domingo, 9 de setembro de 2018

DIREITO & OBEDIÊNCIA

Obedecer significa submissão a um comando. Ao obedecer a voz da consciência o sujeito deixa de praticar ação ilícita. Nas relações humanas, o filho obedece ao pai, o discípulo ao mestre, o empregado ao patrão, o soldado ao general, o bandido ao chefe, o crente ao mandamento religioso, o cidadão ao governo, a parte ao contrato, o estado ao tratado. A dimensão moral da natureza humana faz o indivíduo perceber: (i) que nem tudo é verdadeiro, nem tudo é bondade, nem tudo é justo; (ii) que o regramento é necessário; (iii) que a obediência é essencial à eficácia da norma disciplinadora. Imperativo categórico de Kant: obedecer por puro respeito às leis. Cumprir o dever pelo dever, sem esperar prêmio ou temer castigo. Imperativo hipotético: obedecer e receber recompensa, ou desobedecer e receber castigo. No estágio avançado da civilização essa noção ética foi colocada na cúspide da pirâmide das normas jurídicas erguida por Kelsen: obedecer à autoridade constituída. Obediência à Constituição e às leis.
Nos seus primórdios, a humanidade estava naturalmente organizada como no mundo animal (abelhas, formigas). Entretanto, graças à racionalidade, à habilidade em manejar interesses e à capacidade de se propor fins, os humanos imprimem à sua convivência tipos de organização que variam no tempo e no espaço, segundo as suas necessidades, conveniências e vicissitudes. A relação comando + obediência verifica-se desde a comunidade tribal. Na progressiva evolução do comportamento humano, tribos se federalizaram formando a cidade, primeiro estágio da civilização. O poder político assim instituído estabeleceu direitos e deveres acima dos vigentes em cada tribo. A obrigação política de obedecer ao governo central foi consequência.
O passo seguinte foi a federalização das cidades. Quer pelo consenso, quer pela força, elas se uniram e ensejaram um poder superior que lhes reduziu a soberania. Criaram regras com a exigência de geral obediência por todos os membros da sociedade política daí resultante (cidades + cidadãos). Durante o milenar processo dessa evolução social e política, a ênfase recaiu no coletivo. O organismo social engolfa o indivíduo, a autoridade política sufoca a liberdade da massa popular. Com a revolução francesa (1789), começou a mudança em extensão mundial. O embrião desse renovo foi gerado na Inglaterra com a rebeldia dos barões (1215). Na França, tornou-se agudo o antagonismo no seio do estado entre o indivíduo (burguês) e o governo (monarca). Com a vitória dos revolucionários, foram reconhecidos direitos individuais – absolutos no plano moral, porém, relativos no plano social – derivados das ideias e aspirações de liberdade, igualdade e fraternidade. O governante (legislador, chefe de governo, juiz) tem o dever de respeitar esses direitos. Persiste o dever do governado de obedecer ao governante enquanto respeitados tais direitos.
Nesse estágio da civilização, o poder do governante é limitado por esses direitos – não só por serem moralmente absolutos – mas também por decorrerem da soberania popular e por serem da essência da dignidade da pessoa humana. Na hipótese de o governo afrontar esses direitos, cabe ao povo o direito natural de: (i) mediante desobediência civil, forçar o governo a mudar de comportamento (ii) pela força das armas, mudar o governo.            
O estágio seguinte da civilização nesse processo evolutivo linearmente considerado, caracteriza-se pela união dos estados soberanos por meio de tratados geralmente com os seguintes propósitos: [I] cooperação em defesa da paz e da segurança internacionais [II] desenvolvimento econômico e social dos povos [III] ajuda humanitária [IV) práticas comerciais [V] intercâmbio cultural, científico e tecnológico [VI] promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Servem de exemplo: [1] a Organização das Nações Unidas (1945) [2] as organizações: (i) dos Estados Americanos; (ii) Internacional do Trabalho (iii) Mundial da Saúde (iv) Educacional, Científica e Cultural [3] União Europeia. Todos esses organismos têm o seu próprio ordenamento jurídico. Os seus regulamentos e as suas decisões vinculam os estados membros. As decisões dos tribunais de justiça de cada comunidade (ONU, OEA, OIT, UE) sem efeito erga omnes obrigam exclusivamente as partes litigantes.
Na fundamentação dos atos desses organismos entram valores e proposições da cultura jurídica ocidental, tais como: (i) igualdade perante as normas éticas e jurídicas (ii) liberdade de expressão, reunião, associação (iii) acesso à informação, abuso de direito (iv) responsabilidade pelo dano causado por culpa ou dolo (v) nullum crimen nulla poena sine lege, irretroatividade da lei, legítima defesa, estado de necessidade, presunção de inocência, in dubio pro reo, individualização da pena (vi) due process of law, direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada (vii) petição, representação, reclamação (viii) ne procedat iudex ex officio, julgamento justo por juízes independentes e imparciais (ix) pacta sunt servanda, cumprir a palavra empenhada e as cláusulas contratuais, honrar compromissos firmados em tratado internacional (x) asilo, primazia do tratado em face da lei nacional, autodeterminação dos povos. 
Das relações entre os diferentes estados, cada qual com a soma dos próprios interesses, decorreu a necessidade de disciplina-las mediante regras aceitas por todos, fundadas na comunhão de ideias, sentimentos e vontades, tendo por escopo a segurança jurídica e o bem da comunidade. Assim configurou-se o direito internacional. Esse direito foi inicialmente sistematizado por Hugo Van Groot (“De Iure Belli ac Pacis”,1625). Após duas guerras mundiais (1914/1918 + 1939/1945) e o receio de uma terceira, busca-se, com base nesse direito, resolver as controvérsias entre os estados pela via diplomática ou por via judicial. São admitidas na jurisdição administrativa ações propostas por pessoa natural contra estado no caso de violação dos direitos humanos.
Ao celebrarem tratados, os estados submetem-se à jurisdição internacional (judicial e administrativa) e se obrigam a obedecer os regulamentos e as decisões dos organismos a que se filiaram. Essa obediência é essencial à eficácia das normas internacionais. O acatamento às cláusulas dos tratados exige forte consciência moral. A desobediência ao sistema jurídico dos povos civilizados é intolerável. Governantes vira-latas são desprovidos dessa consciência. O vigor do direito internacional provém mais da autoridade moral apoiada na força do direito (auctoritas) do que da autoridade política apoiada nas armas (imperium).
O direito positivo (nacional e internacional) institui uma ordem coativa. A obediência à norma jurídica não é facultativa e sim obrigatória. O estado membro está obrigado a introduzir na legislação as modificações necessárias para assegurar a execução dos compromissos assumidos na esfera internacional. No Brasil, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos equivalem a emendas constitucionais, por isto mesmo, incluídos no ordenamento jurídico nacional por ato soberano exclusivo do Congresso Nacional, independente da sanção do Presidente da República.       

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