sábado, 15 de agosto de 2015

ROBSON



Armando Fradique deixa o miserável casebre de dois milhões de dólares no bairro proletário dos jardins e se dirige ao viaduto perto da estação rodoviária. Estaciona o seu calhambeque azul de cem mil dólares e dá uma gorjeta de cinco dólares ao guardador. De três peças de papelão faz uma cama. Sente a brisa noturna no rosto. Quarto minguante. Nenhuma nuvem para ofuscar o brilho das estrelas a contrastar com o fundo azul escuro da abóbada celeste.     
Cansado da estafante mamata de catar lixo reciclável, Robson Eliseu chega ao seu domicílio viadutal e se depara com o estranho ali acomodado e o interpela: O que faz você aí?
- Ora, estou me preparando para dormir, responde Armando, com ar enfastiado, como se a pergunta fosse idiota.  
- Temos igual direito à moradia, como diz a Constituição, porém os papelões são bens de uso pessoal. Robson argumenta com impaciência. Nem Marx ousou negar a existência desse direito de possuir privativamente esse modesto tipo de patrimônio.    
- Calma! Armando modula a voz e enquanto fala, movimenta a mão direita de cima para baixo de encontro ao corpo, seguidas vezes, alisando suavemente o seu pijama de seda azul brilhante com pontinhos vermelhos. Você citou a Constituição, sinal de que conhece os direitos dos cidadãos e citou Marx, sinal de que sabe alguma coisa sobre o pensamento dele. Deve lembrar, então, de que o renomado filósofo alemão admitiu a coexistência de direitos burgueses e direitos proletários até que a sociedade liberal mudasse pacificamente para o comunismo. Pense bem: os papelões são bens móveis e nos termos da lei civil burguesa em vigor presume-se proprietário aquele que lhes tiver a posse. Quando hoje aqui cheguei não havia pessoa alguma e os papelões estavam jogados no chão. Deles tomei posse de modo pacífico e legítimo. Na forma da lei, pois, deles sou dono e deles posso fazer o uso que me convier.
- Este viaduto é minha morada habitual. Com os punhos fechados, apertados contra as pernas, Robson protesta irritado. Tudo aqui me pertence: travesseiro, cobertor, papelões, fogareiro, sandália havaiana, camiseta com a estampa do “Che”, escova de dente, caneca e prato de alumínio, garfo e faca de plástico; até o lado do pilar por mim utilizado para urinar é privativo. Além disto, recebo a visita semanal da Rosa do Mercado e necessito de privacidade.  
- Meu caro amigo... Como é mesmo o seu nome? Armando faz a pergunta em tom conciliador. Ah, sim, bonito nome. Meu caro Robson Eliseu: o direito a moradia é assegurado por lei magna; a morada viadutal é coletiva, eis que o viaduto que serve de teto ao preclaro amigo foi construído pelo governo para desfrute dos governados. A morada viadutal destina-se ao repouso de todos na proporção do espaço disponível. Sou cidadão brasileiro como você e tenho o mesmo direito à moradia, ainda que coletiva. Quanto ao uso, se habitual ou esporádico, não faz diferença. Se a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir. Acresça-se a isto, que todos os cidadãos têm igual direito ao repouso e a atender às suas necessidades orgânicas. No que tange ao pilar, portanto, não pode, em absoluto, ter lado privativo para micção de uma única pessoa. Sobre a visita da Rosinha, não vejo problema algum.
- “Rosinha”!! Que intimidade é esta com a minha companheira? Robson sentiu que seu cabelo encarapinhado parecia ficar liso e eriçado. O coração batia rápida e fortemente como se estivesse prestes a romper o esterno e saltar por cima do viaduto. Armando, de pálpebras parcialmente cerradas, sem notar o estado de ânimo do interlocutor, concentrava-se na sua exposição verbal.
- Admiro os seios e as pernas da Rosinha, o sorriso encantador, apesar da pequena falha nos dentes superiores. Há ternura nos olhos dela. Fizemos amor. Ela falou de um companheiro, mas não acreditei, porque não havia homem algum aqui naquela noite. Vejo que, socialistas e cultores de Marx, eu e você compartilhamos os carinhos dela como bons camaradas.          
- O quê? Você transou com a Rosa do Mercado?
- Rose Carrefour, notre petite fleur, s´il vous plait – Armando responde com olhar blasé.
- Muito bem. Vou te ajudar a exercer os iguais e sagrados direitos de moradia, de repouso e de fornicar com o apetite da “Rose”, meu camarada. Enquanto dizia isto, Robson descia o porrete no lombo de Armando. 

