sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

VACINA II

Desde os seus primórdios, a humanidade luta contra doenças. Curandeiros, xamãs, feiticeiros, sacerdotes, buscavam a cura por meio de danças, cantos, sacrifícios, fórmulas mágicas, misturas de substâncias, beberagens. Invocavam poderes sobrenaturais, rezavam, usavam fogo, manipulavam plantas. A tradicional e pré-científica medicina asiática amarela (chinesa unificada) existe há milhares de anos. No Sri Lanka e na Índia, utiliza-se a medicina ayurvédica baseada no uso das plantas (propriedades medicinais). O metódico estudo da estrutura e do funcionamento do corpo humano, a prática do diagnóstico, a cirurgia, o tratamento com drogas e a prevenção deitam raízes na antiga civilização egípcia (Imhotep). Posteriormente, essa medicina científica foi desenvolvida na Grécia Clássica (Hipócrates). Os terapeutas pensaram na cura e também na prevenção. Cuidados foram prescritos para evitar doenças e fomentar saúde: saneamento, água potável, redução da poluição, nutrição, imunização, planejamento, leis de prevenção contra acidentes. Taxar com rigor bebidas alcoólicas e fumo no propósito de reduzir o consumo a bem da saúde pública teve pouco efeito. Mais producentes têm sido as campanhas educativas para estimular bons hábitos, sexo seguro, moderação. 

Na jornada terrena da raça, os humanos sonharam encontrar uma fórmula que os protegesse de todas as doenças. Isto lhes permitiria vida saudável até a morte. Como a realidade teimava em contrariar o desejo e o sonho, eles transferiram a bem-aventurança ao mundo espiritual e consideraram a morte mera passagem do mundo material para aquele outro mundo. Isto avivou a imaginação e pavimentou a crença na transmigração das almas e na reencarnação. Segundo essa doutrina, vivendo e adquirindo conhecimento no mundo do espírito (luz), a alma da pessoa regressa ao mundo da matéria para cumprir missões (vida). Enquanto aguarda a reencarnação, a personalidade anímica, baixando em sessões espíritas, faz cirurgias e dita receitas para curar ou prevenir doenças sem nada cobrar (amor). 

Sem a fórmula da imunização total, os humanos encontraram a fórmula da imunização parcial. Na China do século X (901-1000) foi inventada a técnica da insuflação nasal para proteger da varíola. Consistia em soprar pelas narinas do paciente o pó obtido da mesma doença sofrida por outra pessoa. Combatia-se o veneno que atuava no organismo com o veneno similar manipulado, homeopatia cujo princípio ativo o médico alemão Samuel Hahnemann introduziu no Ocidente no século XVIII (1701-1800), mesmo século em que o médico inglês Edward Jenner descobriu nova fórmula para, com êxito, combater e erradicar a varíola. No século seguinte (1801-1900) o cientista francês Louis Pasteur expandiu a técnica imunizadora para outras doenças (cólera, antraz, raiva). Os elementos básicos da fórmula eram micro-organismos. A vacinação tornou-se procedimento de ordem pública, necessário e obrigatório. Foram produzidas vacinas contra catapora, caxumba, febre tifoide, gripe, poliomielite, rubéola, sarampo, tétano. As pesquisas prosseguem para cura e prevenção de outras doenças (câncer, aids) inclusive para erradicação da pandemia provocada pelo coronavírus

A imunização consiste num conjunto de procedimentos para aumentar a resistência do organismo e assim proteger os pacientes contra doenças infecciosas. A vacina, a imunoglobulina e o soro anticorpos são utilizados nessa terapia. A aplicação deve atender às contraindicações. A vacina pode gerar reações adversas locais (dor, edema) sistêmicas (febre, mal-estar, cefaleia) ou alérgicas (grave, morte). O antígeno resulta de um processo artificial que inclui o cultivo do vírus e a manipulação de adjuvantes, estabilizantes e conservantes. 

À aplicação da vacina também se erguem barreiras culturais. As crenças religiosas e místicas que consideram sagrado o corpo humano como templo da alma, vedam medicamentes aos fiéis e adeptos (proíbem também, entre outras coisas, bebidas alcoólicas, certos alimentos, transfusão de sangue, saia curta, rosto descoberto, homossexualismo). Governantes com intenções eleitoreiras embaraçam a imunização (como acontece atualmente no Brasil). A bilateralidade atributiva característica da norma jurídica também pode dificultar a imunização. Ao direito do cidadão corresponde o dever da sociedade e do estado de respeitá-lo. Ao direito do estado de mandar (autoridade) corresponde o dever do cidadão e da sociedade de obedecer. Ao dever do estado de vacinar em massa corresponde o direito do cidadão de ser vacinado. Como titular desse direito subjetivo, o cidadão pode se recusar a exercê-lo em concreto sem perde-lo em abstrato (liberdade). Se tal recusa ferir direito fundamental de outro titular, portanto, do mesmo nível hierárquico no sistema jurídico, cabe à autoridade pública competente, no caso concreto, decidir qual deles deve prevalecer. 

A vida humana é essencial à existência da sociedade e do estado. Por isto mesmo e pela possibilidade de erro judiciário, a pena de morte não é adotada em alguns estados. Ante esse valor supremo, o crime contra a vida é o primeiro a ser tratado no Código Penal Brasileiro e o de maior impacto na sociedade (homicídio). No confronto entre, de um lado, o direito à vida e seu correlato direito à saúde e, de outro lado, o direito de liberdade, ocorrido no caso da pandemia provocada pelo coronavírus, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na sessão dos dias 16-17/12/2020, pela preponderância do direito à vida e à saúde. Tendo em vista a obrigatoriedade da vacinação determinada em lei, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo STF, o cidadão que exercer o seu direito de liberdade em sentido contrário ficará sujeito às sanções legais, destas excluídas a condução coercitiva e a violência física, vedado o emprego de força. Pais e responsáveis não podem impedir a vacinação das crianças e dos adolescentes. Em atenção ao federalismo cooperativo e à competência comum da união federal, dos estados federados e dos municípios nessa matéria, os 3 entes federativos poderão encetar a imunização. Quem pode os fins, pode os meios. 


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