quinta-feira, 3 de setembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XXI

A 3ª Vara de Família estava um caos. O novo juiz ficou desesperado ao assumir a vara e adoeceu. Antes dele, um juiz ali derramara o seu pranto, sentindo-se impotente em face do volume de trabalho. Eu completara tempo de serviço para aposentadoria voluntária. Apesar disso, aceitei o desafio; era o meu canto do cisne. Permutei. Radiantes, o colega e a esposa pareciam nem acreditar na permuta quando os encontrei na garagem do fórum. A 38ª Vara Criminal estava em dia e com pouco trabalho; trocá-la pela 3ª Vara de Família era trocar o paraíso pelo inferno.

Na vara de família, um salão destinava-se ao cartório, uma sala espaçosa às audiências, uma sala grande ao gabinete, uma sala pequena aos dois promotores de justiça (curadores de família). Determinei a retirada dos símbolos religiosos das salas. O Brasil é república laica, sem religião oficial. Vigora a liberdade religiosa. A população brasileira se compõe de cristãos, espíritas, judeus, muçulmanos, budistas, hinduístas e dos que se dizem ateus. Na república brasileira, Igreja e Estado são domínios distintos, o que não obsta a presença de sacerdotes em cerimônias cívicas. Desde o segundo império, defensores da neutralidade confessional do Estado proclamavam: “igrejas livres no Estado livre”. A imigração de europeus protestantes para substituir a mão de obra escrava reforçava a base social e econômica do pleito por liberdade religiosa. A rebeldia do bispo de Olinda, logo apoiado pelos bispos do Pará, Bahia e Mariana, contra orientação do governo imperial, influiu bem menos na queda da monarquia do que a persistência do governo na aliança com a igreja católica. A carolice da princesa Isabel não indicava mudança de rumo, caso ela sucedesse Pedro II no trono brasileiro. A instauração da república laica foi conseqüência.

Na sala que servia de gabinete, deparei-me com pilhas e mais pilhas de processos pelo chão, nas poltronas e mesas. Eu despachava em pé diante daquela mixórdia. Havia uma secretária que agendava as audiências e controlava a pauta. Constatei pauta saturada. Suspendi os trabalhos. Instruí os serventuários a classificar todos os processos em pilhas homogêneas (simples assinatura, petições iniciais, despachos interlocutórios, sentenças e recebimento de recursos). Dispensei a secretária da tarefa de marcar audiência; eu mesmo passei a designar as audiências e a controlar a pauta. Reservei a sexta-feira só para audiências de processos consensuais, de 10 em 10 minutos; os demais dias da semana, para audiências de processos contenciosos, de 30 em 30 minutos. Separei os escreventes em dois grupos: um para os processos de numeração par e outro para os de numeração impar. Os processos pares eram despachados às 2ª e 4ª feiras e os ímpares às 3ª e 5ª feiras. A sobra era despachada na sexta-feira. Instituí duas secretarias: a do gabinete e a das audiências. As sentenças eram prolatadas na audiência. Havia ações que eu sentenciava em casa. A secretária do gabinete datilografava as sentenças que eu trazia de casa, atendia ao cartório, aos advogados e às chamadas telefônicas enquanto eu estivesse em audiência. Baixei portaria com as novas regras, inclusive estabelecendo horário para atender aos advogados e evitar interrupções.

Nessa vara de família havia uma serventuária que saía sorridente do gabinete após despachar comigo. Certo dia, escrivão presente no gabinete, entrou a dita serventuária e saiu saltitante. O escrivão informou: “Excelência, não é serventuária; é serventuário”. “Como?” “Ele se veste e se comporta assim, mas é homem”. Aí eu entendi a alegria: eu o tratava de senhora. Disse ao escrivão que o mandasse à minha presença com documentos de identidade e de nomeação para o cargo. Ele chegou e exibiu os documentos (refiro-me aos papéis). Disse-lhe para se vestir como homem quando comparecesse ao trabalho. Ele desobedeceu. Afastei-o do cartório e o coloquei à disposição da Corregedoria. A comunidade dos homossexuais se manifestou por todos os meios de comunicação. O ato administrativo repercutiu internacionalmente. Imprensa estrangeira reportou o caso. Certo deputado estadual, advogado militante, esteve em meu gabinete intercedendo a favor do serventuário. Perguntei-lhe se vira algum travesti celebrando missa, atendendo ao público em estabelecimento bancário ou na tribuna do parlamento. Homossexual sim, aos cachos; travesti, não. Assim há de ser no Judiciário.

Os recursos contra o ato administrativo foram infrutíferos. Independentemente da opção sexual de cada indivíduo, os servidores da justiça devem se apresentar decentemente vestidos, em sintonia com os seus respectivos sexos, sem contrafação da identidade natural e jurídica. A aparência não está vinculada necessariamente à opção sexual. Há lugares em que o decoro exige aparência segundo o sexo de cada um. Homossexual ou heterossexual, o indivíduo não pode se apresentar como bem entender em todos os lugares. Na sociedade há regras éticas e jurídicas, convenções, usos e costumes que devem ser respeitados. Há normas de decoro nos três poderes da república.

