domingo, 14 de junho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - IX

A década 1961/1970 foi marcante. Onda espiritualista oriental invadiu o Ocidente como refluxo da onda racionalista ocidental que invadira o Oriente no século XIX. Os gurus indianos, como Krishnamurti, cujos livros e conferências faziam sucesso, entraram na ordem do dia e ganharam muito dinheiro na América e na Europa. O misticismo expandiu-se na literatura, música, teatro, costumes, artigos de culto (incenso, velas, castiçais, rosários, imagens) criando um vigoroso mercado internacional. Os Beatles, inicialmente bem comportados, mudaram trajes e postura, agitaram a juventude, incrementaram o mercado fonográfico e artístico, surfaram na onda espiritualista oriental. Organizou-se e intensificou-se a afirmação dos grupos homogêneos (mulheres, homossexuais, negros, indígenas). O feminismo em passos lentos desde a segunda guerra mundial ganhou espaço nos meios de comunicação. Simone de Beauvoir despontou no plano filosófico e se tornou ícone do feminismo racional. O seu livro “O Segundo Sexo”, editado em Paris, em 1949, denso e profundo, havia inaugurado debate em escala mundial sobre a situação da mulher na área rural e na área urbana, tanto na esfera do socialismo como na do liberalismo. As mulheres aboliram o sutiã, usavam saias e blusas com motivos indianos, sandálias, ornamentos de artesanato (colares, brincos, pulseiras, anéis). No relacionamento com os homens elas se tornaram ativas e agressivas. O médico Ernesto Guevara e o advogado Fidel Castro eram os heróis da juventude da América Latina. O útero boliviano pariu o mito.

Na música, Ellis Regina expressava a bossa nova, Maria Bethania desfilava descalça no palco, Nara Leão mostrava os joelhos, o violão moderninho e a voz de apartamento. Vinicius de Moraes poetava as músicas de Tom Jobim e Toquinho. A juventude vibrava com a canção de Roberto Carlos que mandava tudo para o inferno e com a de Erasmo Carlos que desafiava: “podem vir quente que eu estou fervendo”. Os festivais de música promovidos anualmente pela TV Record eram esperados com ansiedade. Revelaram talentos como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré. Nos costumes, Leila Diniz, grávida, desfilava na praia de biquíni e exibia a barriga em desafio ao comedimento da geração anterior. “O Pasquim” circulava no meio acadêmico e popular enganando os censores. Os homens deixaram crescer os cabelos e trocaram o terno e a gravata por roupa esporte. Nessa década, a seleção brasileira venceu dois campeonatos mundiais de futebol: no Chile (1962) destaque para Garrincha e no México (1970) destaque para Pelé. O jornalista João Saldanha mostrou arrojo e competência ao classificar a seleção para a copa de 1970; negou-se a atender pedido do general-presidente Médici para convocar o jogador Dario. Isto serviu de pretexto para substituí-lo por Zagalo. Aos militares não interessava um comunista vencedor.

Alimentação natural, macrobiótica ou vegetariana, entrou na dieta da nova geração. A mocidade celebrava o início da era de Aquário. Acreditava que a nova estação zodiacal traria concórdia e espiritualidade. O teatro importava e apresentava a peça Hair, com a música que lhe servia de fundo (Aquarius). O elenco ficava nu. Representava a liberação dos costumes, o protesto contra o excesso de regulamentação e o anseio pela paz. Os jovens se rebelaram contra a guerra no Vietnã, a mentalidade beligerante na política e o autoritarismo na família, na sociedade e no Estado. Cassius Clay, carismático lutador de Box, estilo primoroso, campeão mundial, recusa a farda militar e a participar da guerra do Vietnã. Adota a religião islâmica e o nome de Mohammed Ali. Surge o movimento hippie, sob o lema paz e amor: pacifismo de Jesus e Gandhi, recusa ao serviço militar obrigatório e aos valores tradicionais vigentes na sociedade; busca da iluminação espiritual através das drogas ou orientada por guru; nudez emblemática, liberação sexual, amor à natureza; casamento aberto, palavrão socializado, queda de tabus. Moços da comunidade hippie adotavam o visual de Jesus, sem questionar se aquela imagem vulgarizada pela religião correspondia efetivamente ao Jesus histórico e sem colocar em dúvida a existência real desse personagem bíblico.

Os assassinatos de John Kennedy e de Luther King abalaram a comunidade internacional. Nas ruas de Paris os estudantes protestam contra a política do general Charles de Gaulle e travam batalha campal com a polícia. Os novos filósofos entram na moda em França. Paira no mundo a tensão entre as duas grandes potências: EUA x URSS; a corrida espacial e armamentista entre elas refletia pretensões imperialistas e hegemônicas. A URSS lança o primeiro satélite artificial e a primeira nave espacial tripulada pelo homem. Emocionado, o cosmonauta russo, Yuri Gagarin, informa: “A Terra é azul”. A nave dos EUA pousa na superfície lunar com astronautas a bordo (1969). Esse pouso tem sido questionado como fraudulento. O filme “2001 - Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick (1968) provoca reflexões sobre a trajetória técnica do ser humano e a disputa entre a inteligência natural e a inteligência artificial, esta representada pelo computador HAL que se colocava superior ao comando humano da nave. Depois vieram as séries que empolgaram jovens e adultos: “Guerra nas Estrelas” no cinema e “Jornada nas Estrelas” na TV. Na vida real, falha humana e falha técnica disputam entre si a supremacia como geradoras dos acidentes aéreos.

