sábado, 22 de agosto de 2015

JUSTIÇA



Ao clamarem por justiça, as vítimas da violência manifestam a esperança de que os culpados sejam punidos. Quando alguém, por mérito próprio e de forma legítima, obtém êxito em algum empreendimento, assevera-se que houve justiça. O fulcro dessas expressões está na idéia de retribuição. Platão utiliza essa idéia para conceituar justiça: “pagar o bem com o bem e o mal com o mal, na terra ou no céu”. Justiça é premiar quem obedece às leis divinas e castigar quem as desobedece. Sob prisma terreno, justiça é valor ético medido pelo critério da igualdade. Na definição de Aristóteles, justiça consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na proporção em que se desigualam. Na jurisprudência romana, justiça significava virtude moral: viver honestamente, sem lesar o outro, e dar, a cada um, o que lhe é devido (síntese de Ulpiano). A idéia de justiça tem componentes sentimental e social, pois supõe relação entre duas ou mais pessoas. Ninguém é justo consigo mesmo. Tarefa árdua do pai, a de ser justo quando o filho litiga com terceiros. Podemos ser justos quando nossos interesses e nossas afeições estiverem fora do nosso julgamento. Ninguém deve julgar em causa própria, nem julgar causa alheia se nela tiver algum interesse.
Do ponto de vista social, justiça consiste na erradicação da pobreza, na redução das desigualdades, promoção do bem de todos, ausência de preconceito, tendo como guia a dignidade da pessoa humana. Do ponto de vista institucional, dá-se o nome de justiça ao conjunto de órgãos do Estado cuja função é a de assegurar a eficácia do direito (tribunais, procuradorias, defensorias, delegacias, penitenciárias). Do ponto de vista legal, justo é obedecer às leis. Na sociedade há leis escritas e não escritas. Por derivarem do costume (consuetudo), as leis não escritas são denominadas consuetudinárias. O costume é lei entre aqueles que o instituíram em âmbito regional, nacional ou internacional. O direito consuetudinário vige ao lado do direito escrito (Inglaterra é o exemplo mais citado). Nas relações internacionais, além dos tratados escritos, vigoram os costumes, principalmente no comércio. Em havendo colisão, no caso concreto, entre a lei escrita e a lei consuetudinária, uma delas há de prevalecer. No direito brasileiro prevalece a lei escrita. Contudo, há lugar, caso a caso, para a ponderação e a razoabilidade no propósito de realizar o bem maior: justiça.
No caso em que ambas incidem, aplica-se a lei escrita se a lei consuetudinária lhe for anterior. A dúvida surge: (1) quando o costume forma-se depois da vigência da lei escrita; (2) se com a revogação da lei escrita há repristinação da lei consuetudinária. Na dinâmica social, o costume pode se formar posteriormente à lei escrita e esta cair em desuso. Se a lei consuetudinária mantiver a sua eficácia apesar do advento da lei escrita, esta perde o vigor. Neste caso, diz-se que a lei escrita “não pegou”. O legislador apontou uma direção e o povo seguiu outra. 
No Brasil, do Império à primeira República, vigorava a seguinte norma consuetudinária: “Em todo contrato oneroso celebrado com a administração pública as pessoas físicas ou jurídicas de direito privado devem pagar propina ao agente estatal. O valor da propina será combinado entre as partes e deverá ser proporcional à vantagem econômica que do contrato resultar às referidas pessoas”. Essa lei não escrita foi revogada pelo código penal de 1940 que definiu os crimes contra a administração pública incluindo, entre outros, a corrupção ativa e passiva. A partir de 1955, a lei penal escrita começou a perder eficácia. A construção de Brasília foi o marco inicial da derrogação da lei penal. Inaugurou-se o propinoduto. A antiga norma consuetudinária foi repristinada. A tradição exibiu sua força: propina é instituição nacional. Com o aumento do volume dos negócios entre particulares e administração pública cresceu o pagamento de propinas. As construções da ponte Rio-Niterói, da estrada Transamazônica, das usinas de Itaipu e Angra, foram os propinodutos do governo militar. Diversos propinodutos foram construídos no governo civil (Sarney, Collor, Cardoso, Silva). Havia um ministro do governo Geisel que recebeu dos franceses a alcunha de “ministro dos dez por cento”. Certo ministro “imexível” do governo Collor cobrava vinte ou trinta por cento. Obeso ministro do governo Cardoso cobrava o mesmo percentual. A “taxa de corretagem” subiu às alturas estratosféricas na venda do patrimônio da União. Propinas rolam no âmbito dos poderes Executivo e Judiciário a título de “taxa de urgência” (para acelerar providências) e “taxa de permanência” (para retardar ou deixar de praticar ato de ofício).  
