domingo, 2 de setembro de 2018

ELEIÇÕES 2018 VII

Tribunal Superior Eleitoral. 31/08/2018. Julgamento do pedido de registro da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. Indeferido (6 x 1). O relator, ministro Barroso, votou pelo indeferimento do pedido. Sustentou que o caso se enquadrava na lei da ficha limpa; que o candidato está inelegível por ter sido condenado em processo criminal nos dois graus de jurisdição; que não lhe socorre a decisão do Comitê dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), por ser administrativa sem força vinculativa; que dos 18 especialistas componentes do Comitê apenas dois assinaram a resolução; que o estado brasileiro não está obrigado a acatar decisões emanadas daquele órgão porque o protocolo correspondente não foi promulgado pelo presidente da república do Brasil. Dos sete ministros integrantes do tribunal, cinco acompanharam o voto do relator. Como diz o vulgo, na terra de cegos quem tem um olho é rei. Houve apenas um voto parcialmente discordante. O ministro Fachin concordou que segundo a lei interna o candidato estava inelegível. Entretanto, discordou do relator quanto a eficácia da decisão do citado Comitê. Entendeu que o estado brasileiro estava obrigado a acatar aquela decisão que concedera ao candidato o direito de disputar as eleições; que tal decisão era vinculante de acordo com o Tratado de Viena, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 (que criou o Comitê dos Direitos do Homem) e o Protocolo Facultativo de 1976 (que ampliou a competência do Comitê incluindo comunicações de cidadãos sobre violação aos direitos civis e políticos praticada por estado).   
Em termos jurídicos, assiste razão ao ministro Fachin. Segundo a lei brasileira, o candidato está realmente inelegível. O processo criminal foi montado especialmente para esse fim: tornar o réu inelegível. Cuida-se de processo criminal injusto, ilegal, artificioso e fraudulento [incompetência de foro, juízes parciais e suspeitos, falta de prova da materialidade, inexistência de elemento do tipo (ato indeterminado que supostamente seria praticado pelo réu no futuro)]. Todavia, em respeito à decisão da autoridade internacional, ao tratado, ao pacto e ao protocolo facultativo, impunha-se o registro do candidato até o exaurimento das instâncias naquele processo criminal.
Barroso quer converter o Supremo Tribunal Federal (STF) em corte constitucional e também refundar o Brasil. Essa tarefa não cabe a ele e sim ao povo brasileiro e aos seus representantes eleitos para compor uma assembleia nacional constituinte. Ao ministro cabe o ofício judicante nos limites da Constituição e o dever de respeitar a ética judiciária, o que não vem acontecendo. Com as suas decisões fundadas na esperteza enganosa, ao invés de refundar o Brasil ele afundou o país no mar das incertezas, na profunda insegurança jurídica. Ele acusa colegas de decidirem as causas conforme o réu quando é ele próprio que atua dessa maneira. Barroso liderou a maioria dos seus colegas no STF para reduzir o espaço da presunção de inocência fincando limite no segundo grau de jurisdição em frontal violação ao cristalino preceito constitucional sobre a necessidade do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para alguém ser considerado culpado. A intenção foi a de apoiar a trapaça dos procuradores e magistrados de Curitiba e do tribunal regional de Porto Alegre, a quem ele não poupa elogios. Agora completa o ardiloso serviço ao lançar um voto caviloso com o estreito objetivo de afastar aquele réu das eleições presidenciais. O seu voto está emparedado no sistema brasileiro onde prevalece a jurisdição do Judiciário. No entanto, o Comitê exerce em extensão internacional o poder de polícia da ONU, lato sensu, preventivo e repressivo, na área dos direitos humanos. Na ONU o poder jurisdicional stricto sensu não é exclusivo da corte judiciária e sim compartilhado com comissões especiais de jurisdição administrativa por delegação normativa na forma da Carta, dos tratados, pactos e protocolos. 
Jurisdição significa expressão verbal do direito. Neste amplo sentido, o direito pode ser ditado por pessoas de reconhecido valor intelectual e moral (doutrinadores, professores, jurisconsultos, árbitros, governantes). Vista como atividade pública institucional, a jurisdição assume caráter imperativo e se destina a solucionar controvérsias por sentença declaratória, mandamental ou condenatória, tendo por fundamento o direito interpretado e aplicado no devido processo jurídico. A jurisdição pode ser judicial, administrativa e parlamentar. No Brasil, a jurisdição comum é de natureza judicial enquanto a jurisdição especial é de natureza [1] administrativa {tribunal de contas (julga as contas públicas e aplica sanções), tribunal marítimo (acidentes de navegação) [2] parlamentar (processo de impeachment do chefe de governo). O fato de a jurisdição administrativa no Brasil ser restrita não quer dizer que não exista no resto do mundo de forma ampla. Na ONU, à semelhança do sistema francês, a jurisdição divide-se em judicial (Corte Internacional, litígio entre estados, Estatuto, 34) e administrativa (Comitê, litígio entre cidadão e estado, Pacto, 28).
