sexta-feira, 14 de agosto de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XVIII

Em assembléia geral da associação dos magistrados do Estado da Guanabara ficou decidida a aquisição de um imóvel na Vargem Grande destinado à sede campestre. Havia forte oposição à compra. Alguns desembargadores que há mais tempo vinham contribuindo para o fundo social defendiam o investimento no mercado de capitais. Efetivada a transação, as famílias passaram a freqüentar a sede campestre. As crianças gostavam daquele espaço verde e da piscina. A administração realizou benfeitorias para maior conforto dos associados. Os adultos jogavam futebol, bilhar, cartas, conversavam na sala de estar, freqüentavam a piscina e a sauna, assistiam a programas de televisão, tudo num ambiente harmônico e alegre.

Garrincha lá compareceu para uma exibição de futebol. O campo era de pequenas dimensões. Formamos duas equipes de 6 jogadores cada uma. Joguei como atacante na equipe de Garrincha. Lá pelas tantas, da ponta direita ele cruza a bola. Bastava eu tocar com a testa e faria o gol. Mais do que uma bola, o que vinha em minha direção era um bólido. O cruzamento foi um petardo. Não tive dúvida: abaixei a cabeça e o meteorito passou livre. Perdi o gol, mas conservei a cabeça sobre o pescoço. Garrincha zangou-se, fez um gesto com o braço e disse algumas palavras que não ouvi direito, mas pelo contexto, creio ter sido de baixo calão.

Na vara criminal, eu presidia as audiências e Asclepíades despachava no gabinete. O serviço estava acumulado. O ritmo dos depoimentos era acelerado. A escrevente, exímia datilógrafa, não agüentou o tranco. Determinei o revezamento com outro serventuário, o que funcionou muito bem. Sempre que o rito permitia, as sentenças eram prolatadas na própria audiência. Em uma dessas ocasiões, o réu, preso e escoltado, se mostrava durão, enrijecido pela vida marginal, extensa folha de antecedentes, porém, sem anotações a partir de determinada data. Período de prisão, certamente. Testemunhas de acusação, só policiais. Desconfiei. Nos inquéritos policiais é comum jogar para as costas de um bandido conhecido a autoria de crimes que a polícia não consegue desvendar. Essa prática acontece também quando, por diferentes motivos, policiais pretendem ocultar o verdadeiro criminoso. Absolvi o réu e determinei a imediata soltura se por outro delito não estivesse preso. O réu desabou sobre a mesa da sala de audiência. Aquele homem durão, rosto entre as mãos, chorava copiosamente à nossa frente. Surpreso, aguardei que diminuísse aquela vazão de sofrimento reprimido. O curioso é que policiais, promotor, advogado, assistência, respeitaram aquele momento. O humanismo se fez presente.

O corregedor-geral da justiça esteve na vara criminal porque havia a impressão de que o juiz titular explorava o juiz substituto. As câmaras criminais haviam notado o aumento anormal de processos daquela vara que lá chegavam aos borbotões, sentenciados por mim. Acontece que celeridade e alta produtividade eram características do meu método de trabalho e não produto da malícia do juiz titular. Evidente que isso representava maior folga e tranqüilidade para o juiz titular da vara, porém eu pouco me importava com isso. A minha preocupação voltava-se para os jurisdicionados. Ao ingressar na magistratura, tanto no Paraná como na Guanabara, eu havia assumido o compromisso comigo mesmo de prestar tutela jurisdicional com rapidez e eficiência. Na advocacia, eu notara como as pessoas sofriam com a lentidão da justiça. Eu pesquisava doutrina e jurisprudência constantemente para me manter atualizado e tomar posição nos assuntos controvertidos. Desse modo, ao despachar ou sentenciar não precisava perder tempo com novas e repetidas pesquisas, nem citar doutrina e jurisprudência, pois a decisão já estava nelas enquadrada. Daí a minha alta produtividade.

No que tange à qualidade do trabalho, havia juízes na Guanabara que proferiam sentenças primorosas, além de justas, como notei quando os substituía. As minhas sentenças eram simples, limitavam-se aos fatos e ao direito conforme meu entendimento e meu sentimento de justiça. Como disse um colega que me sucedeu na vara de família: “Com o Lima era assim: sujeito, verbo e predicado; tudo na ordem direta, sem muito adjetivo”. A escrevente das audiências na vara criminal reclamava: “Para Vossa Excelência o crime de sedução não existe mais”. Ela datilografava as sentenças que eu ditava em audiência, absolvendo réus acusados de sedução. O Código Penal era de 1940, fundado na realidade social do início do século XX, com os preconceitos do século XIX. A realidade social dos anos 70 era outra. Nos grandes centros como o Rio de Janeiro as moças não eram ingênuas, inocentes, desinformadas, bem ao contrário, sabiam perfeitamente o que queriam e agiam com desenvoltura impensável às moças do início do século. O feminismo ganhara força. A virgindade não era mais tabu nem conditio sine qua para o casamento. Mudaram os costumes e a moda: saias curtas, a mostrar pernas e calcinhas, blusas decotadas ou abertas a exibir seios, liberdade sexual como regra, prenúncio da produção independente de filhos, em voga nas décadas seguintes, com o emblemático exemplo de Xuxa, a rainha dos baixinhos.

