quinta-feira, 23 de maio de 2019

DEUS E O PRESIDENTE

Depois de 6 mil anos de civilização e de 200 anos de acelerado avanço científico e tecnológico, ainda há quem faça declarações extravagantes como a do pastor evangélico congolês. Diz, ele, que Jair foi “escolhido por deus” para governar o Brasil, tal como Ciro foi “escolhido por deus” para governar a Pérsia, vencer as guerras, formar um império e libertar o povo judeu (século V a.C.). Cabe indagar: 1) O pastor estribou-se em norma diplomática? 2) Os governantes dos países africanos são escolhidos por deuses negros, brancos ou mulatos? 3) O negro pastor evangélico africano ignora a história persa ou mentiu deliberadamente por solidariedade ao branco evangélico que ocupa a presidência do Brasil? 4) De que deus o pastor está falando: do deus judeu (Javé), do deus cristão (Pai Celestial), do deus muçulmano (Alá) ou de algum deus do Congo? Todos são o mesmo deus? Evidente que não. Cada qual tem suas próprias características e jurisdições. Javé e Alá são deuses nacionais, egocêntricos, cruéis, incentivam a guerra e o genocídio. Pai Celestial é universal, benevolente, deus da paz, do amor e da fraternidade. Outros povos acreditavam em deuses monistas, ou seja, o mesmo deus é bom e mau a um só tempo.
Impressiona a vocação dos pastores pentecostais para a falsidade e o estelionato. Maior do que o tamanho da ignorância desses pastores, só mesmo o tamanho da sua esperteza em tirar dinheiro dos crentes e enriquecer com os negócios que esse dinheiro permite realizar. 
Desde a Idade Antiga até a Idade Moderna, houve faraós, imperadores, reis, chefes de estado, que se consideravam deuses, filhos de deuses, ou escolhidos por algum deus para governar os súditos de modo soberano e absoluto, com poder incontrastável. A comunidade britânica (Inglaterra + Escócia + Irlanda) também teve o seu ditador, homem rústico, protestante fanático, leitor da Bíblia, que se considerava “escolhido por deus”, um novo Moisés, com a missão de livrar o povo da monarquia e instaurar a república puritana com base no evangelho (Oliver Cromwell, 1653-1659). A forte crença dos povos no sobrenatural, alimentada pelos insaciáveis sacerdotes, pastores e missionários, propiciava esse poder aos governantes. A crença no sobrenatural continua forte em nossos dias e estimula o mercado da fé religiosa, para gáudio da classe sacerdotal e dos exploradores das fraquezas humanas.      
O povo persa e seus governantes eram dualistas, seguiam a doutrina de Zaratustra (Zoroastro) contrária ao politeísmo e ao monoteísmo. Acreditavam em duas divindades que disputavam entre si o governo do universo: (i) Ahura-Mazda, deus do bem, da luz, da verdade, da retidão (ii) Ahriman, deus do mal, das trevas, da falsidade, da perversidade. O zoroastrismo foi a primeira religião revelada da cultura ocidental (Avesta) [o hinduísmo o foi da cultura oriental (Vedas)]. Os adeptos recebiam parcela da sabedoria divina, conhecimento não alcançado por via do intelecto. O caráter ético dessa religião era novidade. Admitia o livre arbítrio, estipulava deveres tais como: dedicar-se ao trabalho, respeitar os contratos, obedecer aos governantes, procriar, cultivar a terra (“quem semeia o grão, semeia a santidade”), fidelidade, reciprocidade no amor e na ajuda, hospitalidade, amizade aos pobres (“aquele que der alimento a um crente irá para o paraíso”). Considerava pecados graves: aborto, adultério, calúnia, cobiça, dissipação, gula, indolência, luxúria e orgulho. Cobrar juros de alguém da mesma religião era o pior dos pecados. O acúmulo de riqueza era reprovado. Regra de ouro: “só é bom quem não faz a outro o que não for bom para si mesmo”.
Essa doutrina foi aceita pelos povos da Ásia morena e influiu nas religiões posteriores (judaísmo, cristianismo, islamismo) copiadoras, inclusive, das crenças escatológicas (juízo final, ressurreição dos mortos, inferno para os condenados). Anunciava a vinda de um messias que precederia o deus Ahura-Mazda. Calculava a duração do mundo em 12 mil anos. Repudiava o ascetismo (“a temperança é melhor do que a abstinência”). A sua escritura sagrada era o Avesta, livro baixado do céu, mais antigo do que a Bíblia, revelado ao fundador da religião. Na época de Ciro, rei da Pérsia, a Bíblia ainda não existia. Os cinco primeiros livros estavam sendo escritos por Esdras e seu grupo durante os anos de exílio na Babilônia. Eles serviram-se das lendas e da tradição oral para compor tais livros (rolos de papiro). Quando terminou de escrever a lei judia (Pentateuco, Torá) Esdras – sacerdote doutor eruditíssimo na lei de deus do céu [assim consta da transcrição, feita pelo escriba judeu, da carta de Artaxerxes, rei da Pérsia, sucessor de Ciro] – foi autorizado a fiscalizar e controlar a Judeia, segundo a “lei do teu deus que está na tua mão”. Em Jerusalém, Esdras reuniu o povo e procedeu à leitura da lei que ele escrevera “sob a inspiração do deus de Israel”. Originalmente, os judeus não eram monoteístas. Misturavam-se e se adaptavam aos costumes, deuses e religião dos povos dominadores (egípcios, caldeus, persas). Esdras enfiou-lhes o deus Javé goela abaixo quando retornaram a Jerusalém para reconstruí-la. Apesar disto, eles prestaram culto a outros deuses sob o domínio macedônio e romano, inclusive ao deus cristão (Pai Celestial) ensejo em que foram identificados como “cristãos novos”.       
Ciro permitiu a voluntária saída dos judeus da Babilônia para a Judeia (539 a.C.). Poucos saíram. Tal como aconteceu anteriormente na saída do Egito, há centenas de anos (“êxodo”), muitos preferiram ficar onde estavam. Os que ficaram trabalhavam no palácio real ou se dedicavam ao comércio, à arte e outras atividades na Babilônia e em cidades da Mesopotâmia. Eles tinham sua vida social e econômica resolvida. Os persas, sem abrir mão da cultura que lhes era própria, respeitavam os costumes e crenças dos povos conquistados. O edito de Ciro foi transcrito por escriba judeu no Livro de Esdras do Antigo Testamento no tendencioso estilo hebraico. Menciona o “deus do céu” que teria dado ao rei persa os reinos da terra, o que exigia compensação: construir um templo “na terra de Judá” para o “deus de Israel que habita Jerusalém”. A malícia na transcrição está em sugerir que o rei persa curvou-se ao deus judeu. Ciro não diz – e rei persa algum diria – estar submisso a um deus estranho à sua religião. O rei e o povo persa consideravam a sua religião superior, inclusive à religião daquele povo mequetrefe que nem escritura sagrada tinha. Historicamente, não há notícia de que Ciro devia o seu reinado ao deus do pastor africano. Governantes e governados persas acreditavam estar protegidos por Ahura-Mazda, deus da luz. Rei de pequena tribo no sul da Pérsia (559 a.C.) Ciro, sem luta e por parentesco, tornou-se rei dos persas e dos medos. Mediante guerra, tornou-se rei da Lídia, da Babilônia, de Nínive, Damasco e Jerusalém. Enfim, conquistou um império cuja extensão, sob Dario I, só foi superada pelos impérios macedônio e romano. 

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