito. Assim, ao decidir o caso concreto, o tribunal fornece diretrizes jurídicas para casos futuros, até que o Congresso Nacional resolva legislar sobre a matéria.      
Constituição da República Federativa do Brasil. Artigos: 2º + 5º, XXXV, LVII + 84, XII. 


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