sexta-feira, 11 de setembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XXII

Colegas do antigo Estado da Guanabara (GB) estavam se aposentando como juízes de direito nos fins da década 1981/1990. No prédio do tribunal de justiça encontro dois juízes auxiliares da presidência que, anos mais tarde, chefiaram o Poder Judiciário. O mais novo deles (oriundo do antigo Estado do Rio de Janeiro) comenta em tom grave o meu pedido de aposentadoria: “Os bons juízes estão indo embora; só vai ficar o rebotalho”. O mais velho (oriundo da GB) antes de pleitear promoção a desembargador, solicitou minha opinião, sensível ao fato de estar no serviço administrativo e a maioria dos juízes na judicatura. Esse escrúpulo tinha cabimento ao tempo da GB, quando os juízes da turma posterior só eram promovidos após a promoção de todos os juízes da turma anterior. Dei-lhe conciso parecer: se você pretende progredir na carreira sem aguardar a antiguidade, o momento é este, pois mudando a presidência, mudam os ventos. Dei a mesma resposta a outro colega (trabalhamos juntos na 1ª Vara Cível) que me fez consulta idêntica. Estabelecido o novo costume, as vagas de desembargador preenchidas por juízes auxiliares dos órgãos de direção do tribunal foram brejeiramente apelidadas de quinto administrativo, alusão ao quinto constitucional (l/5 das vagas) destinado ao ministério público e à advocacia.

Na GB, os juízes se dedicavam à judicatura sem desvio de função. Ao juiz cabia prestar tutela jurisdicional. Os serviços de auxílio à direção do tribunal eram prestados por funcionários qualificados. Após a fusão dos dois Estados, a regra mudou. Ao aceitar designação para auxiliar órgãos de direção do tribunal, os juízes passam de agentes políticos a agentes administrativos; trocam a independência decorrente do poder jurisdicional pela posição subalterna de funcionário sob ordens de autoridade superior. Dentro das novas regras após a mencionada fusão (1975) o apadrinhado precede os demais juízes na promoção por merecimento. O candidato busca apadrinhamento junto aos desembargadores. Quem discordar das regras do jogo aguarda a promoção por antiguidade (até para não ser denegrido na disputa da vaga por “merecimento”). Com o advento da Constituição de 1988, essas regras ficaram com o seu campo de incidência reduzido. Concorrem à promoção por merecimento somente os juízes mais antigos (primeira quinta parte da lista de antiguidade). Essa nova regra foi proposta por mim à Assembléia Nacional Constituinte (1987/1988).

Na primeira década do século XXI (2001/2010) houve denúncias de fraudes nos concursos para juiz de direito do Estado do Rio de Janeiro. Os escândalos foram estampados nas páginas dos jornais e chegaram ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Os escândalos tornaram-se perfume na alquimia do CNJ. Como era esperado, o CNJ extrapola a sua competência (motivo de protesto do ministro Marco Aurélio em sessão plenária do STF, ao comentar o controle estatístico da produtividade deste tribunal por aquele órgão burocrático). O CNJ arroga-se função normativa e interfere abusivamente na administração da justiça estadual, afrontando o princípio federativo. O legislador constituinte de 1988, antevendo isto, rejeitou a proposta de criação desse Conselho, mas o legislador ordinário o adotou posteriormente, mediante emenda à Constituição. Cuida-se de emenda inconstitucional, pois o legislador ordinário não pode alterar a estrutura dos poderes criada pelo legislador constituinte, sob pena de ferir o princípio da separação dos poderes, princípio este que inclui a independência de cada poder e a harmonia entre eles.

Há inúmeras emendas à Constituição inconstitucionais, votadas e promulgadas pelo legislador ordinário. Esse abuso começou no governo Cardoso (1995/2002) com o propósito de incluir no texto constitucional normas rejeitadas pela Assembléia Nacional Constituinte. O legislador constituinte, lídimo representante da vontade nacional para elaborar a Constituição, tem sido desrespeitado pelo legislador ordinário. Sem escrúpulo algum, o legislador ordinário burla o processo legislativo ao lançar nas emendas à Constituição, normas próprias de lei complementar e de lei ordinária que normalmente exigiriam a intervenção do presidente da república (sanção, promulgação e publicação). Há dezenas de emendas que contêm, além do artigo introduzido no texto constitucional, uma série de artigos que o regulamentam. Escapa-se ao nível infraconstitucional, próprio da regulamentação (lei complementar, lei ordinária, decreto do presidente da república). Lançando aquelas normas no corpo da emenda à Constituição, o legislador as retira da apreciação do chefe de governo.

O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, dizia Montesquieu no clássico “O Espírito das Leis”, alicerçado nas tendências da natureza humana. A decisão judicial resulta do poder do Estado na esfera jurisdicional. Daí sua natureza política, que consiste na prudente escolha entre alternativas permitidas pela ordem jurídica. Não se confunde com política partidária, politicagem ou arbitrariedade.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também extrapola a competência ao se imiscuir em matéria de fato solucionada na instância ordinária. Arroga-se, por exemplo, o direito de modificar valores de indenização por dano moral fixados pelos tribunais ordinários, como não se cuidasse de aferição subjetiva. Compete ao STJ apreciar matéria de direito, na qual não se inclui o mencionado arbitramento. Sem fundamento científico, lógico ou jurídico, o STJ coloca a sua capacidade de avaliação dos fatos acima da capacidade dos juízes e tribunais mais próximos da realidade social das diferentes regiões do país.

Em recente julgamento (2009) o STF rejeitou, por 5 votos a 4, denúncia oferecida pelo Procurador-Geral da República contra ex-ministro da fazenda. O crime era de violação do sigilo bancário de um caseiro. A denúncia preenchia os requisitos legais, apoiada em substancioso inquérito realizado pela polícia federal. A hipótese era de recebimento da denúncia e instauração da ação penal, como bem salientou o ministro Ayres Britto. O réu teria ensejo de apresentar defesa e produzir provas no curso do processo. A escassa maioria seguiu o voto do ministro Gilmar Mendes: o acusado não participara do crime; não havia justa causa para a ação penal. O mérito da pretensão punitiva do Estado foi apreciado antes da instauração do processo, o que é insólito, no mínimo.

Juiz do extinto tribunal de alçada cível do Estado do Rio de Janeiro apresentou-se embriagado à sessão de julgamento. Soube-se que o juiz era alcoólatra e costumava apresentar-se embriagado. Naquele dia, causou tumulto maior do que o costumeiro e constrangeu as pessoas presentes à sessão. Levado o caso ao Conselho da Magistratura, a pena aplicada foi severa: o bêbado foi promovido a desembargador. Cabisbaixo, envergonhado, o decoro abandonou o tribunal pela porta dos fundos. Austeridade, compostura, há de ser conduta efetiva e não letra morta no código de ética.
O irmão do juiz alcoólatra era desembargador oriundo do antigo Estado do Rio de Janeiro. Comentava-se que ele também gostava da malvada pinga. Esse desembargador recebeu ação penal proposta por um réu contra a minha pessoa. Como eu pertencera ao antigo Estado da Guanabara, isto proporcionou grande prazer ao desembargador.
O queixoso respondia a processo por mim presidido na 38ª Vara Criminal. Com ele foram apreendidas arma de fogo (portava-a ilegalmente) e carteira funcional expedida por deputado estadual. Solicitei informações ao presidente da assembléia legislativa. A resposta colocava em dúvida a autenticidade da carteira. Requisitei, então, à autoridade policial, na forma do código de processo, instauração de inquérito a fim de apurar se ocorrera falsidade documental e/ou uso de documento falso.
Alegando que o despacho lhe ofendia a honra, o réu apresenta queixa-crime contra mim, juiz prolator da decisão. O Ministério Público (que me considerava inimigo) apoiou a queixa apesar da desfaçatez do réu. O fiscal da lei abandonou o direito para externar sentimento corporativo. O desembargador (que portava arma, metido a valente, irmão do juiz alcoólatra) recebeu a queixa-crime. Deixei de impetrar habeas corpus só para ver a extensão daquela palhaçada. Certamente, havia tramóia entre aquelas pessoas. Surpreendi o queixoso no gabinete do desembargador em clima de intimidade.
O despacho qualificado de ofensivo era do tipo padrão, linguagem usual, solicitando a instauração do inquérito com base nas peças extraídas do processo da ação penal pública que apontavam indícios de falsidade documental. O réu tentava escapar do processo da ação penal pública forçando a minha retratação. O desembargador insistia para eu me retratar. Confirmei todos os termos do meu despacho, letra por letra, palavra por palavra, frase por frase. O desembargador ficou aborrecido. A tentativa de me intimidar falhara. O queixoso não apresentou alegações finais. O processo foi extinto. Ficou insatisfeita a minha curiosidade sobre qual seria a decisão da Câmara Criminal se o mérito da ação fosse apreciado.

Aceitei o convite formulado pelo juiz titular da 5ª Vara Cível, João Uchoa Cavalcanti, para lecionar Teoria Geral do Processo, na faculdade Estácio de Sá, que ele fundara em 1970. Depois, para preencher vacância, passei a lecionar Lógica, Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional. Obtive registro de professor titular de Direito Constitucional junto ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). Lecionei essas disciplinas até me demitir para freqüentar o mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro cujas aulas eram matutinas (1979/1981). Conquistei o grau de mestre em ciências jurídicas no biênio, porém, não voltei a lecionar, tendo em vista o volume de trabalho no fórum. Aliás, aos magistrados devia ser proibido o magistério enquanto não se resolvesse a lentidão na prestação da tutela jurisdicional e retrocedesse o crescente acúmulo de processos.

Colegas me informaram que havia lei da GB equiparando o título de juiz de direito ao título de doutor para fins acadêmicos. Não me dei ao trabalho de conferir. O registro no MEC já equiparara. Apesar disso, resolvi fazer o mestrado. Valeu a experiência de voltar aos bancos escolares ao lado de estudantes mais jovens. As lições de didática foram de grande auxílio no magistério, ao qual retornei depois da aposentadoria. A dissertação de mestrado recebeu o título “Poder Constituinte e Constituição”, publicada em forma de livro pela editora que funcionava nas Faculdades Integradas Bennett (Plurarte,1983) onde lecionei. O desembargador Fernando Whitaker da Cunha, professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro da banca examinadora, disse-me depois da argüição: “Mais do que uma dissertação de mestrado, o teu trabalho é uma tese de doutorado”.

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