sexta-feira, 18 de setembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO – XXIII

Nas décadas finais do século XX e na primeira do século XXI ocorreram notáveis mudanças. A conquista do espaço sideral, os problemas comuns em escala planetária e as comunicações sem fronteiras pela rede de computadores e satélites artificiais despertaram consciência cosmopolita. A Física teoriza sobre limite espacial do universo, matéria escura, plasma universal e a pluralidade de dimensões em nível subatômico. O acaso e o caos entram no terreno da especulação científica e filosófica. Diversifica-se a aplicação do raio laser, das fibras óticas e do silício (chips eletrônicos, semicondutores em transistores, cristais para relógios de precisão, aplicação em metal e vidros). Parcela da humanidade percebe que (i) mananciais podem secar (ii) a poluição afeta o clima e a saúde (iii) o aquecimento global provoca degelo nos pólos, a elevação do nível do mar e fenômenos atmosféricos. O código genético é decifrado. A engenharia genética se desenvolve. Há clonagem de animais irracionais. Teme-se a clonagem de animais racionais. Aparelhos de sondagem interna do organismo humano e técnicas cirúrgicas são inventados e aperfeiçoados. Floresce a bioética na disciplina do trabalho científico.

A partir da cirurgia pioneira do médico Christian Barnard, na África do Sul (1960) o transplante se diversificou. No Brasil, destacaram-se o professor Zerbini (Euryclides de Jesus) no transplante de órgãos e o professor Pitanguy (Ivo) na cirurgia plástica. A igreja se opõe ao divórcio dos cônjuges, aos métodos anticoncepcionais, à união homossexual e à legalização do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias. Prossegue a busca da cura do câncer e da AIDS enquanto aumenta o número de suas vítimas no mundo. Laboratórios lançam no mercado, drogas com danosos efeitos colaterais. Povos da América Latina e da África necessitam de assistência médica e hospitalar, de remédios, alimentos, moradia e escolas. Países europeus toleram o uso de drogas, bebidas alcoólicas e tabaco, e prestam assistência aos consumidores; no século XXI, esboça-se reação a essa tolerância. A religião é questionada por seu aspecto mercantil e materialista. O misticismo ganha credibilidade e se expande.

Mikhail Gorbachev iniciou a perestroika, reestruturação política e econômica da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, como semente da paz mundial (1985)। A rápida evolução dos acontecimentos escapou do seu controle e várias repúblicas da Europa oriental romperam os vínculos políticos com a URSS. O muro de Berlim foi derrubado e a Alemanha se reunifica (1989/1990). Sem alternativa, Gorbachev decreta a dissolução da URSS (1991). A guerra fria chega ao fim. Os movimentos políticos e sociais na URSS animaram os dissidentes chineses, porém a repressão do governo foi brutal. Ficou na retina a emblemática imagem transmitida pela TV de um jovem chinês, na Praça da Paz Celestial, colocando-se à frente de um tanque de guerra. Na chefia do governo da China, Deng Xiaoping introduziu o socialismo pragmático mediante concessões ao capitalismo (1978). A economia chinesa cresce, abre-se ao comércio internacional e a partir de 2003 mantém crescimento de 10% ao ano, mas recua para 6,7%, em junho/2009, diante da crise financeira mundial.


O governo Reagan se aproveita da perestroika para estabelecer uma nova ordem mundial em sintonia com os interesses dos EUA, induzindo à globalização da economia। Margareth Thatcher, na chefia do governo da Inglaterra, adota política conservadora e substitui o Estado do Bem-Estar pelo modelo liberal (privatizações, desregulamentações, estímulos à iniciativa privada). A onda neoliberal leva de cambulhada países da América Latina e da Ásia. O Mercado Comum Europeu evolui para União Européia, elabora projeto de Constituição e cria o euro, moeda própria da comunidade (1999). A robotização aumenta a produtividade e reduz o número de trabalhadores nas fábricas. O desemprego exige nova orientação. Cresce a demanda por energia, computadores, veículos automotores e telefones celulares. A indústria bélica aperfeiçoa equipamentos, armas, tanques, navios, aeronaves, cuja produção tem mercado internacional garantido. Celebra-se tratado de cooperação econômica entre países da América do Sul (Mercosul) porém, conflitos do passado e rivalidades do presente geram clima de desconfiança que dificulta o entendimento entre os associados. Reunião histórica entre chefes de Estado de países sul-americanos trata de assuntos de segurança e desenvolvimento em nível continental (setembro/2009).

A implosão da URSS tornou descartáveis as autocracias de direita na América Latina. O regime ditatorial perdeu serventia ao governo dos EUA. Apesar disso, a extrema direita reagiu à distensão política que começou no governo Geisel e terminou no governo Figueiredo. Bomba explodiu na seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil, causando a morte da secretária Lyda Monteiro e consternação no meio forense. No Riocentro, espaço localizado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, onde multidão assistia a espetáculo artístico, bomba explodiu no interior do automóvel ocupado pelos terroristas, frustrando o plano daqueles que pretendiam endurecer novamente o regime político (1982). “Diretas Já”, movimento por eleições diretas para a chefia do governo, com amplo apoio popular, realiza passeata e comício com centenas de milhares de pessoas no Rio de Janeiro (1984). Emenda à Carta/1967 concede poderes constituintes aos parlamentares eleitos em 1986. Assembléia Nacional Constituinte (ANC) instala-se em 11/02/1987 sob a presidência do deputado Ulisses Guimarães. O lavor constituinte dura 20 meses. Depois de aprovado e antes de ser promulgado, o texto constitucional foi modificado por alguns parlamentares em eclesial gabinete, sem retorno ao plenário da ANC para conhecimento e votação dos pares, conforme admitiu o deputado constituinte Nelson Jobim ao tempo em que presidia o Supremo Tribunal Federal.