O juiz titular daquela vara criminal foi meu jurisdicionado algum tempo depois, no juízo de família, em ação de investigação de paternidade. Havia 6 varas de família naquela época. Eu era substituto/auxiliar na 6ª Vara de Família. A postulação da criança em face do juiz veio rolando desde a 1ª Vara de Família até chegar na 6ª e última. Todos os juízes titulares e substitutos se deram por suspeitos. O juiz da 4ª Vara de Família extrapolou: declarou a suspeição dele e do juiz substituto, quando o ato devia ser individual. Na 6ª Vara de Família, o juiz titular não chegou a tanto; declarou a suspeição dele, exclusivamente. Recusei-me a aderir a esse tipo de corporativismo. Alguém tinha de prestar a jurisdição invocada. Admiti a petição inicial. Citado, o juiz apresentou defesa. Deferi a produção de prova, presidi a instrução e não permiti procrastinação. O juiz investigado reconheceu a paternidade antes da sentença. Ele ficou 15 anos sem falar comigo. Já desembargador, no posto bancário do prédio do tribunal, ele se aproximou, me abraçou emocionado e disse: “Vamos deixar disso”. Eu já deixara há muito tempo.

Em decorrência da fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro e da decisão do Supremo Tribunal Federal que resolveu a pendência sobre a situação dos magistrados dos respectivos Estados, permaneci na função de juiz substituto por 8 anos. Atuei no registro civil, em varas cíveis e criminais, varas da fazenda pública e da família. Entre os casos do cível, julguei a ação de indenização por uso indevido da imagem, antes da previsão constitucional de 1988. A ação foi proposta por Edu da Gaita contra a Rede Globo de Televisão. Fundado na lei civil, dei provimento à pretensão do artista e condenei a emissora a indenizá-lo.

Entre os casos de família, julguei a ação proposta pela esposa do repórter e deputado Amaral Netto. Vazando arrogância e prepotência pelos poros, o deputado entrou fumando na sala de audiência. Mandei que apagasse o cigarro. Ele obedeceu. No dia seguinte, acompanhado do advogado, ele comparece em meu gabinete para manifestar seu descontentamento com a ordem que lhe dei. Não estava acostumado a receber ordens. Dei-lhe nova ordem: que se retirasse do gabinete antes que eu o prendesse por desacato. Ele obedeceu. A mulher dele, jovem e bonita, que vencera a ação, apareceu morta em São Paulo, em condições misteriosas, pouco tempo depois.

Naquela mesma vara de família, recebo telefonema de desembargador solicitando audiência em meu gabinete acompanhado de amigo que respondia a ação judicial promovida pela esposa. De modo cortês, disse ao desembargador que não os receberia. Eles não vieram. O amigo dele era militar de alta patente e diretor da Itaipu. O filho, também militar, prestou depoimento favorável à mãe. Acolhi o pedido da mulher, incluindo as duas fontes de renda do varão para desconto da pensão alimentícia, além das outras disposições sobre a separação do casal.

Dos diversos casos que julguei na vara de fazenda pública, foi marcante o da ação proposta pelo deputado José Frejat contra o Estado. O parlamentar insurgia-se contra ato do governador que provera cargo de titular em cartório extrajudicial. O deputado sustentava a inconstitucionalidade do ato; o cargo devia ser preenchido após concurso público, o que não acontecera. Sem que houvesse pedido de concessão liminar da medida, eu mandei suspender a execução do ato do governador até decisão final da demanda. O serventuário nomeado pelo governador veio reclamar pessoalmente, se dizendo prejudicado. Disse-lhe que buscasse os meios adequados, pois se tratava de decisão judicial. O governador convidou o presidente do tribunal para uma reunião no palácio do governo, oportunidade em que mostrou o seu desagrado. Segundo o que se comentou no tribunal, o governador disse, naquela reunião, que confiara na palavra do presidente de que a mencionada nomeação não traria problema algum. Entrei em gozo das férias previamente programadas. O juiz que assumiu a vara revogou a minha decisão. Por coincidência, logo depois foi promovido a juiz titular por merecimento.

Encontrava-me em exercício no juízo cível quando recebo a visita de dois magistrados, professores de direito processual civil na PUC/RJ. Buscavam esclarecimentos sobre os fundamentos daquela decisão proferida no juízo da fazenda pública. Expliquei-lhes que se tratava de interpretação sistemática dos preceitos processuais e de aplicação do poder geral de cautela; que a jurisdição implica esse poder sem que houvesse necessidade de pedido específico da parte; que o pedido da tutela jurisdicional na ação principal obriga o juiz a examinar a possibilidade da eficácia da sua futura decisão; percebendo o juiz, que a medida será inócua se prestada no fim, poderá antecipá-la com base no poder geral de cautela (lei de 1994 deu nova redação aos dispositivos do código de processo civil, introduziu a tutela antecipada, mas exigiu requerimento da parte).

Encontro casualmente, no corredor do fórum, um procurador da justiça aposentado. Ele esbraveja contra a apreciação que fiz da personalidade de uma das partes de certo processo judicial. “Eu intercedi em favor daquela pessoa, mas ainda que meu pedido não fosse atendido, nem por isso você precisava carregar contra ela”. Eu me esquecera do pedido feito pelo procurador. Em todo o tempo da minha judicatura poucas pessoas me fizeram pedidos em favor desta ou daquela parte no processo. A minha conduta era refratária a esse tipo de aproximação e solicitação. Daí eu ignorar completamente os poucos atrevidos. A severidade era comum às minhas decisões. O amigo (ou amiga) do procurador não recebera tratamento diferenciado. Como nos demais casos, a minha apreciação sobre a personalidade daquela pessoa decorrera diretamente do exame das provas contidas nos autos do processo, sem qualquer liame com o tal pedido.

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