domingo, 7 de novembro de 2021

SURUÍ

A voz de uma índia brasileira retumbou no alvorecer da 26ª Conferência da Cúpula para Mudança do Clima (COP26) em Glasgow, Escócia, 1º/11/2021. Txai Suruí, 24 anos de idade, estudante de direito, ocupou a tribuna para, em inglês, denunciar o desmatamento da Amazônia, salientar a importância da floresta para a vida dos indígenas, pedir a imediata execução das medidas protetivas. Ela foi ouvida com atenção e respeito por líderes mundiais. A essa moça de pequena estatura física e de grande estatura moral coube representar o Brasil. 
Descubro agora, depois de viver mais de 80 anos, que Suruí é o nome de uma nação indígena. Antes, para mim, suruí era só o nome da farinha de mandioca moída que, na infância, eu e meus irmãos misturávamos ao feijão no prato, cobríamos com arroz, juntávamos a carne e seu delicioso molho, sob o atento e afetuoso olhar da nossa mãe, olhos castanho-escuros que pareciam sorrir de satisfação. À nossa mesa jamais faltou comida, apesar da pobreza. A imagem daquela índia a discursar lembrou-me das índias avós dos meus avôs, uma do Norte e outra do Sul do Brasil. Essas raízes talvez expliquem a minha sensibilidade em relação à causa indígena.
Em 1980, o cacique xavante Mario Juruna pretendia comparecer ao fórum internacional das comunidades indígenas no Tribunal Bertrand Russell em Roterdã, Holanda. O governo brasileiro impediu a sua saída do país sob o argumento de que índio era incapaz para os atos da vida civilizada. De Porto Alegre/RS alguém interpôs mandado de segurança por telegrama. Soubemos disto, eu, minha esposa Jussara, nossos amigos Jorge Beja e esposa Clarinda, quando estávamos em Teresópolis/RJ, na casa de pessoa amiga. Manifestei a minha opinião: a medida judicial adequada é o habeas corpus e não o mandado de segurança. O cacique estava sendo cerceado na sua liberdade de locomoção. Regressamos ao Rio e no meu apartamento em Ipanema redigimos petição de habeas corpus. Beja assinou e a protocolou no Tribunal Federal de Recursos (atual Superior Tribunal de Justiça). O ministro Washington Bolívar de Brito foi o relator. 
Para evitar atraso no julgamento por eventual questionamento sobre o fato de um dos signatários ser juiz de direito, resolvi não assinar a petição, embora como cidadão pudesse fazê-lo. A impetração de habeas corpus dispensa procuração e atuação de advogado. O cacique nada pediu. Nós não o conhecíamos e com ele não tivemos contato algum. O nosso trabalho foi independente, voluntário e gratuito, produto da nossa consciência social e jurídica. O tribunal concedeu a ordem. O cacique viajou para a Holanda e ocupou a cadeira que permanecia vazia naquele sodalício internacional. Para alegria e surpresa nossa, o nome de Jorge Beja foi lançado no livro Guinness World Records. 
Antes de encerrar o ano letivo de 1980, um dos professores do mestrado em ciências jurídicas da PUC/RJ ficou curioso acerca dos fundamentos daquele habeas corpus. Disse-lhe que o atenderia se ele aceitasse a minha explanação por escrito como trabalho final da sua disciplina (Direito Constitucional). Ele aceitou a proposta. Então, elaborei o trabalho sob a égide da carta constitucional de 1969, apresentando as seguintes teses: [1] Capacidade plena do índio de expressar seus pensamentos e defender a sua cultura [2] Identidade nacional e cultural da comunidade indígena [3] Equiparação ao protetorado de direito internacional [4] Analogia com o direito de passagem do ocupante de prédio encravado [5] As exigências do estado brasileiro para o índio integrar a nação brasileira significam trata-lo como estrangeiro e reconhecer a autonomia da nação indígena. 
Em 1986, na iminência de se instaurar assembleia constituinte no país, o desembargador Fernando Whitaker da Cunha, catedrático de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que havia participado, em 1981, da banca examinadora diante da qual defendi a minha dissertação de mestrado (“Poder Constituinte e Constituição” que ele considerou tese de doutorado) sugeriu-me a elaboração de um artigo a ser publicado na Revista de Informação Legislativa do Senado Federal. Aceitei a sugestão. Baseado na petição e no trabalho acadêmico mencionados e com o título “A Proteção Jurídica das Comunidades Indígenas do Brasil”, o artigo foi publicado na citada revista (nº 93, jan-mar/1987). Ao invés da breve referência aos índios nas disposições finais das constituições anteriores, o legislador constituinte de 1987/1988 deu-lhes tratamento extenso em capítulo próprio sob o título da ordem social na Constituição da República. 
Na década de 1990, quando lecionava na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, eu afirmei, em uma das aulas, que os índios não eram brasileiros, eis que tinham as suas próprias nações antes de a sociedade e o estado brasileiros existirem. Alguns estagiários reagiram severamente como se estivessem diante de um burguês fascista. Tornei a explicar a extensão e a compreensão dos artigos 22, XIV + 231/232 da Constituição da República de 1988, cujo pressuposto lógico e sociológico é a independência das nações indígenas (organização social, costumes, línguas, crenças, tradições, direito natural originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam). Desde que seja da sua livre vontade e preencha os requisitos legais, o índio pode se incorporar à nação brasileira e ter dupla nacionalidade: (i) a originária da comunidade natural (ii) a adquirida da sociedade política organizada. A aguerrida jovem Txai Suruí é um exemplo disto. 

BIBLIOGRAFIA. [1] Fragoso, Heleno Cláudio. Direito Penal e Direitos Humanos. Rio. Forense. 1977. [2] Levi-Strauss, Claude. O Pensamento Selvagem. SP. Nacional. 1976. [3] Ribeiro, Darcy. Os Índios e a Civilização. Petrópolis. Vozes. 1979. [4] Rugiero, Roberto. Instituições de Direito Civil. Rio. Saraiva. 1971. [5] Declaração Universal dos Direitos do Homem. Porto Alegre. Sulina. 1968. [6] Constituições Brasileiras. Império e Republica. SP. Sugestões Literárias. 1978. [7] Lei 6.001. Estatuto do Índio. 1973. [8] HC 4.876 + 4.880. Tribunal Federal de Recursos. Voto do Relator. 1980.  
    


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