As decisões proferidas nos processos contenciosos, quer sob a jurisdição judicial, quer sob a jurisdição administrativa, têm eficácia vinculativa plena. Os estados membros, ao se associarem, comprometem-se a aceitar a jurisdição internacional e acatar as decisões dos órgãos deliberativos. O descumprimento dessas decisões pode acarretar sanções, inclusive a exclusão (Carta ONU, 6). Quando proferida na jurisdição administrativa, a decisão tem caráter jurisdicional e não de mero ato administrativo como sugere o malicioso voto do relator. Sob a jurisdição do Comitê debatem-se as causas em que um dos polos da relação processual é ocupado por cidadão e o outro por estado. Decisão de autoridade internacional administrativa ou judicial que no contencioso estabelece obrigação de fazer não é simples recomendação como a da mãe ao filho: “tome cuidado ao acender o fogo”. A recomendação oriunda de um processo contencioso visa a sua execução, apoiada que está numa decisão jurisdicional com força vinculante.
A obediência é essencial à eficácia do direito. Ao comando da lei corresponde a obediência do jurisdicionado. Sem obediência, a lei é ineficaz, não há disciplina e nem ordem social. A desobediência provoca a reação da autoridade. No caso sub judice, ao tribunal eleitoral cabe obedecer e não discutir a decisão emanada da autoridade internacional. A discussão compete ao presidente da república na qualidade de chefe de estado perante o Comitê. A relação comando + obediência instaura-se entre o Comitê e as partes (cidadão e  estado membro). O processo do qual emanou a decisão em tela é contencioso, o estado brasileiro ocupa o polo passivo da relação processual, apresentou defesa, os trâmites respeitam os princípios do contraditório, da ampla defesa e do juiz natural. A decisão provisória foi lançada inaudita altera pars no curso do processo principal ante a urgência do caso e a grave ameaça que pesava sobre os direitos do cidadão brasileiro. A medida cautelar concedida liminarmente em circunstâncias que tais não é estranha à ordem jurídica brasileira. A concessão liminar por dois julgadores é mais confiável do que a concessão por um só permitida pelo direito brasileiro. A reunião dos 18 membros é periódica, três sessões por ano. Numa delas, o mérito da demanda será apreciado. A escolha desse pessoal é criteriosa e se faz para assegurar o mais alto grau de eficiência, competência e integridade (Carta ONU, 101, 3).  
Entre os elevados propósitos da ONU está o de conseguir cooperação internacional para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos sem distinção de raça, sexo, língua ou religião (Carta ONU, 1). Esse propósito vem reiterado em diversos artigos da Carta (13, 1, b; 55, c; 62, 2; 68). O Conselho Econômico e Social pode criar comissão para a proteção dos direitos do homem. A Carta exige obediência por todos os estados membros às obrigações nela contidas (Art. 4). Além dos órgãos principais da ONU (Assembleia Geral, Conselho de Segurança, Conselho Econômico e Social, Conselho de Tutela, Corte Internacional de Justiça, Secretariado) há órgãos subsidiários considerados necessários estabelecidos nos termos da Carta (Art. 22). O Pacto, o Comitê e o Protocolo Facultativo citados no voto vencido estão em sintonia com a Carta da ONU. Resultando de decisão jurisdicional proferida em processo contencioso, quer no âmbito da jurisdição judicial, quer no âmbito da jurisdição administrativa, o estado membro tem o dever de acatar a recomendação e lhe dar efetividade. No entanto, servindo-se de sofismas, o relator e seus seguidores negaram a força vinculativa das recomendações oriundas de processo contencioso em trâmites pelo Comitê da ONU.
Os mandamentos internacionais sobre a proteção dos direitos humanos foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. Nesse particular, o voto vencido (Fachin) é de superior e inigualável magistério. Portanto, o tribunal eleitoral estava obrigado a acatar a decisão do Comitê. A ginástica cerebrina feita pelo relator e mimetizada pelos ministros que o acompanharam não resiste a uma análise racional, honesta e imparcial. Aliás, imparcialidade, honestidade, senso de justiça, prudência, são atributos de juiz que nem sempre se encontram em ministro.

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