sexta-feira, 21 de agosto de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XIX

Jussara e eu travamos conhecimento e amizade com Clarinda (professora) e Jorge Beja (advogado) casados entre si. As famílias se visitavam. Fomos a um recital de piano de uma professora em Petrópolis. Na platéia, só nos quatro. Esqueceram de divulgar o evento. A professora tocou as músicas programadas. Depois fomos jantar na casa dela. No curso da conversa, entrou o assunto do cacique Mário Juruna, impedido, pela Fundação Nacional do Índio e pelo Ministério do Interior, de sair do país para participar de um congresso internacional que se realizava em Roterdã (Holanda, 1980). O tema do congresso era o indígena e seus direitos. Foram convidados indígenas do mundo inteiro. O denominado Tribunal Bertrand Russell reservara um lugar de honra para o cacique xavante. A imagem da cadeira vazia foi transmitida ao mundo pela TV, para vergonha dos brasileiros. Aquela cadeira vazia, eloqüência do silêncio, simbolizou a opressão dos povos civilizados sobre os povos indígenas. Celeuma política sem perspectiva de solução favorável ao índio, um advogado gaúcho entra com mandado de segurança. Discutimos a adequação da medida. O bem agravado era a liberdade de locomoção. Concluímos que o caso era de habeas corpus e não de mandado de segurança. Beja concordou em impetrar a medida gratuitamente. Fomos movidos pela indignação ante aquela violência contra o direito natural do ser humano. Retornamos ao Rio.

Em Ipanema, no apartamento meu e de Jussara, redigimos a petição de habeas corpus. Clarinda trouxe livro de Darcy Ribeiro para ilustrar o pedido. Levantei as teses do prédio encravado (reserva indígena), do direito de passagem e da capacidade do índio para tratar de assuntos da cultura do seu povo. Invocamos isonomia, alicerçados na declaração de direitos contida na carta das nações unidas e na carta brasileira de 1967. O governo federal, no plano dos fatos, mudara o regime do índio de tutela para curatela: tratara o cacique como alienado mental; tomara como premissa a inferioridade racial do silvícola; negara-lhe aptidão para transmitir conhecimentos, inclusive da sua própria cultura, como se o silvícola fosse incapaz de organizar logicamente o seu pensamento (neste passo, entrou a lição de Levi-Straus sobre o pensamento selvagem). Invocamos o princípio da legalidade. O ministro constrangia o cacique, impedindo-o de fazer o que nenhuma lei impedia: viajar para o exterior em defesa da sua cultura. Os povos civilizados não se pejaram de levar aborígenes ao continente europeu com o propósito de exibi-los como curiosidade exótica. Destarte, era justo que agora os recebessem para lhes ressaltar a dignidade e lhes defender a cultura e a própria sobrevivência. Invocamos a liberdade de pensamento: o ato do ministro obstava o cacique de levar ao tribunal internacional informações sobre o seu povo, o que tipificava censura incompatível com o dever do Estado de amparar a cultura. Invocamos a liberdade de locomoção: o ato do ministro interferia abusivamente no direito de ir e vir do cacique.

A petição de habeas corpus foi protocolada e devidamente processada no Tribunal Federal de Recursos (hoje, STJ). Autoridade coatora: Ministro do Interior. O tribunal, certamente em um dos maiores julgamentos da sua história, corajosamente concedeu a ordem e expediu salvo-conduto. Beja me informou que o nome dele consta do Guiness, em virtude desse episódio. Apresentei esse caso e as teses correspondentes como trabalho final de uma das disciplinas do curso de mestrado na PUC/RJ (1981) e o arranjei em forma de artigo para a revista do Senado Federal, denominada Revista de Informação Legislativa, ano 24, nº 93, jan/mar de 1987, p. 267/282. Provavelmente, o artigo 231, da Constituição de 1988, sobre os índios, foi inspirado nesse trabalho.

A fusão do Estado da Guanabara (GB) com o Estado do Rio de Janeiro (RJ), determinada pelo governo federal autocrático, gerou um clima de hostilidade entre as magistraturas dos dois Estados (1975). Juízes de ambos os Estados defendiam direitos e interesses nas esferas parlamentar e judicial. Nós, da GB, não admitíamos prestar jurisdição nas comarcas do interior. Sustentávamos que muitos dos aprovados no concurso para a justiça guanabarina já tinham sido juízes no interior dos seus Estados de origem, desde o sul até o norte do Brasil. Entendíamos injusto que juízes do RJ, reprovados no concurso para a GB, passassem à nossa frente na carreira do novo Estado. O Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito: (i) dos juízes da GB de permanecerem na Capital (ii) dos juízes do RJ a ocuparem lugares na carreira à frente dos guanabarinos (iii) à equiparação dos vencimentos do juízes do RJ aos da GB.

No bar dos magistrados do forum da capital, os juízes do antigo RJ não eram bem recebidos. As duas associações de magistrados mantinham-se afastadas (Rio x Niterói). Líderes e liderados resistiam à unificação, o que alimentava a hostilidade. A ala da conciliação, ativa nas duas associações, acabou triunfando. O ingresso de novos juízes na magistratura após a fusão dos dois Estados ajudou o processo de unificação das duas associações e de cicatrização das feridas. Solucionadas as pendências, o convívio entre guanabarinos e fluminenses foi se amenizando. Na convenção da magistratura nacional, no Recife (1987), eu mesmo, da antiga GB, fui auxiliado por duas magistradas do antigo RJ, na defesa das minhas propostas. Guanabarinos e fluminenses eram colegas e suas togas tinham o mesmo valor. As mágoas se dissiparam. Embora alguns juízes guardassem rancor, a discórdia ficou no passado.

Ao serem criadas inúmeras varas na comarca da capital, nos anos 80, houve promoção geral dos juízes substitutos. O tribunal os convocou a uma reunião com o objetivo de lhes dar oportunidade de escolha. Se dois juízes escolhessem a mesma vara, o critério de desempate seria a classificação no concurso. Coube-me vara criminal. Nelson Siffert, colega de toga, amigo e compadre (ele e Antonieta, a esposa, testemunharam, no registro civil, o nascimento do Rafael, meu terceiro filho) propôs permuta com a vara cível que lhe foi destinada, o que aceitei. Celebramos a troca ali mesmo. Lista feita, o desembargador a encaminha ao tribunal. Para minha surpresa, fui promovido por antiguidade para uma vara criminal! A vara cível, objeto da permuta com Nelson, foi destinada a outro juiz que não comparecera à reunião. No bar dos magistrados, em data posterior, aquele juiz pediu desculpas e manifestou a esperança de que o episódio não trouxesse inimizade. Da minha parte, nem inimizade, nem amizade, menos ainda rancor. A safadeza pode pesar na consciência de quem a comete, mas nunca de quem a sofre.

A solenidade de posse foi no salão nobre do tribunal. A turma de novos juízes titulares era grande. Todos enfileirados. Citado o nome, o juiz se dirigia à mesa no centro do salão, circundava-a, curvava-se e assinava o livro tendo na retaguarda o secretário geral, o presidente do tribunal, os representantes do governador e do presidente da assembléia legislativa. Após a assinatura, o juiz emprumava-se e retornava ao seu lugar. Havia algo de constrangedor naquele cerimonial. Pareceu-me colocar o juiz em posição subalterna, incompatível com a independência que dele os jurisdicionados esperam. Chegou a minha vez. Caminhei em linha reta. Por causa do tamanho, apanhei o livro com as duas mãos, girei-o em minha direção e o assinei de frente para aquelas autoridades. A seguir, retirei-me do salão sem esperar os discursos de encerramento.

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