Ao clamarem por justiça,
as vítimas da violência manifestam a esperança de que os culpados sejam
punidos. Quando alguém, por mérito próprio e de forma legítima, obtém êxito em
algum empreendimento, assevera-se que houve justiça.
O fulcro dessas expressões está na idéia de retribuição. Platão utiliza essa
idéia para conceituar justiça: “pagar
o bem com o bem e o mal com o mal, na terra ou no céu”. Justiça é premiar quem obedece às leis divinas e castigar quem as
desobedece. Sob prisma terreno, justiça
é valor ético medido pelo critério da igualdade.
Na definição de Aristóteles, justiça
consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na
proporção em que se desigualam. Na jurisprudência romana, justiça significava virtude moral: viver honestamente, sem lesar o
outro, e dar, a cada um, o que lhe é devido (síntese de Ulpiano). A idéia de justiça
tem componentes sentimental e social, pois supõe relação entre duas ou mais
pessoas. Ninguém é justo consigo mesmo. Tarefa árdua do pai, a de ser justo quando
o filho litiga com terceiros. Podemos ser justos quando nossos interesses e nossas
afeições estiverem fora do nosso julgamento. Ninguém deve julgar em causa
própria, nem julgar causa alheia se nela tiver algum interesse.
Do ponto de vista social, justiça consiste na erradicação da pobreza, na redução das
desigualdades, promoção do bem de todos, ausência de preconceito, tendo como
guia a dignidade da pessoa humana. Do ponto de vista institucional, dá-se o
nome de justiça ao conjunto de órgãos
do Estado cuja função é a de assegurar a eficácia do direito (tribunais,
procuradorias, defensorias, delegacias, penitenciárias). Do ponto de vista
legal, justo é obedecer às leis. Na
sociedade há leis escritas e não escritas. Por derivarem do costume (consuetudo), as leis não escritas são
denominadas consuetudinárias. O
costume é lei entre aqueles que o instituíram em âmbito regional, nacional ou
internacional. O direito consuetudinário vige ao lado do direito escrito
(Inglaterra é o exemplo mais citado). Nas relações internacionais, além dos
tratados escritos, vigoram os costumes, principalmente no comércio. Em havendo
colisão, no caso concreto, entre a lei escrita e a lei consuetudinária, uma
delas há de prevalecer. No direito brasileiro prevalece a lei escrita. Contudo,
há lugar, caso a caso, para a ponderação e a razoabilidade no propósito de realizar
o bem maior: justiça.
No caso em que ambas incidem, aplica-se a lei escrita
se a lei consuetudinária lhe for anterior. A dúvida surge: (1) quando o costume
forma-se depois da vigência da lei escrita; (2) se com a revogação da lei
escrita há repristinação da lei consuetudinária. Na dinâmica social, o costume pode
se formar posteriormente à lei escrita e esta cair em desuso. Se a lei consuetudinária
mantiver a sua eficácia apesar do advento da lei escrita, esta perde o vigor. Neste
caso, diz-se que a lei escrita “não pegou”. O legislador apontou uma direção e
o povo seguiu outra.
No Brasil, do Império à primeira República, vigorava a
seguinte norma consuetudinária: “Em todo contrato oneroso celebrado com a
administração pública as pessoas físicas ou jurídicas de direito privado devem
pagar propina ao agente estatal. O valor da propina será combinado entre as
partes e deverá ser proporcional à vantagem econômica que do contrato resultar às referidas
pessoas”. Essa lei não escrita foi revogada pelo código penal de 1940 que
definiu os crimes contra a administração pública incluindo, entre outros, a
corrupção ativa e passiva. A partir de 1955, a lei penal escrita começou
a perder eficácia. A construção de Brasília foi o marco inicial da derrogação
da lei penal. Inaugurou-se o propinoduto.
A antiga norma consuetudinária foi repristinada. A tradição exibiu sua força: propina
é instituição nacional. Com o aumento do volume dos negócios entre particulares
e administração pública cresceu o pagamento de propinas. As construções da
ponte Rio-Niterói, da estrada Transamazônica, das usinas de Itaipu e Angra,
foram os propinodutos do governo
militar. Diversos propinodutos foram
construídos no governo civil (Sarney, Collor, Cardoso, Silva). Havia um
ministro do governo Geisel que recebeu dos franceses a alcunha de “ministro dos
dez por cento”. Certo ministro “imexível” do governo Collor cobrava vinte ou
trinta por cento. Obeso ministro do governo Cardoso cobrava o mesmo percentual.