Visando à elaboração da nova Constituição, apresentei 16 propostas ao Congresso da Magistratura Nacional (Recife), à Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (Porto Alegre) e à Assembléia Nacional Constituinte (Brasília). A Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) organizou comissão formada por pessoal do grupo da diretoria. Solicitei ao presidente da comissão que submetesse as minhas propostas à apreciação dos convencionais. Contrafeito, mas sem jeito de recusar, sendo eu associado, o presidente acolheu o pedido, mas acrescentou a advertência: “A Amaerj não pagará as tuas despesas”. A desnecessária e agressiva advertência lhe serviu de descarga psicológica para compensar a contrariedade. Eu não havia solicitado auxílio financeiro, nem mordomia alguma. Eu já havia programado a viagem a Recife e a Porto Alegre às minhas custas, sob minha inteira responsabilidade.

O nariz torcido vinha de longe. Na década 1971/1980 eu convidei o desembargador Amilcar Laurindo para encabeçar chapa e concorrer aos cargos de direção da associação de magistrados da GB. A novidade causou pânico. O grupo que se perpetuara na direção da entidade taxou-nos de mal intencionados e desagregadores. A experiência me deixou perplexo e desiludido. Conheci de perto a face diabólica da magistratura. Nunca mais participei de grupo ou de eleições classistas. Como diz minha filha: ninguém merece!

Enquanto os comissários da Amaerj faziam turismo pelo Nordeste, eu defendia as minhas propostas em Recife, no local do congresso. Consegui aprovar 14 propostas nas comissões temáticas. Duas juízas vigiavam: ao entrar em discussão minhas propostas, nas diferentes comissões, elas me avisavam. Em uma das comissões, eu acabara de defender algumas propostas quando ex-presidente do tribunal de justiça de São Paulo olha para mim e diz: “Interessante a preocupação dessa nova geração de juízes com a moralidade no Judiciário”. Comissão presidida por desembargador votava minha proposta para que todos os juízes vitalícios fossem eleitores no processo de escolha dos órgãos de direção dos tribunais de justiça. A votação era aberta. Diante da passividade dos juízes ali presentes, eu os interpelei. O desembargador me cassou a palavra; disse que eu estava interferindo indevidamente na decisão dos colegas. A proposta foi rejeitada. No corredor, aproximaram-se dois juízes de Santa Catarina que participaram da votação. Um deles, com apoio do outro, disse: “Nós concordamos com a tua proposta, mas se votássemos a favor correríamos sério risco de represália”. Em outra comissão temática, um membro do grupo organizador do congresso plantou-se ao meu lado e começou a contar, no meu ouvido, os minutos por todo o tempo de exposição que me fora concedido: “1, 2, 3, 4, 5... pronto, acabou o tempo”. Quase esmurrei o focinho do turbador. Das 14 propostas aprovadas nas comissões, apenas 7 (sete) foram levadas à sessão plenária. Desconheço o motivo da poda. Na sessão plenária, o relator tentou podar mais uma: a que obrigava o juiz a residir na comarca. Defendeu-a um juiz do Rio Grande do Sul. Os comissários da Amaerj não moveram uma palha sequer.

A neurose pelo tempo de exposição também se fazia sentir na Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC) em Porto Alegre. Como debatedor, eu fui chamado a me pronunciar sobre o tema exposto e a provocar um dos membros da mesa. A mulher que a presidia advertiu-me de modo pouco educado sobre o tempo: 5 minutos. Do colete, tirei o relógio de bolso ostensivamente, enquanto me dirigia à tribuna. A secretária da convenção, com simpatia e discretamente, riu do meu gesto e da minha expressão facial (cerca de 10 anos depois, ela foi nomeada ministra do Supremo Tribunal Federal). Declarei à presidente da mesa não necessitar de tanto tempo. Escolhi o professor Dalmo de Abreu Dallari. Perguntei-lhe se concordava com a decisão da maioria do plenário que rejeitara proposta, por mim formulada, de legitimidade da vítima ou familiares, para intentar ação penal privada quando a ação penal pública não fosse proposta dentro de certo prazo. Ele se manifestou favorável à minha proposta.

A maioria dos convencionais era de professores, advogados e membros do Ministério Público. Vindo do Rio de Janeiro, eu podia ser visto como um exibicionista, conforme a imagem comum que se faz do carioca. Houve momentos em que tive a sensação de estar incomodando, de ser estranho naquele ambiente de poucos juízes. Referindo-se a uma intervenção minha, o jurista Celso Bastos, presidente do IBDC e privilegiado com tempo ilimitado, qualificou-a de timorata. O rebanho o acompanhou no gracejo. Ao invés de argumentar, o professor preferiu agredir e fazer graça, falando de medo onde eu falara de cautela. Em programa de debates na TV, um cineasta reagiu com energia diante da arrogância desse professor. O mediador apagou o incêndio. Creio que atualmente aquele professor leciona direito constitucional no Instituto Lúcifer.

Na convenção do IBDC, às margens do Guaíba, desembargador gaúcho questionou a minha proposta de substituição dos vencimentos e gratificações dos magistrados por um único e decente subsídio. Ele sugeria que fosse mantido, pelo menos, o adicional por tempo de serviço. Pedi a palavra e reforcei os argumentos constantes da justificativa. A proposta foi aprovada tal qual apresentada: subsídio sem penduricalho algum.

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