A lei consuetudinária, tacitamente aceita pela sociedade brasileira e que, graças ao potencial da inércia, vigora há mais de 50 anos, é aquela mesma que vigorava antes de 1940: negócio de pessoa física ou de pessoa jurídica de direito privado celebrado com a administração pública inclui propina. A compra, a venda, a obra ou o serviço contratado terá o seu custo acrescido em razão da propina. O erário paga a conta. Os empreiteiros seguem a regra do jogo. Se eles desobedecerem, perdem o negócio e deixam de faturar, o que acarreta conseqüências econômicas e sociais indesejáveis. Veja-se este fato emblemático: em Curitiba (capital da República Fascista do Paraná, na feliz expressão do deputado federal/RJ Wadih Damous) o empreiteiro que construiu a “Rua 24 Horas” negou-se a pagar propina que lhe foi exigida pelo diretor da companhia municipal de urbanismo no momento de receber a parcela final do preço contratado. O trabalho fora prestado a contento. A obra fora entregue e inaugurada em ocasião festiva. Apesar disto, o diretor da companhia alegou que a obra não fora concluída e não autorizou o pagamento da parcela final. O empreiteiro promoveu ação judicial e venceu. Depois disto, o empreiteiro nunca mais conseguiu contrato algum com o Município e com o Estado. Isto acontece a quem se nega a cumprir a lei consuetudinária instituidora da propina. 
Em termos de justiça – e não de estrita legalidade utilizada por oportunismo politiqueiro – os empreiteiros do processo apelidado de “Lava Jato” não merecem punição alguma, eis que, ao pagarem propina, seguiram as regras então vigentes. Merecem punição se praticaram outros crimes, mas não por pagarem propina. Estado e Sociedade consentiram tacitamente com a longa vigência dessas regras. Empreiteiros e agentes públicos confiaram nesse consentimento estatal e social. Mudar as regras sem o conhecimento dos destinatários constitui conduta censurável, mormente se a mudança for motivada por partidarismo político. Os tribunais anulam procedimentos na esfera criminal quando o flagrante da prisão foi astuciosamente preparado pela policia. “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação” (súmula 145 do Supremo Tribunal Federal). A liberdade de locomoção do indivíduo é manipulada pela autoridade estatal que o induz a cair na armadilha. No caso dos empreiteiros, a situação é semelhante. Com a condescendência da nação, o governo permitiu a vigência da lei consuetudinária por mais de 50 anos e agora pretende punir quem a cumpriu. Se prevalecer a traiçoeira conduta da autoridade, deverão ser investigadas e processadas todas as pessoas que celebraram contratos com a administração pública municipal, estadual e federal durante esse longo período republicano. Nesta hipótese, a autoridade cometerá crime de prevaricação se indevidamente deixar de incluir no devido processo qualquer dessas pessoas (CP 319).  
Ao pagar propina, os empreiteiros obedeceram à norma consuetudinária que se sobrepôs, no tempo e no espaço, à norma escrita. Doação para campanha eleitoral não se confunde com propina; são conceitos distintos com distintos fundamentos. Os políticos e partidos que recebem doações para campanhas eleitorais prestam contas à Justiça Eleitoral, na forma da lei escrita. Os agentes públicos recebem propinas na forma da lei consuetudinária.  
Cabe ao Congresso Nacional, com base na evidência histórica e no inciso XVII, do artigo 21, da Constituição da República: (1) votar lei de anistia abrangendo pagadores e recebedores de propinas na celebração de contratos com a administração pública no período de 1955 a 2015; (2) revigorar os dispositivos do código penal na área das licitações e contratos públicos e declarar expressamente a extinção da norma consuetudinária que autoriza a propina; (3) proibir qualquer reajuste no preço da obra ou do serviço após a aprovação da proposta nas licitações públicas. Essa proibição acabará com a fraude à igualdade dos concorrentes (atualmente, propõe-se o preço X para vencer a licitação e depois de assinado o contrato, reajusta-se para o dobro). A proibição contribuirá para dificultar a formação de cartel, conluio entre as empreiteiras que repartem entre si o objeto da licitação. 

Nenhum comentário: