sexta-feira, 28 de agosto de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XX

No gabinete da 35ª Vara Criminal entra um promotor auxiliar do procurador-geral da justiça portando nas mãos petição e documentos para despacho. Estranhei aquele procedimento, pois havia promotor de justiça lotado na vara criminal. Todavia, como o Ministério Público é uno e indivisível, despachei a petição. Tratava-se de denúncia criminal contra um casal de professores: o varão, acusado de, na sua casa, praticar atos libidinosos com alunas adolescentes; a esposa, acusada de cumplicidade. As vítimas eram colegiais representadas pelos pais que se declaravam pobres, o que autorizava a propositura da ação penal pelo Ministério Público.

Interroguei os acusados. Negaram intenção libidinosa. Disseram que faziam pesquisa científica para verificar a sensibilidade das adolescentes através de toques nos bicos dos seios. Ao tomar os depoimentos dos pais das alunas, verifiquei que nenhum deles era pobre, mesmo no conceito jurídico de pobreza. Havia proprietários de imóveis, de casas de comércio, de padarias; todos desfrutavam de bom padrão econômico e podiam pagar honorários de advogado e custas processuais. Disseram que na procuradoria-geral da justiça foram induzidos a se declarar pobres pelos promotores que lá estavam; foi-lhes dito que podiam dispensar a contratação de advogados porque a ação penal seria proposta pelo Ministério Público sem qualquer ônus. A conduta do procurador-geral da justiça e dos seus auxiliares descrita pelos pais das adolescentes tipificava ilícito penal e exigia apuração de responsabilidade. Os pais das alunas mencionaram os nomes incompletos dos promotores que os atenderam. Oficiei à procuradoria-geral da justiça para que me informasse os nomes completos. Não houve resposta. Requisitei instauração de inquérito policial contra o procurador-geral da justiça e seus auxiliares. Dei o nome completo do primeiro. Por desconhecer os nomes completos dos outros, empreguei a expressão de uso corrente “de tal” após os prenomes.

Instaurado o inquérito policial, o delegado remeteu os autos à procuradoria-geral da justiça que lá mesmo os arquivou. O extenso despacho de arquivamento, verdadeira catilinária contra a minha pessoa, foi publicado no diário oficial. Segundo a lei processual em vigor, a competência para arquivar inquérito era do Judiciário e não do Executivo. Como se tal exorbitância não bastasse, o procurador-geral representou contra mim junto ao Conselho da Magistratura. A proximidade do procurador-geral com os desembargadores nas sessões plenárias do tribunal e no conselho da magistratura é muito grande, propícia a um clima de camaradagem que, certamente, influiu na decisão. Na minha defesa, sustentei o despropósito da presença de um órgão do Executivo na composição de um órgão do Judiciário de natureza administrativa e disciplinar. Na composição do órgão disciplinar do Ministério Público não havia magistrados. Por que membros daquela instituição deviam compor órgãos disciplinares da magistratura? Cuidava-se de intromissão contrária ao princípio constitucional da separação dos poderes. Lei promulgada posteriormente (1982) condicionou a presença do procurador à natureza do caso e sem direito a voto.

O Conselho da Magistratura não encontrou ilicitude alguma na minha conduta. A requisição do inquérito sintonizava-se com o Código de Processo Penal, principalmente no que tange ao dever do juiz de mandar apurar atos ilícitos que surgem no bojo de um processo. A minha decisão harmonizava-se com o princípio da igualdade de todos perante a lei. Apesar disto, os desembargadores precisavam agradar o colega da procuradoria que atuava no conselho. Então, como o lobo da fábula de Esopo, os desembargadores agarraram-se à linguagem, adjetivando-a de “rebarbativa”, como se eu, antes de me valer do “de tal”, não houvesse tentado obter o nome completo dos promotores. Quanto ao abusivo arquivamento e à conduta dos promotores, aquém da relevância dos seus cargos, não houve a mais leve censura dos desembargadores.

O Conselho da Magistratura aplicou pena de advertência, sustentando que a expressão “de tal” tipificava linguagem rebarbativa; portanto, falta disciplinar. Como sempre defendi a tese de que juiz é agente político e não agente administrativo; que o elenco de penalidades próprio do funcionalismo público não se aplica ao juiz; que tendo em vista a alta qualificação moral e intelectual que se exige do juiz, a este não cabe outra penalidade senão a de demissão do cargo; que juiz advertido, censurado ou suspenso não merece vestir a toga; resolvi, tão logo completasse o tempo de serviço, requerer aposentadoria, embora pudesse permanecer na carreira por 20 anos (eu estava com 50 anos e a aposentadoria compulsória ocorre aos 70 anos de idade). A decisão de me aposentar guardava coerência com os meus princípios. Atenuava também o engodo da fusão. Eu prestara concurso para a magistratura de uma cidade-estado (GB) e acabei compulsoriamente na magistratura de um Estado dividido em municípios (RJ).

Além da representação contra a minha pessoa, o procurador-geral da justiça designou novo promotor para funcionar perante a 35ª Vara Criminal. A animosidade do novo promotor era epidérmica. Pau mandado para conturbar o ambiente e dificultar o meu trabalho. Deu-se mal. Certo dia, aquele promotor adentra o gabinete e se dirige a mim de modo injurioso. Levantei-me, agarrei-o pelas duas golas do paletó e o encostei contra a parede. Evitei socá-lo quando ele disse: “se bater, vou reclamar no tribunal”. Num lampejo, vislumbrei a armação. Abri a porta ao lado, empurrei-o para fora e acertei-lhe forte ponta-pé nos fundilhos (chute que no caratê denominamos mae-gueri). Ele se desequilibrou e por pouco não caiu. Decorridos poucos minutos, escuto um estrondo na porta do gabinete. Fui verificar. Não havia pessoa alguma e a porta estava danificada. Depois desse episódio, o promotor comparecia ao trabalho acompanhado de psicóloga.