No interior do camburão, Armando Fradique, algemado, sentia dores pelo corpo. Em outra viatura e sem algemas, Robson Eliseu seguia bem acomodado até a delegacia de polícia.  
- Então, “seu” pilantra: você invade a morada do seu irmão, toma-lhe os pertences, confessa que comeu a mulher dele e ainda o agride? O movimento de mãos e braços do delegado colocavam à mostra as abotoaduras de jade que prendiam os punhos das mangas de uma camisa branca impecavelmente limpa da qual pendia gravata como língua vermelha no centro do peito combinando com o terno azul. O delegado, que se parecia com o ator Sidney Poitier, não suportava gente branca e dirigia a colérica pergunta a Armando Fradique. Com as pernas trêmulas, Armando faz menção de sentar-se. Quem te mandou sentar? Aqui sou eu quem manda. Fique em pé e responda a minha pergunta, “seu” branquelo vagabundo. O rosto do delegado estava da cor do cobre. Armando assume postura submissa e humildemente explica:
- Eu não invadi o local, excelência. O delegado ficou na dúvida se o tratamento que lhe foi deferido por Armando era reverencial, debochado ou bajulador, tendo em conta que tal pronome de tratamento é privativo das autoridades estatais superiores. Armando prossegue: Assim como em anterior ocasião, o local estava abandonado quando lá cheguei. Robson não é proprietário da morada viadutal; a mulher também não lhe pertence, até porque ninguém é dono de ninguém. Somos todos camaradas nesta república democrática e devemos usufruir de todos os bens patrimoniais e afetivos de modo coletivo e fraterno. Robson e eu somos irmãos ideológicos e não de sangue. Marx é o nosso deus, Lenine é o nosso querubim, Fidel e Che Guevara são os nossos heróis. Eu é que fui agredido. Os pertences a ninguém pertencem; espalhados sob o viaduto sujeitos à posse do primeiro que ali chegasse. Fingindo estar distraído, Armando coloca sobre a mesa do delegado um rolo de notas de cem dólares preso com elástico redondo e fino.
- Você está gozando da minha cara? Nervoso, o delegado interpela Armando. Pensa que sou idiota? Que negócio é esse de pertence que não pertence? E esse maço de notas? Pensa que um punhado de dólares vai livrá-lo da prisão? Fique sabendo que você está diante de um delegado honesto. Após a respiração voltar ao ritmo normal, o delegado, de modo atencioso e educado, com suavidade na voz, consulta Robson se era verdade o que Armando dizia. Robson nega de maneira enfática e dá a sua versão dos fatos.
- Horácio!
- Pronto doutor, diz solícito o carcereiro, um russo de dois metros de altura, 120 quilos de peso, cabeça raspada, barbicha e pelos ruivos, camisa de seda aberta da cintura para cima, corrente de ouro que descia do pescoço e terminava no peito peludo, macia base de pouso do medalhão dourado, Rolex no pulso, vistoso anel na mão direita, bom caimento da calça comprida de linho bege, cinto de couro marrom com fivela dourada, sapato bicolor.    
- Jogue este maço de notas na privada e acione a descarga. Coloque esse branco ordinário na cela, mas, antes, diga ao Jacinto para esquentar o pilantra com algumas cacetadas seguidas de esfriamento por jatos de água, que é para ele aprender a respeitar o bem alheio e não cobiçar a mulher do próximo. O Jacinto deve almofadar as pancadas com toalha. Se deixar marca no corpo, esse cretino é capaz de invocar os “direitos humanos”, colocar-se no papel de “vitima”, reclamar indenização ao Estado e os cambau. O carcereiro obedeceu. Depois do tratamento disciplinador, Armando foi trancafiado. Robson tomou a água e o café que o delegado lhe ofereceu e se despediu com aperto de mão e tapinha nas costas. 

Na certeza de que o delegado fizera justiça, Robson retorna à sua morada viadutal. Apesar disto, sua alma estava inquieta. Homem sensível, dado à reflexão, Robson Eliseu sabia do costume da polícia de perseguir e maltratar as pessoas brancas, principalmente as ricas. Às vezes, a polícia dava sumiço a elas. Paradeiro desconhecido. O corpo virava cinza ou comida de tubarão. Deitado em sua confortável cama de papelão sob o viaduto, rosto parcialmente iluminado pelo luar, contemplando as estrelas e meditando, Robson concluiu que só por serem brancas e ricas, as pessoas não mereciam o cruel tratamento que lhes era dado por delegados, promotores e juízes. Robson cismava sobre injustiça social.
“Neste país, negros e mulatos formam uma classe privilegiada. Cadeia e bordoada? Só para os brancos, ainda mais se freqüentam country club. Verdade seja dita: negros e mulatos da alta esfera social e estatal mergulhados em exagerada corrupção têm sido presos recentemente. Mas, também é verdade que se trata de exceção à regra tradicional e costumeira. A exceção resulta da tensão política elevada ao grau máximo por aqueles que perderam as eleições. Politicamente comprometidas com o lado perdedor, as autoridades selecionam alguns corruptos e mantêm os demais fora da perseguição policial e judicial. Nas escolas, as vagas são ocupadas por negros e mestiços, enquanto os brancos ficam com as sobras. Nos empregos, o negro tem preferência na contratação, ocupa o melhor cargo e ganha o dobro do branco. Nos tribunais, a maioria esmagadora é de juízes negros e mestiços. Se, algum dia, as autoridades sofrerem os mesmos padecimentos dos brancos, certamente deixarão de persegui-los e de maltratá-los. Nesse auspicioso dia, os brancos, inclusive os ricos, também serão tratados com dignidade. Exercerão, livre e plenamente, o direito de morar e descansar sob marquises, pontes e viadutos, sem serem incomodados pela polícia. Morar na favela não será mais privilégio do negro e do mestiço. Os brancos terão igual direito, como já acontece na escola de samba: outrora privilégio de negros e mulatos, hoje a escola admite brancos mesmo sendo ricos”.
No seu solilóquio, Robson rendeu homenagem à igualdade e à fraternidade. Naquela noite, Rosa do Mercado não veio. Robson adormeceu. A sua alma penetrou em um mundo diferente, ainda melhor do que o mundo com o qual ele sonhara acordado.
  

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