sábado, 11 de maio de 2019

VICE

O vice-presidente, Antonio H. M. Mourão, mostra desapego ao cargo ao dizer que pegará suas coisas e voltará para casa se a sua presença estiver incomodando. Sem dúvida, a renúncia integra o capital jurídico do vice. O motivo pode ser insatisfação com a política governamental, estado de saúde, problema familial, autoestima fragilizada, e assim por diante. O que não parece razoável, é o vice renunciar por sua presença incomodar o presidente e filhos, o guru do presidente e outros. Parece que o vice não entendeu bem o seu papel constitucional na república brasileira, quiçá pela forte presença em seu espírito dos princípios da hierarquia e da disciplina, alicerces da organização das forças armadas. O cargo de vice é civil e não impede que o seu ocupante: (i) expresse opinião livremente, segundo o seu prudente arbítrio, ainda que discordante da opinião do presidente e dos seus auxiliares (ii) exerça a sua liberdade nos limites do decoro do cargo (iii) administre, de modo equilibrado, as pressões que sofrem as autoridades públicas quando vigora o estado de direito democrático.
O prefixo vice denota posição: [i] de substituto num cargo, sem vínculo de subordinação (vice-prefeito, vice-governador, vice-presidente) [ii] de subordinação hierárquica (vice-rei, vice-almirante, vice-reitor, vice-diretor) [iii) de menor classificação (vice-campeão) [iv] de reciprocidade (vice-versa). A experiência histórica revela a tendência do vice de conspirar para tirar do cargo o presidente, vivo ou morto. No Brasil, por exemplo, o vice-presidente Michel Temer tramou o impedimento da presidente Rousseff e assumiu o governo. A encenada choradeira de Temer de ser figura decorativa no governo Rousseff era o introito do golpe de estado. Professor de direito constitucional, Temer sabia que o papel do vice-presidente é decorativo enquanto o presidente estiver em exercício. Daí, a Constituição de 1988 referir-se exclusivamente às atribuições e à responsabilidade do presidente.
O primeiro presidente do Brasil (Deodoro) renunciou ao cargo; o vice (Floriano) assumiu a presidência. Depois, outros vices também assumiram: Nilo Peçanha, em virtude da morte de Afonso Pena; Café Filho, por causa do suicídio de Getúlio Vargas; João Goulart, ante a renúncia de Jânio Quadros; José Sarney, por morte de Tancredo Neves; Itamar Franco, ante a renúncia de Fernando Collor; Michel Temer, pelo impedimento de Dilma Rousseff. Como se vê, apesar de decorativo, o cargo de vice é importante. Apenas no período autocrático, com a doença e morte do presidente Costa e Silva, o vice (Pedro Aleixo) foi impedido de assumir a presidência.   
Para evitar acefalia do governo no caso de morte, ausência temporária ou impedimento definitivo do presidente, o legislador constituinte brasileiro, seguindo o modelo estadunidense: (i) criou o cargo de vice-presidente com a exclusiva competência de substituir ou suceder o presidente (ii) autorizou o presidente a convocar o vice para missões especiais (iii) incumbiu o legislador ordinário de criar, mediante lei complementar, outras atribuições ao vice. Isto pode ensejar miragem de subordinação do vice ao titular do cargo. Entretanto, cabe ao vice, com base na sua independência funcional, aceitar ou recusar a missão e, na hipótese de aceitar, discutir as instruções. A lei complementar referida pelo legislador constituinte não pode, sob pena de inconstitucionalidade, criar atribuições que retirem a independência e autoridade do vice-presidente da república.
Sob a vigência da Constituição brasileira de 1945, a eleição do vice-presidente era separada da eleição do presidente, o que acentuava a independência funcional dessas duas autoridades políticas entre si. Isto não impedia que o vice aceitasse tarefas solicitadas pelo titular, como acontece nos EUA. O exemplo mais conhecido foi dado no governo Quadros. No exercício da vice-presidência, Goulart cumpria missão na China quando Jânio renunciou (1961). Os militares tentaram impedir o vice de cumprir a sua missão constitucional, qual seja, a de suceder o presidente. O impasse foi resolvido pela introdução do parlamentarismo como sistema de governo. Goulart ficou na chefia do estado e um primeiro-ministro ficou na chefia do governo.   
O jurista e político Afonso Arinos, em judicioso parecer aceito pelo Congresso Nacional, por ocasião da morte do presidente Tancredo Neves (1985), deixou claro que entre presidente e vice não há hierarquia, ambos são órgãos da república no mesmo nível, cada qual nos limites da respectiva competência. O presidente da república é o comandante supremo das forças armadas, mas não é comandante do vice-presidente. O presidente da república é o chefe supremo da administração pública federal, mas não é chefe do vice-presidente da república. O presidente da república pode nomear e demitir ministros, mas não pode nomear e demitir o vice-presidente da república. 
Nos termos da vigente Constituição, a eleição do presidente importa a do vice com ele registrado. Portanto, a vitória do presidente também é vitória do vice. Ambos são eleitos pelo povo. Logo, o vice tem o dever de cumprir o mandato que lhe foi outorgado e de honrar a sua missão constitucional. Por isto mesmo, o vice presta, perante o Congresso Nacional, o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil. Nas últimas eleições (2018) a patente de general do vice foi decisiva, por atrair os votos daquela numerosa parcela de brasileiros desencantada com os políticos civis e que ansiava pelo retorno dos militares (57 milhões de eleitores). Destarte, ao menosprezar os militares, o atual presidente cospe no prato que comeu.
Certamente, para muitos eleitores da direita, Bolsonaro não tem o perfil do militar que eles esperavam na presidência, ou seja, o perfil de oficial superior lúcido, culto e equilibrado. Possivelmente, por lhe faltar esse perfil, Bolsonaro se compensa com os ataques raivosos aos militares. A sua postura deixa em plano inferior o papel das forças armadas de guardiãs da república no âmbito internacional (defesa da pátria) e no âmbito nacional (garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem). Além disto, as forças armadas: [1] atuam, em bloco, como classe social, na defesa dos valores e interesses do estamento militar, muito embora, no interior da caserna, haja divisões (linha dura versus linha moderada; liberais versus igualitários; nacionalistas versus entreguistas) [2] protegem a economia capitalista em detrimento da economia socialista [3] pressionam os poderes constitucionais, sob ameaça repressiva, para que decidam de certa forma e sigam determinadas condutas [4] ora garantem o regime democrático, ora implantam o regime autocrático [5] defendem os interesses do governo e das empresas dos EUA em prejuízo do interesse nacional [6] prestam ajuda: (i) à ONU, nas missões de paz {Suez, R. Dominicana, Haiti} (ii) aos países aliados, no conflito mundial {1939-1945}.   

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