O Presidente da Câmara dos Deputados despachou o
pedido de impeachment formulado contra a Presidente da República, inaugurando os
trâmites legais (02/12/2015). Enquanto ocupar legalmente a presidência para a
qual foi eleito por seus pares, esse parlamentar poderá exercer todas as
atribuições do seu cargo. Tendo em vista os indícios veementes de práticas
ilícitas das quais ele seria protagonista, seus atos de ofício, ainda que
legais, carecem de força moral.
A lei 1079 de 1950, sobre crimes de responsabilidade, deve
ajustar-se à Constituição da República de 1988, no que concerne ao processo. Servindo-se da injunção, instituída pela Assembleia Constituinte de 1987/1988 (CR
5º, LXXI), o Supremo Tribunal Federal (STF), no exercício da jurisdição
construtiva, pode estabelecer regras harmônicas com a nova Constituição em cada
caso concreto enquanto o Poder Legislativo não o fizer para todos em caráter geral
e abstrato.
No regime anterior, competia ao Senado apenas julgar. A instauração do processo cabia
à Câmara que, se a petição inicial (denúncia) fosse julgada procedente, decretava a acusação. A citada lei
vigorava plenamente e estabelecia a tradicional divisão: acusação e instrução
processual pela Câmara e julgamento pelo Senado. A Constituição de 1988 mudou
esse procedimento. Agora, tanto o processo
como o julgamento cabem ao Senado. À
Câmara cabe apenas o juízo de
admissibilidade o que torna dispensável a intermediação de comissão especial.
Para emitir tal juízo, a Câmara independe do parecer de qualquer comissão. Em sessão plenária,
a Câmara decidirá se autoriza ou não autoriza a instauração do
processo. Realmente, diz o artigo 51 da Constituição da República:
“Compete privativamente à Câmara dos Deputados:
I – autorizar por dois terços de seus membros, a instauração de processo
contra o Presidente e o Vice-Presidente da República”.
Autorizar significa permitir a alguém que faça ou deixe de fazer alguma coisa. Supõe, de um lado, o poder de fato ou de direito de quem concede a permissão e, de outro, a dependência de quem a recebe para agir ou se omitir.
Em obediência aos princípios do devido processo legal,
do contraditório e da ampla defesa, inerentes ao regime democrático, e por
aplicação analógica fundada em procedimentos contemplados na ordem jurídica
nacional, o denunciado deve ser previamente notificado para apresentar sua
defesa. A leitura da petição inicial e da defesa prévia em sessão plenária da
Câmara dará ciência aos parlamentares e ao povo. A eleição de comissão especial
tornou-se prescindível em face da nova ordem constitucional. Os artigos 17 a 29 da lei 1079/50 não se
ajustam à Constituição de 1988 porque tratam da instrução processual que,
agora, se contém na competência privativa do Senado e não mais da Câmara.
Realmente, diz o artigo 52 da Constituição da República:
“Compete privativamente ao Senado Federal: I – processar e julgar o Presidente e
o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade”.
Em sessão plenária, a Câmara poderá dar ou negar
autorização. Se negar, ou seja, se o juízo de admissibilidade for negativo, a
denúncia e seus anexos serão arquivados. Se autorizar, ou seja, se o juízo de
admissibilidade for positivo, a resolução e a denúncia com seus anexos serão enviados
ao Senado que, apesar de autorizado, decidirá se instaura ou não instaura o
processo. As duas casas legislativas são independentes e soberanas. Se a
decisão senatorial for negativa, a denúncia e seus anexos serão arquivados. Se
a decisão senatorial for positiva, instaura-se o processo e o Presidente da
República será afastado das suas funções (CR 86, §1º, II). Decorrido o prazo de
180 dias sem julgamento final, o Presidente da República retornará às suas
funções, sem prejuízo do prosseguimento dos trâmites processuais.
A direção do processo parlamentar de impeachment cabe
ao Presidente do STF (CR 52, p.ú.). Cuida-se de um anacronismo. Outrora, o
Vice-Presidente da República exercia as funções de Presidente do Senado (CR
1891, art. 32 + CR 1946, art. 61) e de Presidente do Congresso Nacional (CR
1967, art. 79, §2º). A cautela do legislador constituinte ao atribuir a direção
do processo ao Presidente do STF naquela época foi sensata e natural. Independente
das qualidades pessoais havia potencial suspeição do Vice-Presidente da
República para exercer a direção do processo tendo em vista a sua posição de
imediato sucessor do Presidente. Acontece que o Vice-Presidente não mais preside
o Senado e nem o Congresso Nacional. Apesar de não mais existir motivo para o
Presidente do STF dirigir o processo parlamentar de impeachment, a força da
inércia manteve o obsoleto preceito na ordem constitucional.
Antes de decidir se instaura ou não instaura o processo,
o Senado deve facultar defesa prévia ao acusado em respeito às garantias
constitucionais. Se o Senado, em sessão plenária, decidir pela instauração,
elegerá uma comissão processante perante a qual atuará o defensor e se
produzirá prova. Encerrada a instrução processual com o relatório da comissão,
o processo segue para julgamento em sessão plenária, onde o acusado poderá apresentar
defesa oral. Desde a instauração do processo até o julgamento final, o acusado
tem direito ao contraditório e à ampla defesa. No âmbito parlamentar, razões
políticas, econômicas e sociais podem lastrear a absolvição, mas somente razões
jurídicas podem fundamentar e justificar a condenação.
A tipificação da conduta do acusado como criminosa é
tarefa eminentemente jurídica. Não há crime sem lei anterior que o defina, nem
pena sem prévia cominação legal. Quando o fato descrito na peça acusatória não tipificar
delito definido em lei, quer do ponto de vista material, quer por ausência de
dolo, o processo respectivo caracterizará constrangimento ilegal. Isto enseja
impetração de habeas corpus em favor
do paciente perante o STF. Concedida a ordem pelo tribunal, tranca-se o processo
parlamentar ou anula-se veredicto nele exarado. Havendo violação do devido
processo legal, o processo parlamentar pode ser anulado por decisão do STF (CR
5º, LIV + XXXV).
Todo cidadão é parte legítima para denunciar o
Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade. O
Vice-Presidente da República será incluído no pólo passivo da relação
processual quando, no eventual exercício da presidência, praticou atos iguais
ou semelhantes aos narrados na petição inicial. Far-se-á o aditamento perante a
Câmara ou o Senado, conforme a fase em que se encontrem os procedimentos. A
responsabilidade por atos ilícitos praticados em mandato extinto será apurada
no processo comum.
Manifestações recentes de diversos juristas de escol,
entre eles, Celso Antonio Bandeira de Mello, Dalmo de Abreu Dallari, Fábio
Konder Comparato, revelam perfeita sintonia com os seguintes artigos publicados
neste blog: Impeachment (21/03/2015);
Impeachment II (22/03/2015); Impeachment III (17/04/2015); STF e o Impeachment (19/09/2015); Contas (10/10/2015); Contas II (14/10/2015). Tais
manifestações e artigos defendem o Estado Democrático de Direito e a
Constituição da República Federativa do Brasil.
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