Houve mudança de regime político no Brasil. O presidente Janio Quadros (JQ), eleito para o período 1961/1965 renunciou ao mandato no primeiro ano abrindo uma crise. JQ era homem culto, professor, moralista, carismático, disposto a combater a corrupção e a governar com independência no plano nacional e internacional. Em plena guerra fria estabeleceu relações com países comunistas (URSS, China, Cuba) desafiando o governo dos EUA. O caldo entorna quando ele condecora o Ministro da Indústria e Comércio de Cuba, Ernesto Guevara, o Tchê argentino. Com a colaboração de políticos brasileiros, inclusive Carlos Lacerda, o mais inflamado, o governo dos EUA reagiu. O Legislativo prontamente aceita o pedido de renúncia formulado por JQ. Os militares e políticos da oposição rejeitam o vice-presidente João Goulart. Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná se unem em favor da legalidade e recebem apoio de outros Estados. Para evitar derramamento de sangue, o Congresso Nacional institui o parlamentarismo: chefia de Estado para Goulart, chefia de Governo para gabinete. Após o terceiro gabinete e consulta ao povo (plebiscito) o Brasil retorna ao presidencialismo.

João Goulart (JG), fazendeiro gaúcho, rico, educado, cordial, assume a chefia do Estado e a chefia do Governo (presidencialismo). A sociedade estava inquieta. Os trabalhadores rurais se organizam em ligas camponesas distribuídas por vinte Estados, enfrentam a força pública e os latifundiários. Pleiteavam reforma agrária, direito à livre organização e lei trabalhista própria (1961). Desse pleito coletivo resultou o Estatuto do Trabalhador Rural (1963). O governo Goulart lançou o plano trienal de desenvolvimento econômico e social elaborado sob a direção do economista Celso Furtado. O Legislativo resiste à aprovação do plano. JG se aproxima das organizações de esquerda que exigiam nova Constituição. Os setores da direita reagem: Instituto Brasileiro de Ação Democrática, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e governos dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Guanabara recebem apoio do governo dos EUA para derrubar o presidente JG.

A camada alta e parte da camada média da sociedade (imprensa, igreja, empresários, políticos, mães de família) foram arregimentadas pelos opositores para manifestação de rua contra o comunismo. JG era acusado de tentar bolchevizar ou cubanizar o Brasil. Outra parte da sociedade apoiava o governo (empresários, políticos, estudantes, trabalhadores). Centenas de milhares de pessoas participam do comício no Rio de Janeiro (13/03/64) quando JG lança o programa de reformas de base (rural, urbana, encampação de refinarias, direito de voto aos analfabetos, delegação legislativa). JG demite o Ministro da Marinha, participa de reunião na Associação dos Sargentos da Polícia Militar do Rio de Janeiro e profere discurso com explosiva carga emocional contra as elites e os oficiais da Marinha (30/03/64). Dois dias depois, JG é deposto.

Passa a vigorar a doutrina da segurança nacional elaborada na Escola Superior de Guerra sob influência do governo dos EUA, segundo a qual a defesa da pátria incluía o combate aos inimigos internos. O lema do regime militar era segurança e desenvolvimento, semelhante ao dístico da bandeira nacional. Os militares exerceram o poder constituinte de modo permanente e organizaram um Estado refratário à classe política, aos intelectuais de esquerda e aos direitos à vida, à liberdade e à segurança individual. Civis, militares, religiosos, perdem direitos; alguns desaparecem. Pessoas contrárias ao regime colocadas em aviões e lançadas ao mar. A energia da nação destinava-se a nutrir e fortalecer o poder nacional exercido pelo estamento militar. O Legislativo endossou a indicação, logo após o golpe, respectivamente para presidente e vice-presidente da república, os nomes de Humberto de Alencar Castelo Branco e José Maria Alckmin. O Legislativo, em 1967, adotou, a toque-de-caixa, o projeto enviado pelo governo militar como nova carta constitucional.

Forças guerrilheiras levantaram-se contra o novo regime e travaram combate com forças governamentais no território brasileiro. Guerrilheiros urbanos seqüestraram o embaixador dos EUA e exigiram a troca por companheiros presos e a leitura de um manifesto. Foram atendidos pelo governo militar. Dois meses depois, Marighela, um dos chefes da guerrilha foi emboscado e morto em São Paulo (novembro/1969). O regime endurece. Todo o aparelho policial servindo as forças armadas.

O mercado de capitais recebeu disciplina legal, assim como o condomínio em edificações e incorporações imobiliárias. A correção monetária foi introduzida no sistema econômico brasileiro. O governo fundou o Banco Nacional da Habitação, criou incentivos fiscais, facilitou o crédito, a remessa de lucros e a aquisição de terras para empresas multinacionais se instalarem no Brasil. Empresas americanas, européias e asiáticas investiram nos setores químico, farmacêutico, automobilístico, metalúrgico, mecânico e eletrônico. Expandiu-se a indústria aeronáutica, naval, de material bélico e de bens de consumo duráveis. Os setores de siderurgia, telecomunicações, energia e transporte ficaram sob controle do governo. Floresceu a cultura técnica (economia, administração, informática, eletrônica) o que se refletiu no modo planejado de governar (tecnocracia). A tecnologia sombreou o humanismo.



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