domingo, 6 de fevereiro de 2022

NOTÍCIA-CRIME

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) formulou notícia-crime sobre condutas ilícitas do presidente da república e mais duas pessoas. A ilicitude consistiu (i) na violação do sigilo de que estavam revestidas peças de inquérito policial (ii) na divulgação dos conteúdos (iii) no deliberado propósito de colocar em dúvida a segurança das urnas eletrônicas e a lisura das eleições. A notícia-crime deu origem ao inquérito 4.878/DF presidido pela delegada da polícia federal do Distrito Federal. Apuradas a materialidade e a autoria do delito, o inquérito foi enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 02/02/2022, o ministro relator abriu vista ao ministério público (MP), assinando-lhe o prazo de 15 dias para se manifestar. 
Ligadas por hífen, as duas palavras, notícia e crime, formam unidade semântica expressa em quatro palavras: informação sobre fato delituoso. Ante a responsabilidade, prevista na Constituição, de todos os cidadãos pela segurança pública, cabe a pessoa natural, a pessoa jurídica ou a qualquer autoridade, o dever de prestar esse tipo de informação à delegacia de polícia (DP) ou ao MP. A informação, oral ou escrita, descreverá elementos básicos da materialidade e da autoria do delito e, se possível, indicará testemunhas, documentos, circunstâncias, tudo o que se relacionar com o fato criminoso. 
A notícia-crime há de ser verdadeira, tal como a do TSE acima citada. Eventualmente, algum noticiante, por livre vontade ou coagido, pode falsear a verdade. Exemplo: sob pressão do delegado ou do promotor, a pessoa natural diz a mentira que a autoridade quer ouvir, como aconteceu na curitibana operação lava-jato. Dar causa a instauração contra alguém (i) de inquérito policial, administrativo, civil, ou (ii) de processo judicial, imputando-lhe crime de que o sabe inocente, tipifica denunciação caluniosa. 
DP e MP são destinatários oficiais da notícia-crime. Na DP, verificada a procedência das informações prestadas pelo noticiante, o delegado instaura inquérito a fim de apurar a real existência do fato delituoso, ouvindo autores identificados, suspeitos, testemunhas, juntando documentos e laudos periciais. Encerrados os trabalhos, o delegado faz minucioso relatório do que foi apurado e remete o inquérito ao juízo de direito ou ao tribunal judiciário. 
Se a notícia-crime for apresentada diretamente ao MP, haverá três caminhos possíveis. 1. Arquivamento, se na opinião do MP. a notícia estiver deserdada de fundamento 2. Remessa à DP para instauração de inquérito, se a notícia necessitar de mais provas ou esclarecimentos 3. Oferecimento imediato da denúncia por suficiência das provas apresentadas pelo noticiante. 
Se a notícia-crime for apresentada diretamente à autoridade judiciária, duas alternativas se abrem. 1. Convencendo-se de que a notícia está deserdada de sólidos fundamentos, o juiz (ou o tribunal) determina o arquivamento 2. Vislumbrando viabilidade, o juiz (ou o tribunal) enviará a notícia à DP ou ao MP. A notícia-crime encaminhada pelo juiz (ou tribunal) ao MP poderá, conforme a livre apreciação deste, ser arquivada, gerar inquérito policial ou denúncia imediata.
Instaurado inquérito policial por iniciativa do delegado ou por requisição do MP, se o resultado das investigações apontar o presidente da república como autor do delito, o delegado enviará os autos ao STF em razão do privilégio de foro. A seguir, o STF dará vista ao MP para os fins de direito, como aconteceu no caso mencionado no início deste artigo. 
A autoridade jurídica e institucional do TSE, noticiante no caso em foco, torna remota a probabilidade de arquivamento do inquérito originado da notícia-crime. Provavelmente, em nome da sua autonomia, o MP deixará de oferecer denúncia de imediato e requisitará novas diligências ao delegado de polícia, ainda que desnecessárias. Caracterizado o expediente protelatório, qualquer cidadão poderá propor a ação penal com base na notícia-crime e no inquérito policial. Desde a promulgação da Constituição de 1988, o MP perdeu a exclusividade da propositura da ação penal pública. A democratização acrescentou mais um “dono” da ação penal: o cidadão brasileiro, fiscal do fiscal da lei.  
No mencionado inquérito 4.878/DF, intimado a prestar depoimento, o presidente da república se recusou a comparecer à DP. Estribou-se no direito ao silêncio deferido a todo cidadão acusado da prática de ilícito penal. Abusivamente, o presidente usou a advocacia pública para se defender quando o correto seria a advocacia privada. Observado o devido processo legal, todo cidadão tem o dever moral e jurídico de contribuir na busca da verdade. Atender aos chamados da justiça faz parte desse dever, sem prejuízo da liberdade da pessoa de calar, posto que ninguém está obrigado a se autoincriminar. 
No caso em tela, todavia, alinham-se contra-argumentos. Não se trata de simples depoimento e sim de interrogatório; tampouco de processo judicial e sim de inquérito policial. O interrogatório, meio para o estado obter confissão como prova, hoje é visto como instrumento de defesa do acusado. A confissão perdeu o seu status de rainha das provas. Obrigar o acusado a comparecer ao interrogatório é constrange-lo na sua liberdade de locomoção. Diante da expressa e inequívoca vontade do acusado de se manter em silêncio, o interrogatório será inútil. O inquérito policial e o processo judicial são refratários a inutilidades. A voluntária ausência do acusado produz os efeitos da revelia. Portanto, qualificar de desobediência ilegal a recusa do presidente da república neste caso concreto, afigura-se tarefa delicada, embaraçosa, inclusive por seu viés político. 
Constituição da República. Artigos 5º, LIX + 129, I + 131 + 133 + 144. 
Código Penal: 325 + 339. Código de Processo Penal: 4º a 23. 

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