A “taxa de corretagem” subiu às alturas estratosféricas na venda do patrimônio da
União. Propinas rolam no âmbito dos poderes Executivo e Judiciário a título de
“taxa de urgência” (para acelerar providências) e “taxa de permanência” (para
retardar ou deixar de praticar ato de ofício).
A lei consuetudinária, tacitamente aceita pela
sociedade brasileira e que, graças ao potencial da inércia, vigora há mais de
50 anos, é aquela mesma que vigorava antes de 1940: negócio de pessoa física ou
de pessoa jurídica de direito privado celebrado com a administração pública
inclui propina. A compra, a venda, a obra ou o serviço contratado terá o seu
custo acrescido em razão da propina. O erário paga a conta. Os empreiteiros
seguem a regra do jogo. Se eles desobedecerem, perdem o negócio e deixam de
faturar, o que acarreta conseqüências econômicas e sociais indesejáveis.
Veja-se este fato emblemático: em Curitiba (capital da República Fascista do
Paraná, na feliz expressão do deputado federal/RJ Wadih Damous) o empreiteiro
que construiu a “Rua 24 Horas” negou-se a pagar propina que lhe foi exigida
pelo diretor da companhia municipal de urbanismo no momento de receber a
parcela final do preço contratado. O trabalho fora prestado a contento. A obra
fora entregue e inaugurada em ocasião festiva. Apesar disto, o diretor da
companhia alegou que a obra não fora concluída e não autorizou o pagamento da
parcela final. O empreiteiro promoveu ação judicial e venceu. Depois disto, o empreiteiro
nunca mais conseguiu contrato algum com o Município e com o Estado. Isto
acontece a quem se nega a cumprir a lei consuetudinária instituidora da
propina.
Em termos de justiça
– e não de estrita legalidade utilizada por oportunismo politiqueiro – os
empreiteiros do processo apelidado de “Lava Jato” não merecem punição alguma,
eis que, ao pagarem propina, seguiram as regras então vigentes. Merecem punição
se praticaram outros crimes, mas não por pagarem propina. Estado e Sociedade
consentiram tacitamente com a longa vigência dessas regras. Empreiteiros e
agentes públicos confiaram nesse consentimento estatal e social. Mudar as
regras sem o conhecimento dos destinatários constitui conduta censurável,
mormente se a mudança for motivada por partidarismo político. Os tribunais
anulam procedimentos na esfera criminal quando o flagrante da prisão foi
astuciosamente preparado pela policia. “Não há crime quando a preparação do
flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação” (súmula 145 do Supremo
Tribunal Federal). A liberdade de locomoção do indivíduo é manipulada pela
autoridade estatal que o induz a cair na armadilha. No caso dos empreiteiros, a
situação é semelhante. Com a condescendência da nação, o governo permitiu a
vigência da lei consuetudinária por mais de 50 anos e agora pretende punir quem
a cumpriu. Se prevalecer a traiçoeira conduta da autoridade, deverão ser
investigadas e processadas todas as pessoas que celebraram contratos com a
administração pública municipal, estadual e federal durante esse longo período
republicano. Nesta hipótese, a autoridade cometerá crime de prevaricação se indevidamente
deixar de incluir no devido processo qualquer dessas pessoas (CP 319).
Ao pagar propina, os empreiteiros obedeceram à norma
consuetudinária que se sobrepôs, no tempo e no espaço, à norma escrita. Doação para
campanha eleitoral não se confunde com propina; são conceitos distintos com
distintos fundamentos. Os políticos e partidos que recebem doações para
campanhas eleitorais prestam contas à Justiça Eleitoral, na forma da lei
escrita. Os agentes públicos recebem propinas na forma da lei consuetudinária.
Cabe ao Congresso Nacional, com base na evidência histórica
e no inciso XVII, do artigo 21, da Constituição da República: (1) votar lei de
anistia abrangendo pagadores e recebedores de propinas na celebração de
contratos com a administração pública no período de 1955 a 2015; (2) revigorar
os dispositivos do código penal na área das licitações e contratos públicos e
declarar expressamente a extinção da norma consuetudinária que autoriza a
propina; (3) proibir qualquer reajuste no preço da obra ou do serviço após a
aprovação da proposta nas licitações públicas. Essa proibição acabará com a
fraude à igualdade dos concorrentes (atualmente, propõe-se o preço X para
vencer a licitação e depois de assinado o contrato, reajusta-se para o dobro).
A proibição contribuirá para dificultar a formação de cartel, conluio entre as
empreiteiras que repartem entre si o objeto da licitação.
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