No corredor do fórum, encontro o desembargador Dilson Navarro. Abrindo os braços, ele suplica: “Lima, tire o pé do acelerador; a nossa câmara não faz outra coisa senão julgar recursos da 3ª Vara de Família”. Fazia pândega. Por breve tempo, fomos contemporâneos no primeiro grau. Depois, ele foi promovido sucessivamente para o tribunal de alçada e tribunal de justiça. Nós dois estávamos no bar dos magistrados quando à nossa mesa chegou um colega cuja conversa era entediante. Disfarcei e saí primeiro. Deixei o Dilson “fazer sala” ao colega. No corredor, ouço passos apressados às minhas costas. Era o Dilson. Ao emparelhar comigo, formou uma cruz com os braços (sinal de banana) e disse: “Olhe aqui que eu fico lá”. Rimos à larga. Ele me solicitou e eu concordei em ser testemunha do seu testamento. Quando voltávamos do cartório ele comenta: “Estou me sentindo estranho com isso de dispor para depois da minha morte.”

No térreo do fórum ficava o bar; ao lado do bar, a associação nacional dos magistrados; em frente, a associação estadual. Daí os constantes encontros de juízes no mesmo corredor que, ademais, era caminho para algumas varas e para o tribunal de alçada cível. A menção ao bar dos magistrados em episódios aqui relatados não deve induzir a erro. A freqüência ao bar, minha e de alguns colegas, era muito baixa, mormente depois da fusão dos dois Estados. Às vezes passava mais de ano sem que eu lá comparecesse.

Próximo à porta do bar estava um grupo de magistrados. Um deles disse: “Lima, eu conheço uma vizinha tua que mora no apartamento acima do teu. Ela me contou que você costuma trabalhar até de madrugada; ela ouve o som da tua máquina de escrever.” Um colega de concurso incomodou-se com o preito. Raivoso, ataca: “Você é burro; trabalha assim porque é burro!” Sem nada responder, entrei no bar para não arrebentar os cornos daquele infeliz. O sujeito era carreirista e quiçá portador de disfunção da vesícula. Viu em mim um concorrente mais forte no critério de merecimento para promoção na carreira. Mal sabia ele que eu só esperava o fim da missão na vara de família para me aposentar voluntariamente. Ademais, promoção por merecimento não é para quem trabalha e sim para quem cultiva boas relações sociais. A dedicação ao trabalho era característica minha desprovida de aspiração a prêmio ou progressão na carreira. Ao contrário dele, eu jamais bajulei desembargador ou pessoa alguma. A minha única promoção foi coletiva e por antiguidade. Pesou na indignação dele, provavelmente, a espontânea admiração à minha pessoa manifestada pelos colegas.

Em menos de um ano, a 3ª Vara de Família estava com volume de trabalho bem menor. Cedi a sala do meu gabinete aos promotores e passei para a sala pequena. Os dois trabalhavam no mesmo horário e eu não necessitava mais da sala grande. A promotora e o promotor foram de excepcional ajuda. Naquela tarefa hercúlea, os serventuários se engajaram e foram exemplares. O cartório passou a funcionar qual mecanismo bem azeitado. Ao cabo de um ano havia poucos processos para despacho diário.

Nota destoante foi dada pela seção do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, ao protestar contra a portaria que fixava horário para atender aos advogados. Comentário do advogado Celso Fontenelle (eleito presidente da entidade tempos depois) ao lado da filha Carmen, também advogada, à porta do meu gabinete: “Parece que eles não entendem que Vossa Excelência quer apenas trabalhar”. A OAB/RJ recusou-se a cooperar naquela fase difícil, quando a 3ª Vara de Família estava um caos. Colocou o interesse corporativo acima do interesse público. Entrou com representação contra mim no Conselho da Magistratura (com nova composição) sem lograr êxito. Infelizmente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento ao recurso da OAB; prestigiou o corporativismo em detrimento da necessidade pública.

Esse caso gerou novo tratamento legal à matéria. O Congresso Nacional baixou novo estatuto da OAB, autorizando os advogados a se dirigirem aos gabinetes de trabalho dos magistrados “independentemente de horário previamente marcado” (lei 8.906/1994, art.7º, inciso VIII). A lei anterior dizia: “independentemente de audiência previamente marcada” (lei 4.215/1963, art.89, inciso VIII). Quando o STJ lançou a malfadada decisão, nós (juiz, promotores de justiça e serventuários) tínhamos colocado tudo em ordem na vara de família. Missão cumprida. Pedi aposentadoria, cujo decreto foi publicado em janeiro de 1990. Fui tentado a permanecer na ativa para demonstrar a inconstitucionalidade da decisão do STJ. Resisti à tentação. A nova geração de juízes que o fizesse. Plagiando Dante Alighieri: cada povo tem o judiciário que merece.

O titulo de desembargador nunca me atraiu. Entendo-o anacrônico, medieval. Prefiro o título de juiz. O endeusado Salomão, rei dos hebreus, almejava ser um bom juiz. Os membros da Suprema Corte dos EUA recebem o título de juiz, em consonância com o regime republicano. Ministro é título do regime monárquico, do auxiliar do monarca. Esse título coloca os juízes dos tribunais superiores brasileiros em posição subalterna, pelo menos, em nível semântico e vulgar. Tratado como ministro, o juiz do supremo tribunal é visto pelo povo como auxiliar subordinado ao presidente da república. Enseja a desconfiança de parcialidade e favorecimento ao governo nas causas ali decididas. O Brasil é republicano na letra e monárquico no espírito. A imagem da corte imperial está nas escolas de samba, na música, nos bares, padarias, lojas, avenidas, monumentos, nos costumes palacianos e no trato dos serviçais. Ministros do STF trocaram a toga por um cargo de ministro do Executivo, auxiliar do temporário monarca, demissível ad nutum.

Nenhum comentário: