domingo, 12 de setembro de 2021

DESOBEDIÊNCIA

Obedecer ou desobedecer, eis a questão. [Shakespeare plagiado]. Merecem obediência: (i) leis justas (ii) legislação posta por consenso popular (iii) ordens legais e legítimas expedidas por autoridade competente (iv) orientações necessárias e úteis fundadas na sensatez e nos bons costumes. Merecem desobediência: (i) leis injustas (ii) legislação outorgada (iii) ordens ilegais (iv) ordens legais abusivas (v) conselhos inoportunos ou inconvenientes (vi) maus costumes (vii) tirania. 
A lei magna e a lei ordinária são legítimas quando ajustadas às aspirações do povo, aos valores acalentados pela nação, isolados ou em conjunto harmonioso, tais como: justiça, verdade, honestidade, solidariedade, bondade, beleza, santidade, utilidade, liberdade, igualdade, fraternidade. 
Atualmente, no Brasil, os presidentes da república, da câmara dos deputados e do senado federal, hastearam a bandeira da desobediência e repetem o mantra: ordens judiciais inconstitucionais não serão acatadas. Esticaram o cabo-de-guerra: Legislativo + Executivo x Judiciário. Cabe indagar: Quem será o juiz da inconstitucionalidade da decisão judicial? O parlamento, o chefe de estado, o conselho nacional da magistratura, o ministério público, a defensoria pública, a ordem dos advogados, as federações da indústria, do comércio e dos bancos, o sindicato, a imprensa? 
O dever de obediência à ordem jurídica (Constituição + leis + decisões judiciais) é essencial ao estado democrático de direito. Esse dever cabe aos legisladores e legislados, governantes e governados, juízes e jurisdicionados. A desobediência ao comando legal tanto pode ser legítima como ilegítima. O crime resulta da desobediência a mandamento legal. Todavia, o ato desobediente poderá ser praticado em legítima defesa, hipótese que não tipifica delito. Na desobediência civil, o povo se insurge de modo pacífico, ou violento, contra leis injustas, medidas abusivas do governo, conduta tirânica do governante. 
A insurgência ocorre também entre os poderes da república democrática. Legislador, chefe de governo, magistrado, abusam do poder do qual estão investidos e constrangem uns aos outros, rompendo a harmonia e a independência. Nesta hipótese, legitima é a desobediência às determinações dos abusadores. Em havendo recurso formal contra ordem ou decisão abusiva, a solução há de ser buscada mediante o devido processo jurídico, lato sensu, em sintonia com o estado democrático de direito. Em não havendo recurso formal, cabe o recurso material da desobediência. Destarte, se decisão irrecorrível da suprema corte invadir competência privativa do chefe de estado, como aconteceu no governo Rousseff e no governo Bolsonaro quanto à nomeação de auxiliares, o descumprimento da ordem judicial será legítimo ante o constitucional princípio da independência e harmonia dos poderes. A ordem judicial perde eficácia em virtude do seu vício intrínseco e da legítima defesa do destinatário. 
A fim de preservar o princípio da independência e harmonia nas relações entre os poderes da república, nenhuma decisão judiciária monocrática deve produzir efeito sem prévia ratificação pelo tribunal pleno. Quanto à sentença judicial transitada em julgado, tem a seu favor a presunção juris et de jure de constitucionalidade e legalidade.
O engavetamento de petições de impeachment pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal tipifica abuso de poder e descumprimento do dever jurídico de despachar dentro de prazo razoável. O direito de petição é garantido pela Constituição da República a todos os cidadãos. Engavetar petições formalmente corretas (i) torna ineficaz essa garantia constitucional (ii) subtrai da comissão parlamentar e do colegiado pleno o criterioso exame dessa questão relevantíssima para a nação (iii) faz dos chefes da Câmara e do Senado senhores absolutos da oportunidade e conveniência de instaurar, ou não, o processo. No vigor do regime democrático, decisão desse jaez deve ser colegiada e não monocrática. 
Despachar petição inicial é emitir juízo de admissibilidade positivo ou negativo. Isto não significa acolher ou rejeitar a pretensão nela deduzida e sim examinar apenas a sua higidez do ponto de vista formal. A intervenção da suprema corte no caso concreto, respeitado o devido processo jurídico, está em consonância com a Constituição da República. Trata-se de dar efetividade à citada garantia (direito de petição). Ao direito de petição do cidadão corresponde o dever jurídico – e não apenas moral – da autoridade pública (deputado, senador, ministro, juiz, delegado) de despachar, nos limites da sua competência, as petições que lhe são apresentadas. Qualquer cidadão é parte legitima para pedir por escrito o impeachment do presidente da república  e de ministros (Lei 1079/50, artigos 14 e 41). 
No que tange ao prazo para as presidências da Câmara e do Senado emitirem o juízo de admissibilidade da petição inicial, o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não se pronunciou. O processo de injunção está em andamento. As omissões da lei e dos regimentos das casas legislativas sobre esse prazo devem ser supridas pela aplicação subsidiária do código de processo penal (artigo 800, inciso I = 10 dias), conforme determina a lei dos crimes de responsabilidade (1079/50, artigos 38 e 73). No processo de injunção, o STF, ao exercer jurisdição construtiva, estabelece, em cada caso concreto, regras harmônicas com o sistema jurídico positivo enquanto o Poder Legislativo não o fizer em caráter geral e abstrato (CR 5º, LXXI). Compete ao Poder Judiciário colmatar as lacunas da legislação. 

Garcia, Eusébio Fernández – La Obediencia al Derecho. Madri. Editorial Civitas. 1987.
Thoreau, Henry David – A Desobediência Civil. São Paulo. Martin Claret. 2002.     


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