Nas ações penais privadas, o dito promotor passou a exigir que o queixoso qualificasse as testemunhas. A exigência conformava-se ao Código de Processo Penal embora, na prática, a norma quase não fosse observada. O descumprimento era tolerado quando as testemunhas estivessem qualificadas em documento que instruísse a queixa. Como o pedido do promotor ajustava-se à lei, eu o deferia e determinava que o queixoso emendasse a petição inicial. Fundado no princípio de isonomia, passei a exigir que o promotor também fizesse o mesmo nas ações penais públicas: qualificar as testemunhas em cumprimento à norma processual por ele invocada. Em cotas afrontosas, o promotor se recusava. Eu indeferia a denúncia. Se o réu estivesse preso, eu mandava soltar. Ele insistia na ilegalidade. Indeferi todas as denúncias. Ele recorreu aos tribunais.

Os juízes do tribunal de alçada criminal representaram contra mim. Foram duas dezenas de representações. O Conselho da Magistratura, de composição renovada, rejeitou todas. Não havia abuso de poder e nem ilegalidade, salvo da parte do promotor. Câmaras do tribunal de alçada e uma câmara do tribunal de justiça tentaram me constranger, cassando as minhas decisões e determinando que eu recebesse as denúncias. Mandei os autos do processo de volta às câmaras, fundado na independência do juiz e no poder jurisdicional. Solicitei que a denúncia fosse recebida naquelas câmaras porque a minha decisão já tinha sido lançada. Quando discorda da sentença do juiz, o tribunal deve lançar outra em substituição e não exigir que o juiz de primeiro grau o faça. Esse tipo de subordinação não existe. As câmaras acataram o meu entendimento, receberam as denúncias e só então devolveram os autos à vara criminal para prosseguimento.

Juiz do tribunal de alçada, meu colega de magistério, Weber Martins entra no gabinete e pede que eu reveja a minha posição jurídica: “Alguém aqui nesta vara tem de ser equilibrado” disse ele. “Que o seja o promotor” respondi. “Quer dizer que nós do tribunal é que teremos de receber as denúncias apresentadas nesta vara?” Ele questionou com dissabor. “Sim, enquanto vocês prestigiarem a ilegalidade do promotor”, respondi com firmeza. O colega viu que perdera a viagem e que eu não me perturbava com as insinuações a respeito da minha higidez mental. Os tribunais gostam de juízes sem espinha e carreiristas; muito apreciam colocar os juízes em posição subalterna; têm reservas em relação aos juízes francos e independentes.

Com apoio do tribunal de justiça, o procurador-geral da justiça investe novamente contra a minha pessoa, agora requerendo correição no cartório da vara criminal, a fim de obter dados para outra representação. Designados os membros da comissão de correição, o magistrado que a presidia não se apresentou a mim, nem ao cartório. Somente a representante da procuradoria-geral da justiça compareceu ao cartório por vários dias. Vasculhou, vasculhou, vasculhou e só encontrou alta produtividade do juiz, serviço em dia, processos com seus trâmites regulares, boa e eficiente administração.

A poeira ainda não assentara quando recebo, no gabinete da 35ª Vara Criminal, a visita de Sílvio Teixeira, colega de toga e de concurso. Veio propor permuta. Notei que ele não estava muito à vontade; a sua expressão corporal revelava desconforto. Certamente, cumpria missão a pedido de membros dos tribunais. A permuta aliviaria o trabalho das câmaras criminais que não mais teriam de receber as denúncias por mim indeferidas. A intransigência tem limite na razoabilidade. Cuidava-se de norma processual que tinha contra si a praxe. Se o colega queria ceder à praxe em detrimento da regra posta, que o fizesse. Se lhe parecia de pouca importância o tratamento isonômico entre o postulante privado e o postulante público, que o ignorasse. Aceitei a proposta e assumi a 38ª Vara Criminal. O promotor de justiça ali em exercício era farinha de outro saco. Educado, culto, exercia a sua relevante função pública com dignidade. Ensejou ambiente leve e sadio. As petições bem feitas e em linguagem escorreita atendiam a todos os requisitos legais. As cotas eram respeitosas e pertinentes.

Em torno da mesma mesa, no bar dos magistrados, Geraldo Magela, colega de toga e de magistério, com quem eu trabalhara na 6ª Vara de Família da Capital, disse-me certa vez: “Lima, você é um juiz maldito”. Eu conhecia a expressão “poeta maldito”, aplicada a quem fosse amaldiçoado por exercer influência nefasta ou ridicularizar pessoas, costumes e instituições nos seus escritos. Percebendo o impacto que a expressão me causara, Magela explicou: “Maldito no sentido de ter atitudes de independência e franqueza, o que desagrada ao tribunal”. Em outras palavras, eu era amaldiçoado por ser insubmisso à vassalagem e por falar diretamente o que pensava. Em outra ocasião, José Aloysio, colega de toga e de concurso, aconselhou-me: “Lima, você não precisa bater de frente; com suavidade você obterá melhor resultado.” Lembrei-me da arte suave dos orientais, o tai-chi-chuam (China) e o jiu-jitsu (Japão). Acontece que eu praticava o kara-te-do (Japão), tipo traumático e trauliteiro da arte marcial.

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