domingo, 21 de novembro de 2021

O BENFEITOR

Melchiades, parentes e amigos abreviavam seu nome para Mel, residia num bairro afastado da cidade, atmosfera rural, paisagem bucólica. Exercitava-se no quintal aproveitando o frescor da manhã quando vê passar pela rua de chão bruto, endereço da sua casa, jovem mulher. Tênis nos pés, bermuda e camiseta no corpo, ela caminhava e falava sozinha. Certamente, não estava no seu juízo perfeito e precisava de ajuda. Assim pensando e preocupado, Mel, descalço e vestindo apenas calção de ginástica, saiu pelo portão no intuito de interceptá-la, mas, ao se aproximar, prestativo e cauteloso, depois de observar ligeiramente as panturrilhas bem definidas, os glúteos fírmes e os seios empinados da moça, notou que ela segurava alguma coisa junto ao ouvido direito. Era um pequeno telefone sem fio. Mel sentiu alivio e frustração simultaneamente. Aliviado ficou, porque a moça falava com alguém e não sozinha. Portanto, não era maluca. Frustrado, por perder a oportunidade de praticar a sua escoteira boa ação do dia. 
Na opinião de Mel, juramento de escoteiro vale por toda a vida. Já entrando nos quarenta anos de idade,  ele ainda se via de uniforme bege, calça curta, cinto de fivela redonda e de encaixe, cantil nele pendurado, meia grossa e cinzenta até o joelho, mindinho e polegar juntos na palma da mão direita, três dedos unidos e esticados encostando na aba do chapéu semelhante ao da polícia montada canadense, em posição de continência, a saudar a bandeira nacional: “sempre alerta”.   
Na esperançosa tentativa de agarrar aquela oportunidade, prestes a escapar, e no intuito de exibir a bondade do seu coração e a sua humana solidariedade, Mel levantou dúvida que lhe pareceu conveniente e sensata: o aparelho podia estar desligado. Neste caso, a moça precisaria de ajuda. Ligado ou desligado, eis a questão. Como verificar? “Psiu, moça! Um momento aí! Posso examinar o seu telefone para ver se está funcionando”? Alternativa: “Posso usar o seu telefone? O meu está sem bateria e preciso ligar para a minha mãe antes que ela seja hospitalizada. Eu sou filho único e solteiro, ela necessita da minha atenção”. 
Desolado, cabeça baixa, braços caídos paralelos ao tórax, Mel conclui: no fim e provavelmente, eu é que irei parecer maluco, saindo desse jeito, sem banho, barba por fazer, magro, alto, pernalta, gesticulando e pedindo para telefonar. A moça poderia pensar, inclusive, que eu estava a lhe dar uma cantada. A minha boa intenção seria mal interpretada. Eu estava até disposto a convidá-la a entrar na minha casa, servir-lhe chá enquanto o médico e os enfermeiros não chegassem. Ela poderia descansar no sofá da sala ou na cama do quarto de hóspedes. Para maior conforto, ela poderia descalçar os tênis, tirar a bermuda e a camiseta e se deitar. Respeitosamente, eu a cobriria com lençol branco e limpo. 
A voz da experiência intrometeu-se no monólogo de Mel: “Nem sempre falar ao telefone desligado é maluquice. Pode haver algum propósito nisto”. 
Como assim?  Irritado, Mel interpela a voz intrometida, chata e desmancha prazeres. A resposta da voz foi imediata: 
“Simples, meu caro”. Pelo tom irônico, a voz parecia estar se divertindo às custas dele, menosprezando a sua inteligência e debochando da sua honesta iniciativa. Há pessoas que gostam de humilhar a si próprias, penitentes inveteradas. A voz intrometida parecia supor que estava se dirigindo a uma pessoa desse tipo. Prossegue: “A pessoa finge que está falando ao telefone para enganar, para se livrar de alguém ou de situação indesejável, ou para impressionar o público, passar a imagem de pessoa importante. Esse fingimento também é usado para fins artísticos em cenas de teatro, cinema, televisão. O ator, ou atriz, simula estar conversando ao telefone com outro protagonista”.   
A réplica de Mel foi na bucha:  Escute aqui, voz intrometida. Você está vendo aqui alguma vagoneta sobre trilhos com equipamento de filmagem e cinegrafista? Você está vendo aqui na minha rua alguém filmando essa moça? Não? Então, não se intrometa onde você não foi chamada! A boa ação escoteira é minha, desinteressada, até mesmo cristã, inspirada na doutrina de Jesus, no propósito de amar e ajudar o próximo. Só porque a moça tinha dourados cabelos que brilhavam sob a luz solar, claros e verdes olhos, nariz afilado, lábios carnudos, quase mais bonita do que Angelina Jolie, você acha que eu me intimidaria e deixaria de lhe prestar auxílio? Você está muito enganada!  
A voz da experiência deu um muxoxo de incredulidade e desdém. Mel não gostou nem um pouquinho. Aborrecido, desistiu do seu intento beneficente. Sozinho e solteiro, entrou em casa e preparou o café matinal. 


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